Em 1967, minha família se mudou de Pelotas para
Porto Alegre e fomos morar num apartamento no Bairro Floresta. Até então vivíamos
em casa com quintal e prédios de apartamentos não faziam parte do nosso
cotidiano. Lembro que eu visitava alguns parentes que moravam “nessas casas empoleiradas
umas por cima das outras” e achava graça. A disposição espacial das peças era
diferente das casas “normais”, isto é, aquelas construídas diretamente em cima
do chão, e eu não imaginava que um dia faria parte dessa população... aérea.
Entretanto, com onze anos de idade essa realidade mudou... e nunca mais voltei
a morar numa casa.
Lembrei disso escutando um tango de Gardel, vejam
só. Meus pais costumavam ouvi-lo numa eletrola que ficava na sala do
apartamento no qual passamos a morar em Porto Alegre e onde havia um corredor
ligando esta peça à cozinha. Um corredor por onde eles, o pai e a mãe, dançavam
um “tango figurado” volta e meia.
Recordo o pai realizando o ritual de colocar um
disco na eletrola e vou me estender na descrição da cena. Tirar o disco da
embalagem (um envelope colorido, com requintada capa com foto do cantor), segurar
o disco pelas bordas (para não sujar os sulcos), encaixá-lo num pino sobre o prato,
trazer um braço de metal para segurar o disco e então ligar o aparelho. Aí,
então, de modo automático, o braço soltar o LP sobre o prato e, ao mesmo
tempo, outro braço, com uma agulha na ponta, avançar, colocar a ponta da agulha sobre a
primeira faixa do disco... e então iniciava a reprodução da música.
O pai chamava a mãe para um tango argentino e
lá vinha ela (às vezes de avental) e os dois saiam dançando, primeiro umas
voltas pela sala pequena, depois pegavam o corredor e iam em direção à cozinha. Faziam um floreio na frente do refrigerador e retornavam até a sala,
enquanto eu os observava admirado.
Isso acontecia geralmente aos domingos pela manhã,
enquanto o almoço era preparado. A mãe ria inebriada, dizia que “tinha mais o
que fazer” e depois de alguns passitos largava o pai na poltrona me contando
como eram os bailes que eles frequentavam nos clubes Comercial e Diamantino, em
Pelotas, que sempre encerravam com um tango, mesmo no Carnaval.
Pois comecei essa crônica falando do apartamento
que fomos morar em Porto Alegre para melhor descrever o corredor estreito
(estreitíssimo, comparado às pistas de dança do Comercial e Diamantino), onde
meus pais davam alguns passitos, dançavam um tango argentino e se divertiam.
Momentos felizes que eles encenavam no espaço diminuto de um apartamento de
classe média porto-alegrense e que compartilhavam com os filhos. Lembranças que
trago como um tesouro. Pérolas que reviro uma por uma, me deslumbrando com os detalhes
ao som de “Por uma cabeza” e “La Cumparsita”.