sábado, 16 de dezembro de 2023

Despir a armadura de Cavaleiro Andante

 

Estou lendo A Rainha do Tráfico, romance de Arturo Pérez-Reverte (Ed. Record, 2015, 518 p.), e interrompo a leitura para fazer um comentário a respeito de uma passagem do livro.

A personagem principal, Tereza Mendoza (que vai se tornar mais tarde a chefe de uma rede de distribuição de drogas no sul da Espanha), acorda durante a madrugada, caminha pela casa e vai espiar o amante construindo a maquete de um barco. É o hobby do rapaz. Ele é um exímio piloto de lancha e o casal trabalha no transporte de drogas entre Marrocos e Espanha (na década de 1980).

Ela tem 24 anos e fugiu do México porque o seu companheiro (também traficante) foi morto e ela, jurada de morte. Na Espanha, volta a se envolver com outro criminoso (um galego, 30 anos) e, olhando-o naquela madrugada (enquanto ele está distraído na montagem de uma maquete), ela reflete a respeito da tendência sonhadora dos seres humanos. Todos sonham, mas não do mesmo modo. Enquanto alguns arriscam a vida no mar numa Phantom (o tipo de lancha que o amante espanhol utiliza para traficar drogas) ou no céu em um Cessna (o tipo de aeronave que o antigo companheiro usava para transportar drogas entre o México e os Estados Unidos), outros constroem maquetes como consolo e outros se limitam a sonhar. Alguns, no entanto, constroem maquetes, arriscam a vida e sonham. Tudo ao mesmo tempo.

As reflexões da personagem me calaram fundo. Todos somos sonhadores, não há como escapar. Eu, no entanto, sou daqueles que apenas se limitam a sonhar. Não sei fazer maquete e, muito menos, me arriscar em ações perigosas, como o amante de Teresa.

O casal opera entre Marrocos e Espanha (Teresa, apesar de não ser uma sonhadora, acompanha o companheiro na lancha), traz haxixe da África para desembarcar na Costa del Sol e coloca a vida em risco. Eles navegam próximo a Fuengirola, uma localidade da costa espanhola do Mediterrâneo e interrompi a leitura, quando esse local foi citado...

Fuengirola - Costa del Sol.

Estive em Fuengirola, em 2015. Estava viajando com minha antiga companheira, descemos de Sevilha até a Costa do Sol (numa van, junto com um grupo de turistas) e chegamos em Fuengirola no meio da tarde. Visitamos uma mesquita, caminhamos na beira da praia e tomamos café num bar em frente ao mar. Era um bonito dia de inverno, ensolarado e frio.

Havia um castelo numa colina próxima, convidei minha mulher para ir até lá, porém ela estava cansada e preferiu voltar ao hotel. Eu segui em frente, subi a colina e dei uma volta em torno da fortaleza que, segundo as informações, remontava ao tempo dos mouros. O castelo estava com as portas fechadas para visitação e me sentei num banco no lado de fora, na sombra das muralhas. Era a primeira vez que via o Mar Mediterrâneo e me lembrei das cenas finais do filme El Cid, que assisti pela primeira vez com 10 anos de idade... As cenas do cerco de Valência, pelos mouros, defendida bravamente pelas tropas de Cid, o Campeador. Em Sevilha, dois dias antes, num passeio de charrete pela cidade, cruzara por uma estátua dedicado ao herói da Reconquista e me surpreendera com o fato dele ainda ser festejado na Espanha.

Castelo medieval, em Fuengirola.

Naquele entardecer em Fuengirola, minha imaginação voou longe e “voltei” ao tempo das lutas entre mouros e cristãos. E então, por conta dessas associações malucas que o pensamento faz, me dei conta (numa intensidade rara, que se agudiza a cada vez que relembro o episódio) de que eu era um sonhador inveterado. Em terras de Espanha, nas margens do Mar Mediterrâneo (que lugar propício para um sonhador!), vivi o que sempre fui: um sonhador alucinado. Um guri que sonhou desbragadamente, um homem que continuou com os pés na Lua, idealizando a vida, as pessoas e as mulheres especialmente.

O romance de Pérez-Reverte me devolveu essa experiência vivida na Espanha, na Costa do Sol. Um traficante, piloto de lancha, sonha grandezas e vive perigosamente, enquanto a sua amante, sem os mesmos delírios, o acompanha nas operações de transporte de drogas, navegando ao seu lado. Teresa, uma mexicana telúrica e atávica, que reconhece a propensão de todos os seres humanos ao sonho... mas não se entrega a isso. Antes de mais nada, Teresa quer sobreviver.

Fuengirola se tornou uma referência para mim. Um marco nesse grande esforço, nunca concluído, de romper com o idealismo exacerbado que marca minha vida inteira. Em Fuengirola – em terras de Espanha, revivendo as glórias da Reconquista – senti que já era tempo de despir a armadura de Cavaleiro Andante que vesti na infância e juventude. Acho que nunca vivenciara o assunto com aquela intensidade... Acho que nunca sentira que era preciso (e possível) mudar. Ia completar 60 anos. Não dava mais para bancar Dom Quixote.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Um dente contra a Ditadura

 

Nos anos 1980, um dos meus assuntos recorrentes era o Regime Militar brasileiro. Fui leitor de primeira hora de Brasil: Nunca mais (Ed. Vozes, 1985) e senti verdadeiro embrulho no estômago ao longo da leitura. A truculência da repressão fora bem pior do que imaginara. Encontrei a crônica abaixo (publicada no jornal A Terceira Margem, em setembro de 1991) e acho que o texto dá conta tanto do sentimento com que vivi os anos 80 como o modo como o Regime Militar ainda se fazia presente.

Segue a crônica, feita com personagens imaginários, criados a partir do que eu experimentava, isto é, um desalento em relações às condições socioeconômicas do País (que a Nova República / Governo Sarney não conseguira modificar):

Até um mês atrás, Berenice acreditava em saúde pública. Mas a última campanha contra o sarampo deixou-a bastante descrente. “Eles gastam muito em propaganda, têm um pessoal que sabe pousar na TV, mas na hora H as vacinas estão vencidas”, ela desabafou para o marido.

