terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Canção para um dente partido

       Aconteceu durante as manifestações estudantis em 1977, em Porto Alegre. Os estudantes planejaram ocupar a Praça Raul Pilla, para protestar contra a ditadura, e tomaram a Avenida João Pessoa. A Polícia de Choque fechou a rua, impediu o avanço da passeata e, de repente, avançou contra os estudantes. A gurizada correu para dentro do campus universitário. Alguns entraram pelo portão da Faculdade de Economia e outros pelo portão da Faculdade de Direito. Uma colega escorregou no chão molhado do pátio do Direito, caiu, bateu com o rosto e lascou um dente.
Houve estudantes que levaram cacetadas, mas não recordo se alguém foi preso. Só lembro da minha colega que se estatelou no chão sem que nenhum policial a tivesse derrubado. Lembro por causa do dente quebrado e da trabalheira que ela teve para consertar a boca. A trabalheira e o preço do serviço. Trabalho odontológico nunca foi barato.
O reitor da UFRGS negociara com o comando da Brigada Militar que a polícia não entraria no campus e avisou às lideranças estudantis. “Dentro do campus a integridade física de vocês está garantida”, ele falou, “lá fora, na rua, não posso assegurar coisa alguma”. Por isso os estudantes correram para dentro da Universidade. A gurizada atravessou os portões e ficou do outro lado das grandes, gritando “Abaixo a repressão” e outras palavras de ordem da época. Na calçada, encarando os estudantes, ficaram os policiais com capacetes, máscaras contra gás, escudos e cacetetes.
Eu não estava naquela manifestação política e soube do caso da minha colega dias depois, no bar do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), tomando um cafezinho. Naquela época, eu tivera a minha primeira inflamação na íris – um caso que iria se repetir ao longo dos anos, até hoje – e o oftalmologista dissera para ficar de resguardo. “Protege teu olho”, ele falou, “a gente nunca sabe o que pode acontecer”.
Mas não foi por causa da indicação do oftalmologista que deixei de ir à manifestação. Achei que ela não iria acontecer, isto sim. Ao longo daquele ano houvera diversas tentativas de colocar “o movimento na rua” e todas fracassaram. Naquele dia, porém, deu certo.
Levei um susto quando soube o que ocorrera com minha colega e imaginei o que teria acontecido se eu tivesse levado um tombo e batido com a cabeça... Arrepiei. Teria afetado os olhos? Contribuído para alguma sequela na visão ou coisa assim? Não sei.
Ônus desse tipo – sequelas físicas e emocionais – fazem parte do jogo político, aprendi com o tempo. E aprendi também que a vida é muito frágil. Um deslize no momento errado... e dançamos. Um deslize que pode acontecer numa manifestação política, no trânsito das ruas e estradas ou numa boate construída e fiscalizada de modos inadequados.


Obs.: A manifestação estudantil a que me referi ocorreu no dia 23 de agosto de 1977, no centro de Porto Alegre. “Foi a primeira vez que o movimento estudantil assumiu em todo o pais o Abaixo a Ditadura”, afirmou uma liderança da época, Bete Portugal. O jornal Zero Hora publicou boas fotos a respeito e algumas delas foram reproduzidas no livro de Ivanir Bortot & Rafael Guimarães, Abaixo a repressão: movimento estudantil e as liberdades democráticas (Porto Alegre: Libretos, 2008).

domingo, 24 de novembro de 2013

Boate Kiss

        A moça que sorri para mim no restaurante é uma das sobreviventes da Boate Kiss. Logo depois da catástrofe, ela me contou que não sabe como escapou. Ela e o namorado saíram correndo, tropeçaram e se estatelaram no chão. “Alguém caiu por cima de nós”, ela disse. “Eu desmaiei e me arrastaram lá de dentro. Não sei como.”
Quando ela se deu conta, estava sentada no asfalto, com os joelhos esfolados e os pulsos vermelhos. Nos pulsos, havia marcas de mãos que a haviam segurado com força e a arrastado. Ela e o namorado foram salvos dessa maneira.
A moça que sorri para mim, no restaurante a quilo que freqüento, é uma das sobreviventes. Às vezes conversamos. Há um ano atrás, eu li o seu trabalho de conclusão de curso e participei da banca de avaliação. Às vezes conversamos sobre o tempo, a vida e o futuro.
Apesar dos pesadelos, crises de choro, cuidados redobrados com a saúde, medicação, mais os efeitos colaterais da medicação, ela continua sorrindo. Nenhuma nuvem parece encobrir os seus olhos.
Eu e ela nos cruzamos semanalmente e nos cumprimentamos. No restaurante, cada um de nós se serve de arroz, feijão, carne de gado, frango ou peixe, e não esquecemos as verduras e legumes. Às vezes aponto para ela que tem bife de fígado. “Bife de fígado é muito importante para a saúde”, eu digo, “minha mãe sempre diz isso.”
Ela ri e imagino que a mãe dela também repete esse mantra. Eu vejo a moça caminhar por entre as mesas, segurando o seu prato, e penso que nunca entenderei o que aconteceu na Boate Kiss.
Dias antes do episódio, minha filha me contou que a boate era uma das mais prestigiadas da cidade, para festas universitárias. Casa noturna badalada. Festas muito concorridas, com superlotação e gente na fila, na calçada, esperando a hora de entrar.
Festas que exigiam maior atenção com a roupa, observou uma aluna, acentuando que não era como ir a Boate do DCE, “onde não se repara tanto no que as pessoas estão vestindo”.
Volta e meia eu passava pela frente da boate – sempre durante o dia – e não imaginava que aquilo fosse uma arapuca com uma única saída. E com material de vedação acústica – a malfada espuma – completamente inadequado e fora do padrão indicado. Uma espuma que propaga o fogo com rapidez e, pior de tudo, que produz uma fumaça letal.
Nunca imaginei que uma construção com tantos erros atravessasse incólume o coração de uma cidade com autoridades responsáveis!
A moça que sorri para mim, no restaurante a quilo, é uma das sobreviventes. Às vezes falamos do tempo, da vida e nunca das normas e regulamentos que regem a vida de uma cidade. Muito menos comentamos a respeito do processo judiciário em curso, que visa identificar o grau de responsabilidade de alguns dos atores envolvidos no caso, aqueles que caíram nas malhas da Justiça.
Sorrimos e nos servimos de arroz, feijão, carne, e não esquecemos legumes e verduras. Para a sobrevivência de um corpo são necessários mil e um cuidados. Um descuido e lá vem uma carência disso ou daquilo, de vitamina B, C ou ferro.

