quarta-feira, 12 de abril de 2023

Sindicalismo às vezes atrapalha

 

O melhor das aulas era o que surgia espontaneamente. Eu sempre tinha um roteiro (plano de aula) escrito num caderno (ou em folhas avulsas), mas não conseguia segui-lo. Nas aulas do Curso Supletivo (na Escola Ana Néri) isso parecia ser a regra.

Certa noite, o planejamento do dia indicava a necessidade de desenvolver o período da República Velha, dominada politicamente por cafeicultores, voltados exclusivamente à exportação de seu produto, dispostos a fazerem a sociedade e o Estado brasileiros girarem em torno dos seus interesses, e, de repente, aquela conversa soou completamente sem sentido.

– Por que cargas d’águas a gurizada precisa aprender isso? – eu perguntei a um colega, durante o intervalo.

Ele me respondeu na lata:

– Porque está no currículo, porque isso vai ser cobrado deles em algum momento, em alguma prova ou concurso.

Era a resposta sabida e aceita, mas mesmo assim não invalidava o questionamento.

As salas de aula na Escola Ana Néri eram pequenas, atulhadas de classes e cadeiras, com pouco espaço para circulação, e muitas vezes me senti acuado, de pé, diante dos alunos (espremido entre os alunos e o quadro verde). Seguia o roteiro oficial (o currículo e as avaliações recomendadas) e certa noite, ainda tratando da República Velha, abordei o surgimento do mundo fabril, a nascente classe operária, a ausência de legislação trabalhista e a formação dos primeiros sindicatos.

– Sindicatos são fundamentais para a classe trabalhadora, pois asseguram melhores salários e também boas condições de trabalho – enfatizei. – Olhem o que está ocorrendo no ABC paulista: um novo sindicalismo está proporcionando ganhos concretos para os operários das montadoras de automóveis. Um exemplo para o País.

Uma aluna na primeira fila fez uma careta e acrescentou:

– Mas nem sempre é assim. Sindicalismo às vezes atrapalha. Vê só o meu caso. Meu namorado trabalha no sindicato dos comerciários, me viu lavando a vitrine da loja e denunciou o meu patrão. Eu fui contratada para trabalhar no balcão e meu namorado disse que não era correto me mandarem fazer serviço de limpeza. A loja pagou a multa e me mandou embora na mesma hora. O que eu ganhei com o sindicato?

Fiquei parado escutando a guria, não sabendo como encaixar a sua história na minha aula. Uma baita história, claro, um caso concreto de ação sindical na vida de um trabalhador, mas não servia ao que eu pretendia.

– Não é um bom exemplo – deu disse.

No entanto, a turma inteira concordava com ela. Sindicalismo era coisa que aqueles jovens adultos – muitos deles empregados em lojas e escritórios – não viam com simpatia. Pagavam o imposto sindical, mas pouco sabiam dos tais sindicatos. Uma realidade distante das suas vivências cotidianas, enquanto eu, um professor entusiasticamente associado ao CPERS, vivia integralmente o mundo sindical.[i]

– Mas o exemplo da colega não invalida o que estou dizendo – eu afirmava, reafirmava, com a impressão que estava pregando no vazio.


[i] Naquele tempo, o CEPRS (Centro dos Professores do Rio Grande do Sul) ainda não era um sindicato e, sim, uma associação. Só se tornou sindicato com a Constituição de 1988. Mas para muitos de nós, “professores engajados”, era como se fosse. A entidade vivia uma grande transformação e crescimento, assumindo cada vez mais uma postura de defesa dos “professores enquanto trabalhadores da educação”, rompendo com a ideia do magistério como sacerdócio (ideia muito comum, mesmo entre os professores), e colocando a categoria no “quadro mais amplo da luta da classe trabalhadora”.

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