sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Pensar a revolução brasileira

 

As turmas de supletivo da Escola Ana Néri, constituídas por jovens adultos, foram uma batalha inglória. Sim, eu era um professor treinado apenas para atuar com alunos em idade regular. Não, eu não tinha preparo para lidar com jovens adultos, estudantes de mais de 18 anos que não haviam concluído o 1º Grau e que tinham com enormes dificuldades para ler e escrever.

Nessas condições, não era raro eu interromper uma explanação devido à dificuldade dos alunos em compreende-la, ficar parado no meio da sala e pensar: “E agora, o que eu vou fazer?” Os alunos não estavam entendendo coisa alguma e eu não sabia como continuar a aula, isto é, como tornar o conteúdo mais acessível.

Então olhava um aluno – um rapaz cansado, vindo do interior, do interior do município de Camaquã, boy num escritório do centro da cidade, almejando um emprego melhor – e sentia a necessidade de encontrar um jeito de continuar. Voltava ao quadro verde, escrevia com giz as palavras chaves – latifúndio, lavoura do café, economia de exportação, oligarquias centrais e periféricas, república oligárquica –, explicava cada uma delas e, juro, achava que estava resolvido. Estava pelada a coruja!

Quando terminava o turno, descia as escadas em direção à rua (a escola ficava bem acima do nível da calçada) e caminhava com um colega em direção à parada de ônibus. Às vezes encompridávamos o trajeto para conversarmos melhor. Ele e eu muito instigados pelo desafio de lecionar para aquela gurizada.

Ele, um professor um pouco mais moço que eu e muito melhor preparado, com melhor formação teórica. Nós dois nos achando pouco qualificados para o ensino de jovens adultos e pensando em como melhorar o nosso desempenho.

Numa noite em que resolvemos encompridar o caminho até a parada de ônibus porque a conversa estava boa, enveredamos para um papo de política (o que não era raro, educação e política sempre se embricavam na nossa perspectiva) e, dessa vez, com alguma irritação de parte a parte. Ambos acompanhávamos sem entusiasmo o modo conciliador como se dava a transição do Regime Militar para a Democracia. A derrota da emenda das eleições diretas para a Presidência nos incomodara, a escolha de Tancredo pelo Colégio Eleitoral não nos empolgara e o governo do Sarney, então, nos parecia patético.

Naquela noite divergíamos quanto aos rumos que a oposição petista devia tomar e então, de repente, meu amigo afirma:

– Assim não dá. É preciso pensar a Revolução Brasileira.

Eu me viro para ele e vejo seu rosto voltado para o alto. Olho na mesma direção, não enxergo coisa alguma e penso em perguntar se ele está falando sério. Mas não digo nada, escuto seus argumentos a respeito do “caminho revolucionário” e não sei o que dizer. No fundo, também achava que assim não dava. Mas era um delírio, um delírio completo, pensar em Revolução.

Alcançamos a parada, vimos o ônibus chegar e subimos. Passamos a roleta, sentamos no mesmo banco, e ele continuava nas alturas, isto é, falando das condições objetivas, as condições subjetivas, a correlação de forças entre a burguesia e o proletariado, as tarefas de um partido que se propõe a transformar a realidade...

Vejo que está chegando a minha parada, me despeço, desço do ônibus, ainda tenho cinco longas quadras para andar até chegar no meu apartamento e faço isso com a cabeça fervendo.

Lecionar no supletivo do Ana Néri foi uma batalha inglória. O confronto entre a formação limitada que recebi na Faculdade de Educação e um duro embate com a realidade daqueles alunos “carentes” (“carentes de formação básica”, era assim que se falava). Acho que diante dessa situação, divagar a respeito da revolução era um sonho que aliviava. Sei lá.

Seja como for, eu não chegava em casa desanimado. Pelo contrário.

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