“Por isso o bife de fígado, não é mesmo, minha amiga?”

sábado, 19 de outubro de 2013

Filhos acalmam?

         Há frases que ficam ecoando dentro de nós. “Filhos acalmam” foi uma delas.
Recebi um email um dia desses e o meu amigo escreveu que o nascimento do seu primeiro filho o deixara menos afoito, mais tranqüilo. “Filhos acalmam”, ele concluiu.
Eu respondi ao email, mas não toquei no assunto. Seu breve comentário, no entanto, ficou ecoando dentro de mim. Quando vi, estava lembrando o nascimento do meu primeiro filho – uma menina – e as preocupações e agonias decorrentes... O primeiro banho, o choro, as mamadeiras na madrugada, as primeiras indisposições, cólicas, e, de repente – meses depois – , uma gripe que evoluiu para uma pneumonia.
Naquela semana, a criança fora levada ao médico, submetida a exame cuidadoso e coisa alguma de grave fora constatado. Uma gripe e o mal estar normal que os bebes vivem nesses casos, na avaliação do pediatra. Era seguir as prescrições, trazê-la na próxima semana e tocar a vida.
Mas não foi assim.
– Essa criança não está bem. Essa prostração não é normal – disse a mãe no outro dia da consulta, no final da tarde.
– Mas nós fomos ao médico ontem. Estamos seguindo a orientação, os remédios no horário – eu observei.
Mas a mãe não ficou convencida e lá fomos para o pronto-socorro pediátrico e logo os exames constataram uma pneumonia dupla. Grave. Hospitalização imediata.
A criança se recuperou em poucos dias, mas pai e mãe ficaram com o coração na mão.
Deitada na enorme cama do hospital, um dos bracinhos com soro, com a outra mão a minha filha colocava uns pinos coloridos dentro de um carrinho e um médico residente comentou:
– Mas ela não completou um ano. Como consegue isso?
– Não sei – respondi. – Ela se distrai com esse brinquedo.
Filhos acalmam? Não sei. Filhos me colocaram no turbilhão do mundo. A minha filha, especialmente. Quando nasceu o segundo, quatro anos depois, aí sim eu estava mais calmo.
Inesquecível o momento em que a ginecologista retirou a menina de dentro do útero materno e a colocou sobre o peito da mãe. Um bebezinho enrolado no cordão umbilical, roxinho, roxinho, lentamente se acalmando sobre o colo materno.
– Só não vai ganhar nota dez por causa do cordão – disse a médica.
E ficamos os três – a médica, a mãe e o pai – admirando o bebe recém nascido, suavemente respirando sobre o colo da mãe.
Filhos acalmam? Não sei. No meu caso, me colocaram no mundo e me obrigaram a ter pressa e tomar atitude.
Regressei a mais antiga das minhas mitologias e, súbito, na Barra do Rio Grande, avistei um navio aqueu que regressava do cerco de Tróia... Os homens desembarcavam do navio com pesadas armas de bronze e proclamavam obrigações inadiáveis.
Minha filha me tirou da minha acomodada posição e me obrigou a ir ao encontro do Pai... Que acabava de chegar de Tróia e vinha reconstruir Esparta.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Clô Dias & Noites