Berenice tem uma filha de cinco anos e fez questão de atender ao apelo da Secretaria de Saúde. Mas teve receio de contaminação por agulhas e foi tranquilizada por uma enfermeira. Ela explicou que “pistolas” injetavam por pressão e não utilizavam agulhas. O marido achou a explicação razoável e eles resolveram confiar. Berenice perdeu uma tarde de serviço no Banco e levou a menina ao Posto de Saúde.

Uma semana depois, o marido abre o jornal e lê para ela que as vacinas estavam sob suspeita. Não haviam sido preparadas adequadamente, os prazos de validade estavam vencidos, técnicos do Rio de Janeiro vinham investigar. Berenice sentiu o chão faltar aos seus pés e abraçou a filha como se fosse o fim. Passou metade da noite sentada ao lado da menina, ela não desconfiou de nada e gostou de ver a mãe junto de si. Berenice comentou com o marido que agora sabia o que era ser uma cidadã de segunda classe. E acrescentou: “a maioria dos brasileiros está na mira da incompetência deles”.

E hoje eles recordam que há catorze anos, em agosto de 1977, enfrentavam a polícia de choque na Avenida João Pessoa, sonhando com um Brasil melhor. Eram estudantes universitários e lutavam contra a ditadura. Expunham-se diante dos cassetetes da polícia e fugiam quando eles se aproximavam. Numas dessas fugas, Berenice escorregou na calçada e quebrou a ponta de um dente. Um dente contra a ditadura. Berenice lembra até hoje. E não sabe se valeu à pena. Se alguma coisa vale à pena.

(A Terceira Margem – P. Alegre, nº. 7 – setembro / 1991. P. 8, com o título "Saúde Pública".)

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Violência doméstica

 

Há lembranças que não passam de lampejos. Às vezes apenas uma frase, um olhar, um comentário dito rapidamente. Por exemplo: chego na escola no início da tarde (em Canoas) e uma professora está contando (na sala dos professores) que foi ao hospital visitar uma aluna que apanhou da mãe. A surra foi tão grande que a menina teve de ser levada ao pronto-socorro.

Lembro da professora falando e não recordo se ela estava indignada com o fato ou não. Ela conta que, ao chegar ao saguão do hospital, a mãe da menina estava lá, debulhada em lágrimas, dizendo que “não era isso que queria fazer”.

Escuto o relato preparando meu material para as aulas que teria de ministrar em seguida, a sirene da escola já vai tocar, tenho quatro ou cinco períodos de aulas pela frente e minha atenção está dividida. Nunca soube o nome da aluna, nunca identifiquei a guria entre as minhas dezenas de alunos.[1] Nem recordo o desdobramento do caso: se a menina foi atendida pelo SOE nem se a mãe também teve algum aconselhamento ou coisa semelhante.

Não havia Estatuto da Criança e do Adolescente, não havia Conselho Tutelar, e não lembro como casos como esse eram conduzidos. Da minha parte, às vezes tomava conhecimento de casos extremos de violência doméstica (raros), mas sempre de forma fragmentada. Minha função era falar a respeito das Capitanias Hereditárias, do trabalho escravo, das revoltas nativistas, da formação do Estado brasileiro e me limitava a isso.

– Professor ensina conteúdo, educação é tarefa dos pais. Se os pais ainda acham que devem surrar os filhos, para melhor educá-los, é problema deles.

Costumava ouvir esse tipo de comentário e não discordava. Mas ficou a lembrança de que muita coisa ocorria com aquelas crianças – que eu assistia entrarem sorridentes pelo portão da escola –, muita coisa a respeito das quais eu vislumbrava e que talvez fosse melhor saber e agir a respeito.

– Muitas delas apanham, como nós apanhamos, Vitor – me dizia um colega que eu sempre achei que sabia das coisas, isto é, conhecia o modo como viviam nossos alunos.

– Eu apanhei pouco – eu falava. – Minha mãe era professora primária e estudou Emílio, de Rousseau. Ela não era adepta de práticas pedagógicas violentas. Meu pai fora criado à base de surras, mas ouvia muito minha mãe e se continha.

Assim eu respondia ao meu colega e ele ria. Falava que minha mãe devia ser uma mulher interessante. Um dia comentei sobre a menina que fora parar no hospital e ele divagou:

– Deve ter sabido que ela andava namorando por aí e teve medo que a guria engravidasse. As mães ficam loucas com isso.

 

Obs.: Emílio ou Da Educação foi um romance a respeito da educação de um nobre e também de sua possível esposa, publicado por Jean-Jacques Rousseau, em 1762. Tornou-se a base de grandes teorias educacionais e, pelo que contava minha mãe, ainda constava da bibliografia da Escola Complementar, em Pelotas, no início da década de 1940.



[1] Eu costumava ter entre 14 e 16 turmas (a maioria com dois períodos por semana), cada uma com 25 alunos (mais ou menos), o que resultava numa média de 350 alunos e uma lista danada de nomes, rostos, perfis e histórias devidamente embaralhados.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Mulheres na região de colonização italiana

 

Defendi tese de doutorado a respeito da Igreja Católica numa região de colonização italiana (no caso, na região central do Estado, no município de Santa Maria, o qual, no final do século XIX, abrigou um núcleo de colonização, denominado Quarta Colônia, hoje dividido em vários municípios). Assim, durante muito tempo, frequentei eventos acadêmicos relativos aos estudos de imigração. Assisti a painéis, comunicações e palestras muito interessantes, mas do que lembro com mais intensidade são as conversas ao final dos encontros. No bar, em torno de xícaras de café, ou nas alamedas dos campis universitários, batendo pernas e falando a respeito de como viviam os colonos.

Imigrantes italianos na Serra Gaúcha.
Fonte: mulhersingular.com.br/2015/12

Um tema recorrente era o do papel da mulher nessas regiões de colonização (na Serra Gaúcha, em especial), a inserção feminina no modelo de economia centrado na pequena propriedade rural (que os colonos tinham acesso pela política de colonização e que pagavam a longo prazo). Lote de terra que exigia exploração intensiva para garantir a sobrevivência familiar, com uso de mão-de-obra constituída por pai, mãe e quantos filhos eles pudessem ter.

