domingo, 2 de abril de 2023

Mundo do trabalho

 

Foram as notícias de superexploração de trabalhadores na colheita da uva que desencadearam essas memórias a respeito da minha trajetória no Magistério Estadual. Não, eu não vivi situação semelhante na minha atividade profissional. Apenas me interessava, como professor, por esta realidade cruel – a da existência de relações de trabalho à revelia da legislação, motivo de sofrimento e humilhação para muitos – e a tematizava em sala de aula.

Dito de outra maneira, mais ao estilo de um professor de História, meu foco era a permanência de práticas arcaicas de trabalho, enquanto a economia se encaminhava para formas modernas de relações trabalhistas. Isto acontecia na década de 1970, continua ocorrendo hoje (em pleno século XXI) e, não sei porque cargas d’águas, me surpreendi.

Minha situação, no entanto, sempre foi amena, se comparada com o quadro vivido pelos trabalhadores baianos no “moderno território do capitalismo da Serra Gaúcha”. Quando, no início da minha atividade como professor, me deparei com uma situação irregular, questionável do ponto de vista da Legislação Trabalhista, tive o luxo de encarar a questão judicialmente.

Naquela época (1980), eu soube de um advogado (Tarso Fernando Genro) que entrara com ações trabalhistas contra o Governo do Estado, requerendo os direitos da CLT para os professores com “contrato emergencial” (meu caso), e fui consulta-lo com um grupo de colegas.[i]

O advogado nos explicou:

– Frente à Legislação Trabalhista, só existem dois casos: ou o sujeito é estatutário ou é regido pela CLT. Vocês, professores contratados, não são uma coisa nem outra e isto é irregular. Vou requerer o enquadramento de vocês como celetistas e, desta maneira, o ganho de uma série de benefícios legais.

Demos autorização para o ingresso das ações (alguns professores desistiram no meio do caminho, acho que ficaram com medo) e eu acompanhei o processo com vivo interesse. No meu entendimento, uma aula a respeito de como o mundo funcionava.

Me recordo de uma noite, na escola em Canoas, quando vieram uns técnicos (acho que da Justiça do Trabalho) para medir a intensidade da luz na sala de aula. Examinar se as condições de trabalho seguiam as exigências legais, se a luz era adequada ou não.

O processo levou quatro anos para chegar ao final e o resultado foi o esperado: vitória. Só não valeu a questão da qualidade ou intensidade da luz, pois não havia legislação a respeito, como existia para o trabalho dos bancários. O ganho financeiro possibilitou a compra de uma máquina de lavar, um utensílio doméstico caro e super útil para um casal de professores (como era meu caso) que acabava de ter uma filha. Afora isso, aprendi, na prática, que há um front legal para enfrentar as irregularidades e/ou explorações do mundo do trabalho. Nem tudo está perdido “no mundo regido pela lógica do Capital”.

De certa forma, era o que eu tematizava na sala de aula: a realidade do mundo do trabalho, tão injusta para a maioria dos trabalhadores, pode ser enfrentada, existem possibilidades de enfrentamento. Alguns – os homens de vida amarga, do poema de Ferreira Gullar – vivem completamente à margem da legislação, enquanto outros podem dispor da Justiça do Trabalho... Uma realidade muito difícil de articular, mas que eu arriscava, provocando os alunos (crianças, adolescentes e jovens adultos) a também falarem sobre o assunto.



[i] Quando entrei na sala, Tarso estava falando com o pai por telefone – o seu Adelmo, como eu viria conhecer e chamar nos anos 90, em Santa Maria, na Associação Santa-Mariense de Letras, e com o qual faria livros coletivos de crônicas (“Da Boca do Monte”, 2000; “O apito do trem”, 2002).

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