         A história começa no final da década de 1950, em Porto Alegre. Clotilde tem 16 anos e mora no bairro Moinhos de Vento. Um dia ela bate os olhos num rapagão de 32 anos, fazendeiro, e acha que ele é o cara da sua vida. Está cansada de viver com papai e mamãe, e também das pressões do mundo escolar. Imagina que será “a rainha de 62 quadras de sesmaria”, mas termina comendo o pão-que-o-diabo-amassou desde a primeira noite de núpcias. O noivo foi com muita sede ao pote, na primeira noite, e a moça ficou a ver navios.
Clotilde engravida logo e tem uma menina. Quando engravida pela segunda vez, o marido diz esperar que ela tenha vergonha na cara e lhe dê um macho. Clotilde deseja com todas as suas forças que seja outra menina e, quando nasce um menino, ela rejeita o filho. Na seqüência, apanha um bocado. Um dia leva uma surra tão grande (o marido a pega transando com outro) que o médico que a costura chega a achar que ela não vai se recompor. Mas Clotilde é um “animalzinho”, como diz a avó, e se recupera. Ela foge do marido, perde a guarda das crianças e passa o resto da vida procurando se reerguer e construir uma vida própria, autônoma.
Mas como Clotilde não tem nenhuma habilidade profissional, sua saída termina sendo a de gravitar em torno de homens abastados e estabelecer com eles contratos proveitosos. Quando escasseiam esses homens, ela atua como “companhia para executivos” e vai levando. Até o dia em que encontra um homem amoroso, cheio de paciência, que tolera os seus rompantes e agonias, casa-se com ele e passa a criar flores numa chácara de Belém Novo.
Clotilde, como o leitor pode perceber, é uma personagem de folhetim – um folhetim escrito por Sérgio Jockymann e publicado em 1982: Clô Dias & Noites. Clô / Clotilde é uma personagem desconcertante e que me parece ser emblemática dos dilemas da condição feminina.
Clotilde se submete a um psicanalista, mas não tem muita paciência para mergulhar na longa noite da sua decisão juvenil, isto é, o casamento com um poderoso fazendeiro de 32 anos. A única explicação que a personagem tem para o seu caso é de que ela foi criada unicamente para casar e ser esposa... E ela, por que se adequou a esse papel, a essa função tradicional das mulheres burguesas?
Como boa personagem de folhetim, Clotilde não faz muita investigação psicológica. E o narrador, por sua vez, não perde tempo analisando a pobre moça, e desenvolve, isto sim, uma narrativa trepidante, com muita ação, suspense e viradas surpreendentes. Uma trama com muito sexo, intriga, dinheiro e poder, machos violentos e mulheres sofridas. Não se trata de um bom romance (algumas incongruências, estrutura frouxa), mas é folhetim, ora bolas, e, pelo menos para leitores que se amarram numa trama mirabolante e dramática, ou em personagens vibrantes, o interesse na leitura permanece até o final.
O romance foi publicado no início dos anos 80, num contexto em que as feministas faziam estardalhaço em função da tradicional prática do Judiciário brasileiro em absolver maridos que matavam em defesa da honra. Nessa época, numa manifestação do Centro de Professores (CPERS) na frente do Palácio Piratini, ouvi uma colega me falar de Clô Dias & Noites, ao comentar a “questão feminina na sociedade patriarcal”.
          Matei a curiosidade em relação ao livro, semanas atrás, e a leitura. Bom entretenimento, para quem tiver paciência com uma narrativa de 530 páginas. De quebra, o retrato de uma mulher que se acha treinada unicamente para agradar um homem e parir filhos, e que se rebela contra a “educação feminina para o casamento”.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A força do santo

