sábado, 15 de abril de 2023

Pra que estudar essas coisas?

 

No final dos anos 1970, a violência urbana parecia ser um fenômeno exclusivo da periferia das cidades, especialmente das metrópoles. Em 1979, cursei uma disciplina de sociologia no Curso de Comunicações da UFRGS (estava pensando em ser jornalista, além de professor) e este foi um dos temas das aulas: o mapeamento da violência urbana. Rádio e televisão passavam a dar maior destaque aos casos e se tinha a percepção de que houvera um crescimento do fenômeno.

– Não é bem assim – afirmava o professor. – Os dados não apontam um aumento das ocorrências nem um avanço dos casos para a região central das cidades. O que acontece é um aumento do foco, da quantidade de notícias e de um certo sensacionalismo a respeito.

Seja como for, a percepção que se tinha era de que a periferia das grandes capitais, em especial as vilas populares, eram o território por excelência da violência e essa se expandia. Isto, por exemplo, era o que se comentava entre os professores, na Escola Estadual Affonso Charlier, em Canoas.

– A Mathias Velho é um exemplo disso. Aqui se formaram algumas gangs, inclusive uma que fez muitos assaltos no Litoral Norte até pouco tempo – afirmava um colega, que morava em Canoas desde muito tempo, endossando a hipótese da bandidagem como fenômeno das periferias. – Eu até conheço essa gente porque alguns foram nossos alunos.

Quando ficava na escola após o turno da tarde, aguardando as aulas da noite, conversava com esse colega e ele me atualizava as histórias da região.

– Canoas sempre recebeu gente de tudo quanto é lugar. Meus pais vieram de Santa Catarina e eu nasci aqui. O pai já tinha um pouco de conhecimento técnico, começou de baixo, fez cursos e se deu bem. Mas não havia nem há lugar para todos. Nem a maioria está preparada. Afinal, quem possui qualificação para entrar na Refinaria Alberto Pasqualini?

 Ele apontava os livros que nós utilizávamos na escola e perguntava:

– O que isso soma para a gurizada? 

– Muito pouco - ele próprio respondia. – Nós, numa escola de Primeiro Grau, somos só o ponto de partida para eles. Essa gurizada precisa de muito mais

Essa conversa se dava no contexto da abertura do Regime Militar (Governo Figueiredo), quando havia o questionamento a respeito da democracia ser a melhor alternativa para a sociedade brasileira ou não. Um tempo em que era comum alguém dizer que a “ditadura não tinha sido tão ruim”, como era o caso do meu colega. No meu entendimento, no entanto, nem havia esse questionamento. O Regime Militar era o pior dos mundos e agravara todos os índices sociais do Brasil, tradicionalmente periférico e subdesenvolvido.

Pelo que lembro, meu colega considerava hipótese de que o Poder Militar fora capaz de manter a segurança pública e tivera até bons projetos educacionais, como o PREMEM, no qual surgira aquela escola.[i] Mas isso era uma conversa dele que eu não compreendia. No que concordávamos era de que a violência se tornara um problemão e a escola poderia colaborar no sentido de, ao menos, “salvar a criançada”, preparando-a para o mundo do trabalho moderno. Mas o que fazer, como reformatar a escola? Questões que angustiavam alguns professores.

– Pra que estudar essas coisas todas? – perguntavam os adolescentes mais salientes e antenados ao modo como a roda do mundo girava, apontando os currículos oficiais.

Era nesse clima que eu entrava em sala de aula para vender o meu peixe, isto é, desenvolver o currículo mínimo: falar a respeito da emancipação das antigas colônias de Portugal e Espanha, “um fenômeno que deve ser entendido no quadro mais amplo do desenvolvimento do capitalismo europeu, suas necessidades”, etecetera.

Mais de quarenta anos depois, fico pensando: O que será que os alunos pensavam a respeito da minha conversa? O que o conteúdo das minhas aulas somava para aquela gurizada?



[i] O PREMEM (Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio) funcionou entre 1968 e 1976 e deu origem a Escola Affonso Charlier. Os professores que ingressaram no projeto falavam especialmente dos salários altos que recebiam e se queixavam do fato de terem sido colocados na vala comum do Magistério Estadual. Era um tempo (o da segunda metade da década de 1970) que se começava a discutir a respeito da “proletarização dos professores”, isto é, o rebaixamento salarial da categoria e a sua perda de controle do processo de ensino.

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