As turmas de supletivo da Escola Ana Néri,
constituídas por jovens adultos, foram uma batalha inglória. Sim, eu era um
professor treinado apenas para atuar com alunos em idade regular. Não, eu não
tinha preparo para lidar com jovens adultos, estudantes de mais de 18 anos que
não haviam concluído o 1º Grau e que tinham com enormes dificuldades para ler e
escrever.
Nessas condições, não era raro eu interromper uma
explanação devido à dificuldade dos alunos em compreende-la, ficar parado no
meio da sala e pensar: “E agora, o que eu vou fazer?” Os alunos não estavam
entendendo coisa alguma e eu não sabia como continuar a aula, isto é, como
tornar o conteúdo mais acessível.
Então olhava um aluno – um rapaz cansado, vindo do interior,
do interior do município de Camaquã, boy num escritório do centro da
cidade, almejando um emprego melhor – e sentia a necessidade de encontrar um
jeito de continuar. Voltava ao quadro verde, escrevia com giz as palavras
chaves – latifúndio, lavoura do café, economia de exportação, oligarquias
centrais e periféricas, república oligárquica –, explicava cada uma delas e,
juro, achava que estava resolvido. Estava pelada a coruja!
Quando terminava o turno, descia as escadas em
direção à rua (a escola ficava bem acima do nível da calçada) e caminhava com
um colega em direção à parada de ônibus. Às vezes encompridávamos o trajeto para
conversarmos melhor. Ele e eu muito instigados pelo desafio de lecionar para
aquela gurizada.
Ele, um professor um pouco mais moço que eu e muito
melhor preparado, com melhor formação teórica. Nós dois nos achando pouco
qualificados para o ensino de jovens adultos e pensando em como melhorar o
nosso desempenho.
Numa noite em que resolvemos encompridar o caminho
até a parada de ônibus porque a conversa estava boa, enveredamos para um papo de
política (o que não era raro, educação e política sempre se embricavam na nossa
perspectiva) e, dessa vez, com alguma irritação de parte a parte. Ambos acompanhávamos
sem entusiasmo o modo conciliador como se dava a transição do Regime Militar
para a Democracia. A derrota da emenda das eleições diretas para a Presidência
nos incomodara, a escolha de Tancredo pelo Colégio Eleitoral não nos empolgara
e o governo do Sarney, então, nos parecia patético.
Naquela noite divergíamos quanto aos rumos que a
oposição petista devia tomar e então, de repente, meu amigo afirma:
– Assim não dá. É preciso pensar a Revolução
Brasileira.
Eu me viro para ele e vejo seu rosto voltado para o
alto. Olho na mesma direção, não enxergo coisa alguma e penso em perguntar se
ele está falando sério. Mas não digo nada, escuto seus argumentos a respeito do
“caminho revolucionário” e não sei o que dizer. No fundo, também achava que
assim não dava. Mas era um delírio, um delírio completo, pensar em Revolução.
Alcançamos a parada, vimos o ônibus chegar e subimos.
Passamos a roleta, sentamos no mesmo banco, e ele continuava nas alturas, isto
é, falando das condições objetivas, as condições subjetivas, a correlação de
forças entre a burguesia e o proletariado, as tarefas de um partido que se propõe
a transformar a realidade...
Vejo que está chegando a minha parada, me despeço,
desço do ônibus, ainda tenho cinco longas quadras para andar até chegar no meu
apartamento e faço isso com a cabeça fervendo.
Lecionar no supletivo do Ana Néri foi uma batalha
inglória. O confronto entre a formação limitada que recebi na Faculdade de Educação
e um duro embate com a realidade daqueles alunos “carentes” (“carentes de
formação básica”, era assim que se falava). Acho que diante dessa situação, divagar
a respeito da revolução era um sonho que aliviava. Sei lá.
Seja como for, eu não chegava em casa desanimado. Pelo
contrário.
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