Estou no sopé do Morro do Campestre e me preparo para fazer o percurso até a ermida de Santo Antão. É 17 de janeiro, dia da festa em homenagem ao santo, estou acompanhado de uma colega e ambos pesquisamos religiosidade popular. Nos perguntamos se é possível compreender cientificamente a fé que move os devotos e temos as nossas dúvidas.
Vários romeiros estão no Campestre (atual Distrito de Santo Antão, em Santa Maria), a maioria em torno da igreja, onde logo iniciará a missa campal. Pequenos grupos, no entanto, sobem e descem o morro e a esses grupos que nos reunimos. O caminho é íngreme e exige cuidado para não escorregar e cair.
No domingo anterior, a Comunidade do Campestre trouxe a imagem do santo que estava na ermida, no alto do cerro, e instalou-a na igreja. Hoje, a imagem está colocada ao ar livre e é em torno dela que se realiza a festa. Os devotos se aproximam da imagem, levantam o manto feito de pano que envolve o santo, escondem o rosto e murmuram suas preces. Depois haverá missa, almoço e, ao longo da tarde, jogos e diversões.
Só os mais corajosos sobem o morro, me adianta um devoto. E eu não pertenço mais a esse grupo, ele explica. Mas desde menino, nos anos 40, e até pouco tempo atrás, ele e a mulher subiam. Agora é muito arriscado, comenta. Na última vez a esposa levou um tombo e foi difícil erguê-la do chão.
Os dois se conheceram na romaria, em 1950, e casaram em 52. Os filhos se criaram na devoção ao santo e um deles ainda vem, de vez em quando, com a mulher e o filho. Os outros não. O santo foi muito importante na nossa vida, me garante a esposa. Espero que ela me explique como o santo ajudou a família e ela apenas revela, emocionada, que é um santo milagreiro, sempre atendeu as suas preces. Sorri, e esta parece ser a resposta à minha indagação.
Minha colega e eu somos professores e queremos palavras para embasar nossa pesquisa. Coisas de professor... Recolhemos palavras, fazemos fotos, aplicamos questionário, mas sabemos que são instrumentos precários.
Subimos o morro com os romeiros e compartilhamos a experiência da caminhada. Há compenetração na jornada que fazemos com os romeiros, alguma solenidade e também muitos comentários divertidos. Volta e meia alguém escorrega, às vezes é segurado, outras vezes se agarra numa árvore, e há os que desabam no chão. Seguem risos e frases bem humoradas a respeito dos pecados de cada um e de como podemos pagá-los. O santo cobra por nossos erros, mas é generoso, explica um romeiro, às gargalhadas.
Ninguém usa bastão e a maioria dos calçados são inadequados para a empreitada. As mulheres calçam sandálias, os homens usam sapatos comuns e poucos se utilizam de tênis ou botinas de montanhista. Uma mulher de sapato de salto cruza por mim, descendo o morro, e pergunto para minha colega como ela consegue. Ela escorrega, o companheiro a segura, e minha colega comenta que ela vai terminar o dia sentido dores horríveis nas pernas. Mas talvez feliz por ter cumprido uma promessa, imaginamos.
Próxima a uma das catorze cruzes que marcam o percurso, uma senhora tira os calçados e me explica que prefere andar descalça. Tem 70 anos e vêm todos os anos. É devota do santo desde menina. Ela sorri para minha colega, coloca os sapatos dentro da bolsa e segue morro acima.
No alto do cerro, em torno da ermida, um senhor me explica que veio de São Gabriel. Colocou a família no caminhão e chegou ontem de noite. Tem sido assim desde que uma filha apresentou distúrbio mental e o santo a fez melhorar. Desde então toda a família participa da festa. A menina sarou, casou e hoje é mãe de criança. Uma mulher normal, me explica o pai, orgulhoso e emocionado.
Converso com um casal de namorados e eles explicam que gostam muito do santo, por isso participam da festa. São jovens de 16 e 17 anos, e acham graça quando pergunto por que admiram Santo Antão. É uma devoção que a mãe ensinou, a menina explica. O namorado concorda e não arranco mais nenhuma palavra deles.
Tudo aparentemente simples, concluo. Mas sinto um mistério na candura desses namorados e não consigo decifrá-lo. É o mesmo enigma que percebi no casal de 70 anos que hoje não sobe mais o cerro. O mesmo segredo que senti no pai que põe a família dentro do caminhão e vem todos os anos homenagear o santo.
Mistério, enigma e segredo. São essas as palavras que povoam meu pensamento enquanto desço o cerro, cuidando para não escorregar. É um santo da mata, me explica um romeiro. E a gente tem que subir e descer o morro  para sentir a sua força, ele acrescenta.

domingo, 13 de outubro de 2013

Corcovado

         Na primeira vez que fui ao Rio de Janeiro, era julho e cheguei de ônibus. Viajava com uma colega de faculdade e fomos parando em Garopaba, São Paulo, e depois do Rio seguimos para Ouro Preto.
No percurso entre São Paulo e Rio fazia muito frio e tomei um conhaque para esquentar. Ao chegar, no entanto, o calor era grande e fomos à praia.
Coisa de gaúcho, me disseram depois. Só gaúcho para achar quente o mês de julho e encarar um mergulho em Ipanema.
Sim, foi em Ipanema que tomamos banho. Passou por nós um garotão com jeito de surfista, cabelo clareado artificialmente e minha amiga perguntou:
– Parafina?
– Não. Meu cabelo é assim mesmo – ele respondeu.
Minha amiga se virou para mim e comentou que ele mentia descaradamente. 
– Bem coisa de carioca – ela falou.
Logo adiante, estava o bar onde o Vinicius de Moraes compusera “Garota de Ipanema”, mas não entramos para beber um chope. A grana era curta.
Julho de 1975. Na mochila, eu trazia um exemplar do jornal Movimento, que recém começara a ser editado. Sinal de uma nova conjuntura política no país: “a abertura lenta, gradual e segura” que o presidente Geisel propagandeava e que não entendíamos direito.
Minha amiga se hospedou em casa de parentes e eu também fiquei no apartamento de uns tios, no Flamengo. Meu primo tinha 16 anos, era nadador e mulato  - e eu fiquei me perguntando de onde ele tirara aquela cor de pele, se o pai e a mãe dele eram brancos...
Naquela semana, fiquei sabendo que tinha sangue negro na família. Uma bisavó (do lado materno) tivera três filhos com um mulato baiano e o cara a deixara uns anos depois. A bisa casou novamente, com um engenheiro italiano, e o novo marido perfilhou os filhos dela e ficou declarado que todos eram dele. O caso da bisa com o mulato foi apagado da história e na minha casa não se tocava no assunto.
Minha tia achou muita graça o fato de eu ignorar esse lado da família.
– Bem coisa de gaúcho. Carioca não é disso não. Carioca não dá bola – ela comentou.
Um dia a tia serviu uma feijoada no almoço e avisou que tinha feito um feijão normal para mim. Respirei aliviado. O tio comentou que gaúcho não entendia como se comia feijoada no Rio, com tempo quente e tudo mais. Eu disse que não entendia mesmo. Ele bebeu cachaça no início da refeição, acompanhou a feijoada com cerveja, suou e secou o suor com uma toalha que matinha em cima da mesa e, animado, disse para o filho me levar ao Corcovado.
– É o lugar mais bonito do Rio. Uma vista inesquecível. Não dá pra perder.
Contrariado, meu primo me levou naquela tarde mesmo. Íamos pegar um trenzinho para subir o morro, o trem ia demorar e ele achou melhor subirmos de táxi.
A única coisa que lembro do passeio é a viagem de táxi até o alto do Corcovado. O carro dando voltas e voltas e eu ficando enjoado, enquanto meu primo, de mau humor, olhava fixo para frente. Não recordo a vista maravilhosa que o alto do Corcovado proporciona. Havia um sol forte, um calorão tremendo, e ficamos sentados nos degraus do Cristo Redentor, sem ânimo para olhar a paisagem e descobrir a imensidão do Rio ou coisa parecida.
Muitos anos depois, quando visitava o Cemitério São João Batista – para apreciar os belíssimos monumentos funerários que ali se encontram – olhei para o alto e avistei o Corcovado. Lembrei daquela tarde ensolarada, mais de trinta anos atrás.
Talvez um dia eu volte ao alto do Corcovado e descubra e aprecie a vista inesquecível que se tem lá de cima.