Nesse projeto, então, a mulher tinha um papel fundamental. Em primeiro lugar, cabia a ela prover a família de filhos, no maior número possível. Em segundo, garantir a sobrevivência dos mesmos e manter unidade da família com o seu trabalho.

Nos anos 90 orientei um trabalho a respeito do trabalho feminino nos primórdios da Quarta Colônia e me surpreendi com os dados que o aluno trouxe. Como as mulheres trabalhavam! No serviço doméstico, na roça, na horta, no estábulo de animais. E ainda pariam um filho atrás do outro: oito, dez, doze e até vinte. Um número que não estava na conta das suas mães e a avós, na Itália, pois lá as condições não eram propícias para uma família numerosa.

As autoridades civis e religiosas aprovavam tal projeto de economia e sociedade assim como o papel da mulher nesse modelo. Até a década de 1960 houve bonificação estatal para as crianças até os três anos de idade e a Igreja, por sua vez, dava reforço à estrutura familiar e estabelecia as normas morais, tanto exaltando a família numerosa quanto colocando a atividade sexual restrita à reprodução. Que os casais tivessem filhos, sim, muitos, mas que não se refestelassem com as delícias da carne.

As conversas das quais eu lembro eram justamente sobre isso: os desdobramentos comportamentais da adoção desse modelo de colonização. Muitos dos meus interlocutores tinham o pé na colônia, com avós e pais nascidos na região e, muitas vezes, até eles mesmos com vivência infantil nas colônias. Então falavam de suas famílias com muitos irmãos e nas mães se queixavam e se orgulhavam da quantidade de filhos. Contavam da trabalhareira, das diversas atividades domésticas e como as mães dividiam esses afazeres entre as crianças (as irmãs mais velhas se responsabilizando pelos mais novos, por exemplo), assim como do trabalho produtivo, comandado pelo pai.

A tirania dos pais era assunto recorrente (mas não abordado nos trabalhos acadêmicos apresentados nos congressos), um autoritarismo repartido entre pai e mãe. Muitas vezes, cabendo à mãe o exercício do poder de forma mais crua, isto é, era ela quem surrava, ficando ao pai algo simbólico de ser o suporte dessa estrutura doméstica.

Recordo em especial de uma pesquisadora esbelta e refinada relatando as surras monumentais que as mães praticavam no lombo dos filhos (em especial das filhas mulheres), enquadrando-as no serviço doméstico, para aliviá-las das tantas tarefas que eram obrigadas a exercer. Surras nas quais uma vara de marmelo muitas vezes era o instrumento. A pobre da menina apanhando da mãe e o pai ali perto, distante, como se isso não tivesse relação com ele. Afinal o mundo doméstico era espaço do poder feminino e o homem pouco se intrometia nessa esfera.

Lembro dessas conversas. E também do espanto que tive quando descobri que minha colega professora estava relatando também a sua vivência infantil: mulher que na infância foi surrada pela mãe, com a complacência do pai. Experiência de criança que sofreu os desdobramentos do modelo econômico da colonização italiana no Rio Grande do Sul. Tudo em prol da pequena propriedade rural, base de um projeto socioeconômico exitoso!

 Nem sei os danos que isso acarretou para a guria. Nem sei que feridas (emocionais) ela carregou o resto da vida, mas tenho a certeza de que elas ficaram sem cicatrização por muito tempo. Se é que um dia cicatrizaram. Não esqueço a sua expressão, o que seus olhos gritavam.

– As coisas eram assim naquele tempo – dizia ela. – Minha mãe foi criada desse jeito. O pai, idem. Todos apanharam. E eles seguiram batendo nos filhos. Ninguém achava isso ruim. Meus irmãos até hoje me olham feio, quando eu digo o contrário. Eles dizem que desmereço a criação dada pelos nossos pais, que tanto se sacrificaram pelos filhos.

sábado, 25 de novembro de 2023

Ouvindo os alunos

 

Meu batismo de fogo no Magistério Estadual foi com as crianças do Ensino de 1º Grau, em Alvorada e Canoas.[i] Em 1983, no entanto, com minha aprovação em Concurso Público do Estado e a nomeação nas escolas porto-alegrenses Ana Néri (Bairro Minuano) e José Feijó (Bairro Rubem Berta) passei a lidar com outra clientela: a dos adolescentes e jovens adultos.[ii] Se antes ouvia os alunos falarem dos pais trabalhadores, agora escutava os próprios. Uma gurizada que trabalhava em supermercados (como empacotadores, carregadores ou, um caso excepcional, como gerente), nos escritórios (como boys ou nas atividades de limpeza), em serviços gerais (supervisionando a descarga de arroz), no trabalho doméstico (como empregadas e babás) e até no jogo do bicho.

Muitas vezes, na Escola Feijó, durante o horário do recreio, dava preferência a ficar no pátio com os alunos ao invés da sala dos professores, com meus colegas de ofício. O Feijó era uma escola de 2º Grau, frequentada por adolescentes de Alvorada, Parque dos Maias e Rubem Berta, e eu gostava de ouvir suas histórias. Além das atividades no mundo do trabalho, as histórias das suas vidas: os bailes comportados em salões paroquiais, a pregação severa dos pastores evangélicos e os namoros de sofá com vigilância familiar (que eu imaginava não existirem mais), assim como as histórias de namoros mais ousados, a dificuldade de acesso à métodos contraceptivos, pílulas anticoncepcionais tomadas de forma errada e temores em relação à possíveis gravidezes... Histórias variadas que me permitiam olhar o mundo de outra maneira.

Uma manhã (eu lecionava apenas no turno da manhã no José Feijó) um aluno narrou a sua atividade de entregador de bebidas na Sogipa (Sociedade de Ginástica Porto-Alegrense) e me espantei quando ele disse:

– Um clube de burguês. Só gente rica lá dentro.

Ele descreveu a sua entrada de Kombi pelo portão dos fundos do clube, os engradados de refrigerante e cerveja que ele descarregava no bar em frente às quadras de tênis e os tenistas, todos eles, vestidos de roupas brancas.

– As gurias e até as coroas com umas saias curtinhas mostrando até as calcinhas. Uau!

