sábado, 25 de novembro de 2023

Ouvindo os alunos

 

Meu batismo de fogo no Magistério Estadual foi com as crianças do Ensino de 1º Grau, em Alvorada e Canoas.[i] Em 1983, no entanto, com minha aprovação em Concurso Público do Estado e a nomeação nas escolas porto-alegrenses Ana Néri (Bairro Minuano) e José Feijó (Bairro Rubem Berta) passei a lidar com outra clientela: a dos adolescentes e jovens adultos.[ii] Se antes ouvia os alunos falarem dos pais trabalhadores, agora escutava os próprios. Uma gurizada que trabalhava em supermercados (como empacotadores, carregadores ou, um caso excepcional, como gerente), nos escritórios (como boys ou nas atividades de limpeza), em serviços gerais (supervisionando a descarga de arroz), no trabalho doméstico (como empregadas e babás) e até no jogo do bicho.

Muitas vezes, na Escola Feijó, durante o horário do recreio, dava preferência a ficar no pátio com os alunos ao invés da sala dos professores, com meus colegas de ofício. O Feijó era uma escola de 2º Grau, frequentada por adolescentes de Alvorada, Parque dos Maias e Rubem Berta, e eu gostava de ouvir suas histórias. Além das atividades no mundo do trabalho, as histórias das suas vidas: os bailes comportados em salões paroquiais, a pregação severa dos pastores evangélicos e os namoros de sofá com vigilância familiar (que eu imaginava não existirem mais), assim como as histórias de namoros mais ousados, a dificuldade de acesso à métodos contraceptivos, pílulas anticoncepcionais tomadas de forma errada e temores em relação à possíveis gravidezes... Histórias variadas que me permitiam olhar o mundo de outra maneira.

Uma manhã (eu lecionava apenas no turno da manhã no José Feijó) um aluno narrou a sua atividade de entregador de bebidas na Sogipa (Sociedade de Ginástica Porto-Alegrense) e me espantei quando ele disse:

– Um clube de burguês. Só gente rica lá dentro.

Ele descreveu a sua entrada de Kombi pelo portão dos fundos do clube, os engradados de refrigerante e cerveja que ele descarregava no bar em frente às quadras de tênis e os tenistas, todos eles, vestidos de roupas brancas.

– As gurias e até as coroas com umas saias curtinhas mostrando até as calcinhas. Uau!

Uma realidade que eu conhecia bem, pois fora sócio do clube desde 1967 (quando chegara a P. Alegre com meus pais e irmãos). No início dos anos 70 até jogara tênis naquelas quadras, com roupa branca e tudo mais, e conhecera de perto a formosura das tenistas de saias curtas. No entanto, nunca me dera conta de que era um “clube de burguês”, apesar de ter ouvido um diretor da entidade afirmar (por volta de 1980), que não havia mais necessidade de um grande número de sócios com mensalidade baixa, pois a nova sede já estava concluída e o clube precisava reconfigurar o perfil dos associados, aumentando as mensalidades e privilegiando as classes A e B.

Nessa reconfiguração dos associados da Sogipa, claro, eu dancei. Deixara de ser dependente do pai (como fora nos anos 60 e 70), tornara-me sócio titular e não aguentei o valor das mensalidades com meu salário de professor. Abandonei o clube sem nunca regularizar minha situação na secretaria – envergonhado com a minha precariedade financeira, devo acrescentar.

Como assalariado, eu  vivia um “processo de proletarização” (mesmo na condição de professor concursado) e, na fala daquele aluno (negro e entregador de bebidas), estava bem colocado que aquele não era mais um clube para mim. Um aluno, por sinal, muito participativo em sala de aula, com intervenções preciosas a respeito do conteúdo. Um aluno a me indicar outros modos de olhar o mundo, assim como de me reposicionar na estrutura social.



[i] Fiz parte da legião de professores que ingressou no Magistério Estadual por meio de pistolão e ficou aguardando concurso para se tornar efetivo.

[ii] Em Canoas, tive alunos adolescentes. Mas, na minha lembrança, é a partir das escolas de P. Alegre que eles se impõem. É como se fosse um corte. O período nas escolas de Alvorada e Canoas ficou marcado pelo predomínio das crianças.

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