quinta-feira, 15 de junho de 2023

Tu sabias que não existe racismo no Brasil?

 

Em 1978 e 1979, lecionei no Grupo Escolar Júlio César Ribeiro de Souza. Recém concluíra a Licenciatura em História, tinha 22 anos, e estava super disposto a entrar na lida.

A escola ficava na entrada de Alvorada, numa baixada, e, às sete da manhã, não era raro estar envolta pela neblina, devido a um rio que passava nas imediações e que nunca conheci. Eu desembarcava do ônibus, atravessava a estrada e entrava pelo portão da escola. Pouco conhecia dos arredores da escola.

Uma escola sem muro de tijolos. Apenas uma cerca de tela com um grande furo numa das extremidades, que a D.E. já avisara que não tinha verba para consertar. A escola que providenciasse.

Um dia, por volta do meio-dia (a escola sem alunos, algumas professoras almoçando numa sala), um homem arrastou uma menina para debaixo dos prédios das salas de aula e ninguém viu nem ouviu coisa alguma. (A escola era do tipo brizoleta, com os prédios de madeira erguidos a uma pequena distância do chão, numa altura que dava para um homem entrar, se arrastando.)

O homem queria violentar a guria, mas ela escapou. Saiu correndo, gritando, pelo pátio da escola, e o sujeito escapou pelo mesmo buraco da tela por onde havia entrado.

As professoras acudiram a menina e ela, logo que viu que o homem sumira, também escapuliu.

As professoras contavam aliviadas que nada havia acontecido. O estupro não se consumara. A menina não era aluna da escola, estava passeando por ali e o homem a atacou. Eram conhecidos.

Escutei essa história na sala dos professores, ao lado de uma janela, olhando o espaço entre o chão e os prédios, onde volta e meia se escondia algum cachorro com o qual a gurizada tinha se divertido jogando pedras.

Um mundo girando ao meu redor com os seus fatos comezinhos e eu preocupado com o fato da escola ser “um aparelho ideológico do Estado” e eu não saber como atuar para não ser um agente da reprodução da dominação burguesa... Sem saber como desenvolver o pensamento crítico na gurizada.

Boa essa, não é mesmo? Mas eram essas as minhas preocupações centrais. Um dia entreguei para a Coordenadora Pedagógica as provas que iria aplicar nos alunos das quintas séries (a escola só atendia até a quinta série do 1º Grau) e ela só corrigiu um e outro deslize no português. O tema era a colonização, a montagem do sistema colonial e escrevi a palavra “açúcar” (cana-de-açúcar, engenho de açúcar) sem acentuar. Que cochilo!

Havia uma questão sobre escravidão e racismo, a Coordenadora não fez nenhuma objeção, mas me avisou que havia uma determinação da D.E. recomendando que racismo não fosse abordado, pois isso não existia no Brasil.

– Tu sabias que não existe racismo no Brasil?

A Coordenadora era uma mulher de cabelos louros, pele alva, muito alva, e eu não sabia se era para rir ou não. Ela percebeu meu embaraço e sorriu.

Apliquei a prova e os alunos não se saíram mal na questão sobre as relações entre o nosso passado escravista e o racismo existente na sociedade brasileira dos anos 1970.

Tenho a impressão de que a maioria dos alunos não era negra, o tema, porém, era conhecidíssimo deles todos. Não houve polêmica. Certamente eles ignoravam o que os pedagogos da D.E. pensavam a respeito das relações raciais no Brasil.

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