Uma realidade que eu conhecia bem, pois fora sócio do clube desde 1967 (quando chegara a P. Alegre com meus pais e irmãos). No início dos anos 70 até jogara tênis naquelas quadras, com roupa branca e tudo mais, e conhecera de perto a formosura das tenistas de saias curtas. No entanto, nunca me dera conta de que era um “clube de burguês”, apesar de ter ouvido um diretor da entidade afirmar (por volta de 1980), que não havia mais necessidade de um grande número de sócios com mensalidade baixa, pois a nova sede já estava concluída e o clube precisava reconfigurar o perfil dos associados, aumentando as mensalidades e privilegiando as classes A e B.

Nessa reconfiguração dos associados da Sogipa, claro, eu dancei. Deixara de ser dependente do pai (como fora nos anos 60 e 70), tornara-me sócio titular e não aguentei o valor das mensalidades com meu salário de professor. Abandonei o clube sem nunca regularizar minha situação na secretaria – envergonhado com a minha precariedade financeira, devo acrescentar.

Como assalariado, eu  vivia um “processo de proletarização” (mesmo na condição de professor concursado) e, na fala daquele aluno (negro e entregador de bebidas), estava bem colocado que aquele não era mais um clube para mim. Um aluno, por sinal, muito participativo em sala de aula, com intervenções preciosas a respeito do conteúdo. Um aluno a me indicar outros modos de olhar o mundo, assim como de me reposicionar na estrutura social.



[i] Fiz parte da legião de professores que ingressou no Magistério Estadual por meio de pistolão e ficou aguardando concurso para se tornar efetivo.

[ii] Em Canoas, tive alunos adolescentes. Mas, na minha lembrança, é a partir das escolas de P. Alegre que eles se impõem. É como se fosse um corte. O período nas escolas de Alvorada e Canoas ficou marcado pelo predomínio das crianças.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Pensar a revolução brasileira

 

As turmas de supletivo da Escola Ana Néri, constituídas por jovens adultos, foram uma batalha inglória. Sim, eu era um professor treinado apenas para atuar com alunos em idade regular. Não, eu não tinha preparo para lidar com jovens adultos, estudantes de mais de 18 anos que não haviam concluído o 1º Grau e que tinham com enormes dificuldades para ler e escrever.

Nessas condições, não era raro eu interromper uma explanação devido à dificuldade dos alunos em compreende-la, ficar parado no meio da sala e pensar: “E agora, o que eu vou fazer?” Os alunos não estavam entendendo coisa alguma e eu não sabia como continuar a aula, isto é, como tornar o conteúdo mais acessível.

Então olhava um aluno – um rapaz cansado, vindo do interior, do interior do município de Camaquã, boy num escritório do centro da cidade, almejando um emprego melhor – e sentia a necessidade de encontrar um jeito de continuar. Voltava ao quadro verde, escrevia com giz as palavras chaves – latifúndio, lavoura do café, economia de exportação, oligarquias centrais e periféricas, república oligárquica –, explicava cada uma delas e, juro, achava que estava resolvido. Estava pelada a coruja!

Quando terminava o turno, descia as escadas em direção à rua (a escola ficava bem acima do nível da calçada) e caminhava com um colega em direção à parada de ônibus. Às vezes encompridávamos o trajeto para conversarmos melhor. Ele e eu muito instigados pelo desafio de lecionar para aquela gurizada.

Ele, um professor um pouco mais moço que eu e muito melhor preparado, com melhor formação teórica. Nós dois nos achando pouco qualificados para o ensino de jovens adultos e pensando em como melhorar o nosso desempenho.

Numa noite em que resolvemos encompridar o caminho até a parada de ônibus porque a conversa estava boa, enveredamos para um papo de política (o que não era raro, educação e política sempre se embricavam na nossa perspectiva) e, dessa vez, com alguma irritação de parte a parte. Ambos acompanhávamos sem entusiasmo o modo conciliador como se dava a transição do Regime Militar para a Democracia. A derrota da emenda das eleições diretas para a Presidência nos incomodara, a escolha de Tancredo pelo Colégio Eleitoral não nos empolgara e o governo do Sarney, então, nos parecia patético.

Naquela noite divergíamos quanto aos rumos que a oposição petista devia tomar e então, de repente, meu amigo afirma:

– Assim não dá. É preciso pensar a Revolução Brasileira.

Eu me viro para ele e vejo seu rosto voltado para o alto. Olho na mesma direção, não enxergo coisa alguma e penso em perguntar se ele está falando sério. Mas não digo nada, escuto seus argumentos a respeito do “caminho revolucionário” e não sei o que dizer. No fundo, também achava que assim não dava. Mas era um delírio, um delírio completo, pensar em Revolução.

Alcançamos a parada, vimos o ônibus chegar e subimos. Passamos a roleta, sentamos no mesmo banco, e ele continuava nas alturas, isto é, falando das condições objetivas, as condições subjetivas, a correlação de forças entre a burguesia e o proletariado, as tarefas de um partido que se propõe a transformar a realidade...

Vejo que está chegando a minha parada, me despeço, desço do ônibus, ainda tenho cinco longas quadras para andar até chegar no meu apartamento e faço isso com a cabeça fervendo.

Lecionar no supletivo do Ana Néri foi uma batalha inglória. O confronto entre a formação limitada que recebi na Faculdade de Educação e um duro embate com a realidade daqueles alunos “carentes” (“carentes de formação básica”, era assim que se falava). Acho que diante dessa situação, divagar a respeito da revolução era um sonho que aliviava. Sei lá.

Seja como for, eu não chegava em casa desanimado. Pelo contrário.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Tesouro roubado

 

Entre 1985 e 89, lecionei numa escola da Cidade Baixa, a Escola Estadual de 1º Grau Olintho de Oliveira. Tinha me mudado para o centro da cidade e a transferência de uma das minhas matrículas para uma escola perto de casa não era só uma comodidade, mas também uma economia em passagens de ônibus.