O Velho

       O Velho morreu quando eu tinha três anos de idade. De tanto o pai e a mãe contarem como eram as visitas que fazíamos quando ele estava doente, parece que vejo tudo. Vejo o corredor cumprido da casa do Velho e nós caminhando até o quarto dele. Vejo a cama no meio do quarto, o Velho estendido, de barriga para cima, ofegante, olhando o teto. Depois vamos para a cozinha e a tia nos serve salada de frutas. Eu choro porque quero só o caldo da salada de frutas, não quero as frutas, e os adultos fazem a minha vontade. A mãe conta que faziam isso para eu parar de incomodar.
Então eu fico olhando pela porta da cozinha e vejo meu irmão correndo pelo pátio. Ele pára na frente de um puxadinho construído pelo avô – um pequeno telhado escorado por dois dormentes da estrada de ferro, com um tanque de lavar roupa embaixo – e ele fica olhando aquela pequena obra com uma espécie de veneração. Mais tarde eu também vou andar pelo pátio e parar na frente do tanque e passar a mão nos dormentes com ar de admiração. Aquilo foi obra do Velho nos tempos áureos, isto é, quando era um homem vigoroso. O Velho pertencera aos quadros da Viação Férrea e trouxera os dormentes para casa, justamente para aquela obra. As tias sempre contavam essa história.
Na última vez que visitei a casa, poucos anos atrás, fiquei caminhando pelo pátio e lembrei do Velho. Ele chegou ao Brasil no final do século XIX e meu sobrinho, vasculhando nos documentos da Hospedaria do Imigrante, descobriu a data certa: 20 de agosto de 1888. A abolição dos escravos acontecera naquele ano, meses antes. O avô chegou com o pai, a mãe, uma irmã menor e foram trabalhar numa fazenda de café, em Sorocaba.
Quando meu sobrinho enviou por e-mail os documentos, lembrei do que o pai contava:
– Os italianos chegavam para trabalhar nas fazendas e descobriam que, antes deles, quem fazia o serviço eram negros escravizados. Os escravos viviam em pequenas palhoças e os italianos não queriam morar naquelas casas acanhadas, indignas de um trabalhador.
A história do Velho me foi contada aos pedaços. Há anos venho juntando as partes e cada vez o resultado sai diferente. O Velho – naquele tempo um guri de catorze anos – colheu café em fazenda paulista, depois foi para a cidade e começou a trabalhar numa companhia de navegação. Os navios subiam o rio Tietê, entravam no Mato Grosso e ele pegou malária. O médico falou que ele não podia ter malária novamente e o mandou para um lugar onde não houvesse a doença. Por isso ele veio para o Rio Grande do Sul
Na década de 1920, o Velho chegou a Santa Maria e se tornou funcionário da Viação Férrea. Na década seguinte, estava estabelecido em Pelotas. Ascendeu ao posto de Engenheiro Prático – um tipo de engenheiro que não tinha diploma universitário (depois esses engenheiros foram substituídos pelos diplomados) – e se aposentou nos anos 50.
Era um homem severo, o pai contava. Chegava do trabalho sujo de graxa e jogava a roupa para as filhas lavarem. Queria tudo bem limpo. Gostava de camisas brancas, com punhos e colarinho engomados, e essas eram as peças que primeiro sujavam. As filhas se revezavam no tanque e depois passavam e engomavam. Deve ter sido por isso que ele trouxe os dormentes da estrada de ferro e fez aquele puxadinho no quintal da casa. Ali, as minhas tias penavam, inverno e verão. Não era fácil tirar o encardido das roupas, elas contavam.
O Velho gostava de se vestir bem. Dizia que era assim que um Engenheiro Prático precisava se apresentar, principalmente depois que os engenheiros diplomados começaram a ocupar os lugares de mando. O Velho sabia que estava perdendo espaço e lutava, com unhas e dentes, para manter sua posição. Fora assim que deixara de ser trabalhador rural e se tornara operador de máquinas, trabalhando em navio, e depois em locomotivas da Viação Férrea.
– Teu avô era um homem severo e intransigente. Hoje, se diria que era autoritário – o pai falava, com orgulho. E com os olhos marejados de lágrimas. Afinal, a dureza do Velho não se refletia apenas no trabalho. Em casa, ele era rígido na educação dos filhos. Batia por qualquer falha que alguém cometesse. Tirava o cinto das calças e sentava o laço no lombo dos filhos. Mas cuidava para não bater com a fivela, o pai observava. Dobrava a cinta para que a fivela ficasse presa na sua mão.
 – Quando alguma coisa não era feita como ele queria, o Velho gritava e batia – o pai explicava. – Mas depois envelheceu, enviuvou e ficou manso como um cordeirinho. Gostava que as noras sentassem ao seu lado e conversassem com ele. A tua mãe chegava perto da cama, levantava os netos e dizia: “Este é o Rubinho, este é o Vitinho. Olha como estão crescendo.”

