quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Tango argentino

             

Em 1967, minha família se mudou de Pelotas para Porto Alegre e fomos morar num apartamento no Bairro Floresta. Até então vivíamos em casa com quintal e prédios de apartamentos não faziam parte do nosso cotidiano. Lembro que eu visitava alguns parentes que moravam “nessas casas empoleiradas umas por cima das outras” e achava graça. A disposição espacial das peças era diferente das casas “normais”, isto é, aquelas construídas diretamente em cima do chão, e eu não imaginava que um dia faria parte dessa população... aérea. Entretanto, com onze anos de idade essa realidade mudou... e nunca mais voltei a morar numa casa.

Lembrei disso escutando um tango de Gardel, vejam só. Meus pais costumavam ouvi-lo numa eletrola que ficava na sala do apartamento no qual passamos a morar em Porto Alegre e onde havia um corredor ligando esta peça à cozinha. Um corredor por onde eles, o pai e a mãe, dançavam um “tango figurado” volta e meia.

Recordo o pai realizando o ritual de colocar um disco na eletrola e vou me estender na descrição da cena. Tirar o disco da embalagem (um envelope colorido, com requintada capa com foto do cantor), segurar o disco pelas bordas (para não sujar os sulcos), encaixá-lo num pino sobre o prato, trazer um braço de metal para segurar o disco e então ligar o aparelho. Aí, então, de modo automático, o braço soltar o LP sobre o prato e, ao mesmo tempo, outro braço, com uma agulha na ponta, avançar, colocar a ponta da agulha sobre a primeira faixa do disco... e então iniciava a reprodução da música.

O pai chamava a mãe para um tango argentino e lá vinha ela (às vezes de avental) e os dois saiam dançando, primeiro umas voltas pela sala pequena, depois pegavam o corredor e iam em direção à cozinha. Faziam um floreio na frente do refrigerador e retornavam até a sala, enquanto eu os observava admirado.

Isso acontecia geralmente aos domingos pela manhã, enquanto o almoço era preparado. A mãe ria inebriada, dizia que “tinha mais o que fazer” e depois de alguns passitos largava o pai na poltrona me contando como eram os bailes que eles frequentavam nos clubes Comercial e Diamantino, em Pelotas, que sempre encerravam com um tango, mesmo no Carnaval.

Pois comecei essa crônica falando do apartamento que fomos morar em Porto Alegre para melhor descrever o corredor estreito (estreitíssimo, comparado às pistas de dança do Comercial e Diamantino), onde meus pais davam alguns passitos, dançavam um tango argentino e se divertiam. Momentos felizes que eles encenavam no espaço diminuto de um apartamento de classe média porto-alegrense e que compartilhavam com os filhos. Lembranças que trago como um tesouro. Pérolas que reviro uma por uma, me deslumbrando com os detalhes ao som de “Por uma cabeza” e “La Cumparsita”.