Dessa maneira, comecei a lecionar pela manhã na Escola Feijó (quase no limite com Alvorada) e, à noite, no Olintho de Oliveira, na Rua da República. Uma escolinha que funcionava num casarão antigo, mais um prédio de construção recente (de tijolos vermelhos) nos fundos do enorme pátio. O doutor Olintho (a quem a escola homenageava no nome), além de médico e professor de Medicina, fora um intelectual atuante na vida cultural de Porto Alegre no início do século XX, e isso eu sabia vagamente (devido às leituras da coluna do Aldo Obino no Correio do Povo e de conversas com minha sogra).[i]

O casarão do falecido médico estava em condições tão precárias que não abrigava nenhuma sala de aula (todas as salas de aula estavam no prédio anexo), apenas a direção, a secretaria, o SOE, a cozinha, o refeitório e a biblioteca funcionavam ali.

Uma vez chegaram uns livros do IEL (Instituto Estadual do Livro), enviados pela DE (Delegacia de Educação), e eu me interessei por uma reedição d’O tesouro do Arroio do Conde, de Aurélio Porto. Sentado na frente da mesa da bibliotecária (numa sala do térreo do velho casarão, numa noite chuvosa), comecei a folhear o livro, me inteirar do assunto – um folhetim publicado em 1931, editado pela Globo em 1933, reeditado pelo IEL em 1983, com prefácio elogioso de Barbosa Lessa (Secretário de Cultura do Governo Amaral de Souza) – e a responsável pela biblioteca me disse:

– Leva pra ler em casa, Vítor. Só tu pra se interessar por isso.

E completou:

– Se gostares, fica com o livro. Ninguém vai sentir falta.

Pois eu o trouxe para casa, levei um tempão para ler do início ao fim... e nunca mais devolvi. Até hoje tenho o livro como uma espécie de tesouro roubado desse mundo escolar que frequentei. Um folhetim romântico (de “sabor popular”, diz Barbosa Lessa), na qual uma moçoila de 15 anos, numa estância na região de Guaíba, no ano de 1777, desencadeia paixões em dois marmanjos. Um deles, um contrabandista semibárbaro (filho de Jerônimo de Ornellas); o outro, um tenente do Regimento dos Dragões, educado em Academia Militar e com atos de bravuras na defesa da Colônia de Sacramento. Dois marmanjões caídos de amores por uma guria.

Além dessa trama romântica, uma narrativa da formação da sociedade rio-grandense (a mistura dos bárbaros do campo com os conquistadores europeus, mediados pelo amor de uma donzela) e a tentativa de criação de uma lenda em torno disso. Um resultado sofrível, do meu ponto de vista, mas nem por isso menos interessante.

Com a imaginação povoada por essas fantasias gauchescas e românticas, eu atravessava o pátio entre o casarão e o prédio anexo e ia dar aulas de História para as turmas de 5ª a 8ª séries. Algumas vezes falava do passado sul-rio-grandense – as lutas de fronteiras, a presença dos indígenas, a figura do gaúcho, as primeiras estâncias –, mas nunca sobre O tesouro do Arroio do Conde. Essa estranha preciosidade eu sempre guardei só para mim.



[i] Aldo Obino (1913-2007) fez crítica de arte no Correio do Povo (de 1938 a 1984) e era uma referência para quem se interessava por arte (mesmo não concordando com sua perspectiva conservadora). Além disso, às vezes historiava a vida cultural porto-alegrense e recordo que num dos seus artigos citou o papel de Olintho de Oliveira (1865-1956) na criação da Academia Rio-Grandense de Letras (1901) e do Instituto de Belas Artes (1908). Minha sogra, dona Célia (nascida em 1912), era leitora voraz do Correio do Povo (das colunas de Obino inclusive) e conversámos muito a respeito da vida cultural da cidade. A partir das suas observações (muitas delas oriundas da sua vivência) fui aprofundando meu entendimento sobre o passado porto-alegrense e, numa das nossas conversas, entrou o doutor Olintho – que ganhou relevo para mim a partir do momento em que comecei a trabalhar na casa onde ele morou algum dia.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Motorista bonita e atraente

 

Peguei um aplicativo na saída do shopping e entrei no carro fazendo comentários a respeito do tempo: as temperaturas altas, as chuvas que não acabam, essas coisas. Banalidades. Mas logo percebi a extrema beleza da motorista – mulher loura de cílios longos, unhas grandes e pintadas, figura de capa de revista – e me calei. Vê só o que pensei: “Ela vai achar que estou dando em cima”. Me aquietei e fiquei olhando pela janela. Sete quilômetros entre o shopping e o meu apartamento.

Tenho escutado tanto a respeito de mulheres que se sentem abusadas, agredidas, humilhadas, que nem sei mais avaliar. Às vezes acho exagero por parte delas, mas vá saber. Melhor estar atento e ter cuidado.

Então ouvi a motorista falando e demorei a entender que não era comigo, mas com alguém num aplicativo do celular fixado no painel do carro. Uma conversa que eu não compreendia, pois o som era baixo, de repente aumentava exageradamente e depois voltava a diminuir. Quando o som aumentou novamente, a voz gritando dentro do veículo, a motorista se desculpou e disse que era coisa do aplicativo. “O som não é bom”, ela falou, “não é equilibrado”. E explicou que era um grupo de motoristas, mais de cem, na cidade e na região, e que eles estavam em contato o tempo inteiro. Se algum fosse assalto e agredido, eles logos socorriam. Se sumisse, por qualquer razão que fosse, eles logo encontravam. Acionavam Deus e o Mundo.

Observei mais uma vez o perfil bonito e atraente da motorista e pensei se ela estava me avisando de alguma coisa. “Tá me tomando por bandido ou abusador?”, pensei. Eu estava de bermudas, barba de três dias, e quis que a viagem terminasse logo. A mulher seguia falando e explicava os cuidados que tinha de tomar, especialmente fazendo horário noturno.

Eram nove da noite e eu só pensava se eu pisara na bola, dissera alguma coisa indevida, sei lá, os protocolos de convívio social se complicaram, as palavras passaram a ser alvo constante de vigilância (para identificar e coibir linguagens racista, machista, discriminatória), eu às vezes não policio minha fala... e bem posso cometer algum deslize.