Quando a mãe me apresentava pro Velho, na certa dizia que este era um menino manhoso, que ele precisaria ajudar a corrigir com uma ou outra surra. Então eu esperneava, ela me colocava no chão e eu corria para a cozinha. Chorava pedindo isto e aquilo e os adultos me atendiam para que eu me calasse e não atordoasse os ouvidos do Velho. Pois o Velho tinha muita dor. Ficava deitado, de barriga pra cima, as mãos em cima do peito, os olhos fixos no teto. Eu o vejo dessa maneira. Eu tinha três anos quando o Velho morreu. Tudo que eu sei foi o que me contaram.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

As aventuras de Tibicuera

          Tibicuera é o nome do personagem indígena de um romance juvenil de Erico Verissimo, intitulado As aventuras de Tibicuera e publicado em 1937. É um tupinambá que nasceu pouco antes da chegada dos portugueses na América e que atravessou quase quinhentos anos de história brasileira devido às mágicas de um pajé. Através desse recurso (a imortalidade do personagem), o autor narra os principais acontecimentos do nosso país até meados do século XX. O índio lutou contra os invasores holandeses, acompanhou o príncipe D. Pedro no grito do Ipiranga e termina transformado num civilizado cidadão que vive em Copacabana.
         Busquei o livro na minha estante, ainda pouco, e não encontrei. Não sei se dei para o meu filho, se perdi ou emprestei para alguém. Poucos anos atrás comprei um exemplar encadernado na banca de revista – parte de uma coleção das obras completas de Erico Veríssimo – e fiquei imaginando quantos milhares de leitores teve a obra... O livro alcançou dezenas de edições, foi publicado em coleção didática e deve ter encantado – e formado – várias gerações.
         No meu caso, foi indicado pelo professor de Português, num distante 1967, quando cursava a primeira série ginasial. Havia vários livros na minha casa, mas este foi o primeiro que marcou. Imagino que minha trajetória de leitor tenha iniciado por aí, pois até então eu apenas lia história em quadrinhos, um ou outro livrinho infantil e as coleções que meu pai guardava com carinho – O Mundo da Criança e o Tesouro da Juventude.
         Às vezes escuto que a escola não forma leitores e que a indicação de leituras obrigatórias mais inibe do que auxilia a garotada. Pode ser... Os professores de Língua Portuguesa têm tarefas colossais sobre seus ombros. Eles indicam obras consagradas pelos estudiosos da literatura e a gurizada só tem os olhos e ouvidos para o que a indústria cultural propagandeia. Não há dúvida que os professores jogam com recursos desiguais e perdem feio.
         No entanto, muitas vezes a coisa funciona e as determinações escolares abrem portas para mundos fascinantes. Algumas vezes a indústria cultural endossa as indicações escolares e aí as tarefas dos professores fica mais fácil.
       Escrevo isso e fico imaginando o que vai acontecer com a obra de Erico Veríssimo depois do sucesso do filme de Jayme Monjardim, baseado n’Tempo e o vento. É um filme bonito, comovente – uma narrativa bem feita que atinge direto o coração do espectador – e que traz surpresas mesmo para aqueles que conhecem o livro de cabo a rabo. Entre as novidades, a história narrada por uma mulher, a Bibiana, velha e viúva, desfiando a formação da família Terra-Cambará desde meados do século XVIII até a Revolução Federalista de 1893. No final do filme, um Rodrigo menino, o futuro Doutor Rodrigo, abanando para a avó Bibiana e indicando a possibilidade de um O tempo e o vento, parte 2 – a desmontagem do mito da formação sul-rio-grandense tão bem construído nessa primeira parte da trilogia.
Seja o que vier pela frente, gostei do filme e imagino que ampliará o número de leitores da obra de Veríssimo. Meus amigos me dizem que é uma possibilidade remota, mas não custa apostar.
         Procuro mais uma vez As aventuras de Tibicuera na estante, não encontro e imagino que o volume tenha caído nas mãos certas, isto é, de um menino que soube ficar encantado com a narrativa.