A motorista continuava a conversa a respeito do grupo, que tinha como símbolo uma caveira e não fazia distinção de sexo, orientação sexual nem raça. “Afinal é tudo igual”, ela dizia, “por trás da pele, do sexo, é só osso e esqueleto, uma caveira, não é mesmo?” E eu respondi que sim e ela emendou, animada: “Um grupo preocupado com segurança de todos”. E fui percebendo que não tinha nenhuma mensagem sub reptícia para mim. Era apenas a fala de uma mulher entusiástica com a sua atividade profissional, certamente feliz por estar na noite, conversando com seus colegas de profissão e criando uma rede de comunicação fraterna sobre o traçado da cidade.

Quando ela estacionou perto do meu prédio, desci aliviado. Era uma motorista bonita e atraente, a mais bonita que já encontrei até hoje. Engraçado eu ter achado que pisara na bola e ela estava dando o troco... Devo andar muito assustado, ressabiado e imaginando coisas.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Modelos de negócios e de crimes

 

Em julho de 2018 fiz um passeio a Rocinha, no Rio de Janeiro. Uma caminhonete com carroceria adaptada para transporte de passageiros passou na frente do hotel, minha companheira e eu embarcamos, e tive a impressão de que íamos a um safari. Num grupo de dez pessoas, canadenses na sua maioria, éramos os únicos brasileiros. “São os estrangeiros que gostam de visitar as favelas”, explicou o guia da excursão.

Descemos no alto da Rocinha, o guia trocou sinais com os moradores (para se assegurar que “a situação estava sob controle”) e seguimos a pé pelo bairro durante toda a manhã, caminhando até o asfalto da Av. Engenheiro Mac Dowell. Ruas estreitas, habitações de todos os tipos (muitas delas com pouca iluminação solar), “lajes” com acomodações para festas, motocicletas de alta cilindrada nas ruas e dentro das casas. Um bairro com aparência tranquila, com pessoas idosas na porta das casas cumprimentando os passantes.

No entanto, lá pelas tantas, o guia me avisou que segurasse a máquina fotográfica de maneira que não parecesse que eu estivesse filmando. “Os olheiros do tráfico estão atentos”, ele avisou. No caminho cruzáramos por policiais fortemente armados, mas isso não significava que os traficantes não tinham algum controle da área. Algo difícil de entender: um território compartilhado pelos poderes da polícia (do Estado) e o dos traficantes.

Realidade difícil, claro, para quem não é carioca. Na véspera escutara uma moradora do bairro (garçonete na Confeitaria Colombo, no interior do Forte de Copacabana) e ela garantira que a Rocinha era um local bom de morar. “Às vezes tem tiroteio, mas a gente aprende a conviver”, ela explicara.

Retomo esse passeio inesquecível, pois terminei de ler A República das Milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso (Ed. Todavia, 2020), e a Rocinha é o único local que conheço dessa vasta região de bairros cariocas disputados por bicheiros, traficantes e milicianos. Locais dominados por “elites armadas, tirânicas e criminosas”, segundo o autor. Grupos que se constroem como verdadeiros reinos (semelhantes aos de “Game of Thrones”, compara o autor) que tanto enfrentam a ordem estatal quanto se misturam com o aparelho do Estado.

Bruno Manso é jornalista e seu livro é tanto uma abordagem jornalística quanto histórica e sociológica dos modelos de crime no Rio de Janeiro. O modelo já tradicional dos bicheiros, dos traficantes de drogas (a partir da década de 1980) e das atuais milícias (formadas no início dos anos 2000), todos eles inter-relacionados. Modelos de domínio territorial, de negócios e de crimes, expressões do empreendedorismo carioca e com características distintas do crime paulistano. Em São Paulo, por exemplo, o PCC (um dos campos de estudo do autor) assume a sua “condição marginal” e seus integrantes se dizem atuar “do lado certo de uma vida errada”. No Rio de Janeiro, não, os criminosos são mais confiantes. No caso específico das milícias (lideradas por policiais) eles se sentem “como se representassem o estilo de vida correto”, como se os seus argumentos tivessem vencido os dos defensores do Estado de Direito.

Para exemplificar essa certeza e confiança, o autor cita os diversos casos de milicianos homenageados e condecorados pela Assembleia do Rio de Janeiro (ALERJ), como ocorreu com o policial Ronnie Lessa (o assassino de Marielle Franco) e o cap. Adriano da Nóbrega (integrante do Escritório do Crime). Homenagens que parecem legitimar a prática miliciana aos olhos de uma população (um grande setor da sociedade brasileira) que não acredita nem confia em instituições democráticas, Direitos Humanos e Estado de Direito. Sinais assustadores (as milícias e sua expressão política) de um tempo que alguns de nós achávamos impossível de se estabelecer na atual sociedade brasileira.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Uma cena kafkiana

          

Uma manhã acordei na cama de uma mulher e senti a minha pele transformada numa superfície cheia de escamas (semelhante a um besouro), como se eu fosse um Gregor Samsa, o personagem da Metamorfose, de Kafka. Eu tinha 20 anos, a noite não fora ruim, pelo contrário, mas parecia que eu transpusera algum limite e isso não passaria sem punição. Nunca vivera uma experiência sexual tão satisfatória e precisei me esforçar para vencer a sensação pavorosa de me metamorfosear em um ser repulsivo.

Há um ano eu era paciente de uma psicoterapia e um dos resultados do tratamento se revelou naquele amanhecer. Sim, eu venci o monstro, isto é, a mim mesmo, e pude (após momentos angustiantes) voltar à realidade do meu corpo e sentir (com prazer) a respiração da mulher ao meu lado. A luz do amanhecer entrava pelas frestas das venezianas, revelava os contornos do quarto (um armário com livros na parede em frente a cama, um armário de roupas à minha direita) e o corpo da mulher ao meu lado, dormindo suavemente.

A sensação da pele escamada como a de um inseto foi desaparecendo, eu passei a mão sobre meu peito, sobre as pernas, senti que tudo estava normal e foi como se regressasse de um poço muito sombrio... A mulher ao meu lado respirava mansamente, os dois braços junto aos seios, uma de suas pernas me roçando, tocando em mim, me fazendo existir como eu nunca conseguira até então.