domingo, 29 de setembro de 2013

Sêneca e a essência da vida

         Sêneca foi um filósofo romano do século I d.C. e alguns de seus livros são até hoje publicados. Ele nasceu em família rica, na Espanha, e cedo foi para Roma estudar filosofia. Tornou-se advogado, senador, e teve a vida ligada à corte imperial, tornando-se preceptor de Nero – que governou o Império romano entre os anos de 54 a 68. Quando Nero passou a governar, Sêneca foi seu conselheiro durante alguns anos. Em 65, foi envolvido numa conspiração, acusado de tentar assassinar o imperador, e, por isso, constrangido a se suicidar. Cortou os pulsos junto com a esposa e morreu serenamente, segundo relato do historiador Tácito.
Sêneca era um filósofo estóico. Valorizava a razão – nenhum poder acima da razão humana – e propunha a renuncia dos bens materiais ou, pelo menos, uma disposição a não considerar esses bens o centro da vida. Nem os bens materiais nem os afetos, mas a vida modesta, sóbria, sem os altos e baixos das paixões. Apesar de não valorizar muito a riqueza, Sêneca foi um homem rico.
Todo esse preâmbulo, prezado leitor, é para explicar um pensamento de Sêneca que encontrei num livro sobre a civilização greco-romana e que volta e meia me faz refletir. O texto (que reproduzo com minhas palavras) diz o seguinte: reserve alguns dias para experimentar uma vida modesta. Nesses dias, use roupa grosseira, durma em cama dura e coma apenas pão. Permaneça nessa situação uns três ou quatro dias (não mais do que isso) e lembre que milhares de homens e mulheres vivem nesse estado cotidianamente, ao longo de toda vida.
Sêneca era um romano da classe dominante e devia saber das condições de pobreza da maioria dos homens livres do Império – isso sem falar na miserabilidade dos escravos. A desigualdade social do mundo romano era tremenda e superava a da sociedade latino-americana na qual vivemos.
O que Sêneca pretendia com esses exercícios de frugalidade não era, de modo algum, uma aproximação com a vida dos pobres e, a partir daí, uma prática de transformação social. Sêneca não era um revolucionário – e nem um cristão que valorizasse a pobreza e a humildade. O que ele pretendia era um exercício prático para estabelecer o primado do que considerava essencial: a vida modesta, ditada exclusivamente pela razão, sem apego aos bens matérias, nem aos afetos. A vida na sua essencialidade – restrita aos prazeres mais modestos de respirar e pensar, comer o pão e beber a água. Coisa que a maioria de nós jamais conseguiria fazer – a não ser pressionado e sem nenhuma condição de espernear.