Eu apenas sabia o seu primeiro nome, no que e onde trabalhava (era secretária bilíngue de uma grande indústria), algumas preferências literárias e cinematográficas, e não muito mais que isso. Nós nos conhecêramos numa janta na casa de amigos comuns, na véspera, e nem sei como terminamos juntos... A primeira noite de uma relação que se estendeu por quatro ou cinco meses e não posso me queixar de coisa alguma. Apenas da minha juvenilidade e do modo como pus tudo a perder, isto é, fazer a nossa relação ir água abaixo. Incapacidade completa de saber os limites do nosso relacionamento (éramos, no mínimo, pessoas com trajetórias distintas: ela, uma mulher independente de 24 anos; eu, um universitário sustentado pela família), incapacidade de equacionar aquela relação/namoro completamente inusitada para mim.

Muitos anos depois nos encontramos na Avenida Salgado Filho – ela casada e com filhos; eu, também casado e já com uma filha – e pude sentir que não ficaram mágoas. Éramos dois antigos amantes mostrando fotos de nossos rebentos e dando vagas do que fizéramos e fazíamos de nossas vidas.

Mas naquela manhã de inverno de 1976, eu era um corpo que se debatia com uma transformação semelhante a de Gregor Samsa. Por um triz não embarquei no mesmo infortúnio do personagem kafkiano e afundei na minha fantasmagoria. Por um triz não perdi a minha frágil humanidade. Recordo que um dia, num café da manhã, tentei lhe contar a angústia daquele amanhecer, a minha história kafkiana... e ela não quis entender. Colocou mais leite e café na minha xícara e achou graça da minha maluquice.

Não recordo a minha reação. Acho que fiquei calado, observando-a admirado, saboreando sua maneira de ver a vida sem grandes complicações e conduzindo o jovem que eu era para o coração da vida adulta.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Uma nova mulher

 

Uma amiga me perguntou porque dei a ela, dois meses atrás, uma xícara com o desenho de um bigode. Eu disse que não sabia direito, mas que intuíra, na época, que ela andava com namorado novo. Contei, então, que eu estava tomando café numa confeitaria, olhei as prateleiras com diversas xícaras, doces e chocolates, e lembrei dela. Seu aniversário era por aqueles dias e eu escolhi a xícara com bigodes e a enchi de bombons. Uma presente simples, uma lembrança, que deixei com a sua secretária. Eu a havia encontrado semanas antes, ela falara sem parar e dera algumas pistas quanto a “alguém andar na área”, a principal delas a de que aderira ao consumo de vinhos.

– Uma taça relaxa, tu disseste, me olhando de um modo enviesado e engraçado que me fez imaginar coisas – expliquei. – Afinal tu nunca gostaste de bebida alcoólica e pensei num homem experiente te convencendo a beber uma ou duas taças para relaxar.

Trabalhei com minha amiga anos atrás e acredito que ela esteja beirando os cinquenta anos. Ela sempre fez mistério em relação à idade e imagino, devido aos filmes que assistiu no cinema, que ande nessa faixa etária. Digo isso a ela - depois de comentar que ela anda sempre muito vistosa, atraindo olhares por onde passa - e recebo um sorriso de volta. É uma das suas habilidades esses cuidados: o da pele, da silhueta e das roupas, investir no visual e embaralhar as impressões que os outros tenham dela. Habilidade plenamente exitosa.

Minha amiga terminou um casamento sem filhos e aparentemente ficou sozinha desde então. Cultivou uma narrativa de agressões verbais e humilhações sofridas no convívio com o ex-marido – um relato exagerado, no meu entendimento, mas vá saber o que vive uma mulher com o seu parceiro. Eu acompanhei a vida dos dois, conheci o seu marido razoavelmente, e acho minhas dúvidas pertinentes (mas não ponho a mão no fogo). Sei que ele leu Simone de Beauvoir, defendia as pautas feministas e um dia até achou que era capaz de entender as mulheres. Uma fantasia muito comum entre os homens do meu círculo social: achar que a leitura d’O segundo sexo nos habilitou a um entendimento e aproximação do universo feminino.

– Vocês nunca conseguiram se desprender do machismo dominante – ouvi minha amiga afirmar certa vez e desconfio, em parte (mas só em parte), que ela tem razão.

Seja como for, alguma intuição eu tenho em relação às mulheres, isto é, no caso da minha amiga bispei e acertei que um homem andava frequentando o seu apartamento. Ela confirmou. E acrescentou que se reinventou após a separação, que não é mais aquela mulher que se deixava calar e que, nos novos relacionamentos que tem vivido, está aproveitando muito mais.

– Novos? – eu pergunto surpreso e ela apenas diz que eles são melhores que o “falecido”.

Pergunto também se alguma vez ela se calou, se alguma vez ela deixou de fazer o que queria, e ela responde que “não é bem isso”.

– Eu sou outra mulher, compreende?

Não compreendo. Mas essa crônica é uma homenagem a essa mulher que se sente mais dona de si própria, da sua vida e do seu corpo, e assim se coloca no mundo, com maior autonomia e capacidade de conquistar o próprio prazer (um prazer que entende que o mundo lhe negou).

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Proposta irrecusável

            Foi um ano de aflição e tristeza e Sabrina não suportou viver dessa maneira. Terminara um casamento de longos anos sem saber o motivo do companheiro fazer as malas e ir morar no outro lado da cidade e resolveu aceitar a “proposta irrecusável” de um amigo com quem conversara nos últimos meses. Amigo de conversas por telefone na madrugada que a ajudaram a vencer a solidão e a insônia.

Enquanto via o antigo companheiro reorganizar sua vida com outra mulher, sentiu-se incapaz de qualquer outra coisa além de cumprir os horários de trabalho na escola, vir para o seu apartamento, ver TV, relaxar e dormir (quando conseguia dormir). Sem filhos, sem gato nem cachorro, foi um amigo viúvo que ocupou as suas horas e a distraiu. Num final de tarde, ele a pegou na saída das aulas, a levou para o seu apartamento e, logo depois que ela entrou na sua sala, disse:

– Minha empregada preparou um camarão como tu gostas. – Apontou a mesa posta e foi abrir um espumante da Campanha.

Com a taça na mão, bebericando deliciada – era um vinho produzido numa vinícola do pampa, numa paisagem que fora a mesma da sua infância –, sentiu o amigo se transformar num homem encantador:

– Se quiseres, terás uma vida de princesa. Tu vens morar aqui, tem lugar para montares um escritório e seguires fazendo o que gostas. Se preferires continuar lecionando, continua. Se resolveres parar, não tem problema, te sustento.

Ela tomou mais de uma taça de espumante (não tinha o costume de beber) e quando se acordou no outro dia, na cama do amigo, soube que ganhara “a vida que merecia”. Andou pelo apartamento de 180 metros quadrados (como ele acentuara diversas vezes), pisando o chão com os pés descalços, vestindo uma camisa do namorado, e decidiu que iria “viver com Henrique e com tudo que ele proporciona”.

Seis meses depois, no entanto, se pegou repetindo para a manicure uma conversa antiga, da qual não conseguia se desprender:

– Os homens não nos dão o devido valor. Eles não sabem o que é isso: valorizar uma mulher. São machistas, nunca saíram do mundo campeiro onde foram criados e têm enorme dificuldade de nos verem.

A manicure levantou o rosto, parou de lhe fazer as unhas dos pés, e perguntou se o Henrique não estava cumprindo o prometido. Ela havia acompanhando o casamento da cliente desde o início e sabia tudo a respeito da “vida de princesa”.

A mulher olhou a manicure, olhou o ambiente ao redor – um salão com várias mulheres, todas falando sem parar – e disse que não ia deixar ser dominada.

– Ele está habituado a determinar tudo, no escritório, na fazenda, mas ele que não pense que vai ser assim comigo.

– Mas ele já está mandando na tua vida?

Sabrina mirou a manicure e disse que não, ainda não.

– Mas homem é homem – acrescentou.

A outra riu e comentou que a nova coleção de verão está privilegiando padronagens de cores fortes e que ela deveria ver o que chegou na loja junto ao salão.

Sabrina voltou para casa, encontrou Henrique esperando-a ansioso (com uma espumante no refrigerador, ele explicou) e logo a abraçando e beijando atrás da orelha.

– Não, hoje não – ela falou. – Estou com enxaqueca. Vou tomar um banho e me deitar. – E saiu apressada para o quarto, jogando bolsa e pasta no sofá, e logo depois se dirigindo ao banheiro.

“Desde a separação não tenho sossego”, Sabrina diz para si mesmo, sentindo sua vida de princesa escorrer pelo corpo junto com o sabonete, a espuma no chão do box desenhando uma proposta que não soube recusar: uma vida organizada, sem coisa alguma com a qual se preocupar. Escuta Henrique abrir a porta do banheiro, sentar-se sobre a tampa fechada da privada e perguntar como foi o seu dia, o que houve, e dizer que ele tem a solução para ela:

        – Conheço um chá muito bom. Aprendi com a minha vó. Ela tinha dores de cabeça terríveis e é tira-e-queda.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Garotas com mães terríveis

             Uma amiga me recomendou o filme “Uma garota de muita sorte”, atualmente no catálogo da Netflix, e sua indicação não foi devido ao tema central do filme (o estupro) e, sim, ao papel da mãe na trama. Uma personagem secundária, minha amiga escreveu, dizendo que a figura a fez lembrar conversas que tivemos a respeito de “Mamãezinha querida”, um filme que nos impactou no início da década de 1980 e nos levou a pensar (no meu caso, a descobrir) o papel das mães na formação das filhas.

Adianto que “Mamãezinha querida” é a respeito de Joan Crawford (a memorável atriz de “Johnny Guitar”, de 1954), baseado num livro de Christina Crawford, uma das filhas. Posteriormente surgiram críticas à visão de Christina, feitas por amigos e os outros filhos, apontando exageros e uma dose de vingança da filha em relação à mãe. A cena de surra com um arame de cabine, no entanto, é antológica no quesito crueldade materna.

Seja como for, a adequação ou não da versão cinematográfica à verdade da atriz não é o assunto dessa crônica. Nem tenho conhecimento para tanto. O assunto é simplesmente as mães e o que elas podem fazer/causar às filhas, quando não conseguem ser “mães nutrientes e acolhedoras” – uma conversa que minha amiga e eu tínhamos no início da década de 1980, quando as relações entre pais e filhos eram “o feijão nosso de cada dia”, intrigados que estávamos com a dinâmica das famílias de nossos alunos e também as nossas.

Em “Uma garota de muita sorte” a mãe não é tão tirânica quanto em “Mamãezinha...”, mas igualmente cumpre o triste roteiro de não acolher a filha e, dessa maneira, colaborar para que ela se sinta "uma mulher ferida”, antes mesmo do episódio central da narrativa (o estupro coletivo da filha, numa farra estudantil, inclusive pelo namoradinho). De certa forma “a garota de sorte” do título (uma ironia) já entra na adolescência (na fase do despertar da sexualidade) desprotegida, e o filme é claríssimo nisso ao expor o tipo de relação da mãe com a filha (sem surras, mas com muito rigor). Uma mãe que conduz a filha na direção da ascensão social e é severa quanto a qualquer deslize que possa comprometer esse projeto.

No início da década de 1980, minha amiga e eu comentávamos trajetórias femininas menos dramáticas do que as vividas pelos filmes citados, mas o cinema era a nossa chave para ingressarmos nesse mundo complicadíssimo das relações entre mães e filhas (sempre com acréscimo de pais ausentes, como no caso das obras citadas). O emaranhado mundo das chamadas “mulheres feridas” que um dia eu pensei entender e a respeito do qual essa amiga avisou: “Tu não vais entender, homem nenhum compreende”.

Realmente eu nunca entendi, mas nem por isso deixei de estar atento ao assunto. Assisti ao filme indicado e mais uma vez me deparei com esse tema tão delicado e brutal ao mesmo tempo.

 

- “Uma garota de muita sorte”, dir. de Mike Barke, c/ Mila Kunis no papel principal. EUA, 2022, 115 min.

- “Mamãezinha querida”, dir. de Frank Perry, c/ Faye Dunaway no papel de Joan Crawford. EUA, 1981, 130 min.