sábado, 21 de setembro de 2013

Mitologia gaúcha

O MTG tem se revelado bastante dinâmico. Neste ano, propôs para as suas agremiações o desenvolvimento de atividades culturais que envolvessem uma reflexão a respeito da origem do gaúcho a partir da perspectiva da mitologia regional. Tempos atrás, eu via os intelectuais do MTG se contrapondo a qualquer ideia que maculasse a “verdade histórica do gaúcho”. Falar em “mito do gaúcho”, por exemplo, era uma ofensa.
Na perspectiva de um tradicionalista, não havia mito, havia verdade histórica. O gaúcho era entendido como um nômade selvagem que, ao final do século XIX, se transformou num tipo civilizado, um verdadeiro cavalheiro.
Uma das elaborações pioneiras dessa compreensão encontra-se em “Ensaio sobre costumes do Rio Grande do Sul” (1883), de João Cezimbra Jacques (reeditado pela Editora UFSM, em 2000).
Até recentemente, me parece que a discussão a respeito da figura do gaúcho se dava em torno da “verdade histórica a respeito da formação de nossa sociedade” e da inserção social dos “cavaleiros nômades” na sociedade estabelecida. Um debate que passava ao largo do entendimento de que as sociedades elaboram mitos, constroem narrativas míticas e embaralham os dados que a historiografia (com pretensões de ciência) estabelece.
Hoje, alguns quadros do MTG estão afinados com as atuais tendências historiográficas e tratam o assunto de forma diferente. Referem-se tranquilamente à “invenção das tradições”, ao projeto político-ideológico da elite regional sul-rio-grandense (que estabeleceu as bases do movimento tradicionalista) e  entendem que o gaúcho foi uma construção cultural. Como tipo social, o gaúcho foi exterminado pelas guerras e pelo cercamento dos campos. Ao mesmo tempo, foi recuperado e ressignificado por literatos e também por ideólogos da classe dominante.
De certa forma, esses novos quadros do MTG (provavelmente ainda em pequeno número) renovam a “ideologia do gauchismo” e a desvinculam de concepções conservadoras. Rompem com o entendimento do gauchismo como suporte de um projeto conservador de sociedade e o consideram, principalmente, como elemento da identidade sul-rio-grandense. Uma identidade que não cessa de conquistar adeptos.
Da minha parte, penso que tenho colaborado com esses quadros que buscam a renovação do gauchismo. Afinal, mais uma vez, fui palestrar num piquete acantonado no Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre. Preparei uma palestra a respeito das narrativas literárias e me dispus a colaborar quanto à reflexão em torno da figura do gaúcho, a partir da mitologia regional.
Nesse sentido, centrei fogo nas narrativas literárias que se alicerçam no mito, como foi o caso da obra de João Simões Lopes Neto.
Lopes Neto, afinal, ao criar Blau Nunes – um “genuíno tipo [...] rio-grandense”, “guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável” – configurou um dos mais emblemáticos gaúchos da nossa mitologia. Seus principais livros –  Contos gauchescos e Lendas do Sul – foram publicados na década de 1910 e podem ser lidos com gosto até os dias de hoje.
Ao final do conto “A Salamanca do Jarau”, entendo que Lopes Neto estabeleceu o ideal de gaúcho da nossa mitologia: o homem rude, frugal e honesto. Blau Nunes se desfez de toda a riqueza que lhe concedera o sacristão enfeitiçado pela Princesa Moura para bem poder comer o seu churrasco, beber o seu chimarrão e fazer a sua sesta em paz, com “o coração aliviado e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde”.
O leitor talvez ache que encaro de forma muito branda um assunto tão complexo a respeito da cultura sul-rio-grandense. Pode ser. Mas tem sido esse o meu jeito de dialogar com os regionalistas. Dialogar, colaborar e ao final comer um costelão delicioso ou – como ocorreu nesse ano – uma fabulosa paella gaúcha.

Comer, charlar, confraternizar, com o coração sintonizado num mito fundado encarnado por Blau Nunes – o pachorrento Aquile que nos coube no grande banquete cultural da humanidade. 

sábado, 7 de setembro de 2013

Leite adulterado

         Há cenas do cotidiano que nos conectam com o mundo, que nos remetem para além da cena prosaica do dia a dia. No meu caso, poderia dizer que o café da manhã às vezes tem esse sentido. 
Há dias em que despejar o leite na leiteira e esperar ele esquentar me remete à vivências mais profundas, como o meu tempo de criança ou a época em que eu cuidava dos filhos pequenos...  
Na minha infância, o leiteiro deixava a garrafa de leite no portão de casa e depois a mãe ou a empregada o colocava a ferver. Tinha que deixar subir no mínimo três vezes para eliminar de vez os germes e bactérias.
Minha memória pode estar enganada, mas acho que era assim: deixar ferver três vezes. Quando meus filhos passaram a tomar leite de vaca, eu tomava esses cuidados. Ferver e depois esfriar o leite. Às vezes, tudo feito com rapidez, pois o leite (a mamadeira) precisava ser servido logo.
Não havia mais o leiteiro e sua carroça passando pela rua. O leite era adquirido no supermercado e não mais em garrafa de vidro, mas embalado em saquinho plástico.
Hoje, compro caixas de Elegê desnatado e não me preocupo mais em ferver o leite. Apenas esquento. O processo de preparo do leite ganhou um estatuto industrial e germens e bactérias já vêm eliminados – junto com conservantes, claro.
No entanto, notícias de adulteração do leite passaram a ser freqüentes na imprensa e disso me lembrei, hoje, ao preparar o café da manhã...
Em Teutônia, no Vale Taquari, a empresa BRF (que produz o Elegê), recebeu 33 mil litros de leite cru adulterado com álcool etílico (o mesmo dos combustíveis e daquele utilizado na limpeza doméstica). O leite não chegou a ser industrializado, não chegou aos consumidores, mas os produtores de leite tentaram.[1]
Na manhã de hoje, diante da leiteira em cima do fogão, alguma coisa nublou a minha cena doméstica e, especialmente, a minha conexão com o passado. Pensei no que eu faria, se tomasse conhecimento de episódios como esse quando esquentasse o leite para os filhos pequenos...
Pensei tudo isso, me servindo de leite, misturando o Nescafé e bebendo silenciosamente. 
Ao fundo, cheguei a ouvir a voz do meu filho quando era pequeno, encostado na porta da cozinha, perguntar:
– E essa mamadeira, que horas vai sair?




[1] FISCAIS detectam álcool em leite entregue para a BRF. Zero Hora, POA, 31 ago 2013, p. 26.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Perigo vermelho

No espaço católico dos anos 60, era comum a pregação anticomunista. Criança, me habituei a ouvir falar mal do comunismo. Comentários a respeito do perigo vermelho, do ateísmo e da terrível situação vivida pelas mulheres, a família e a Igreja no sistema soviético. Recordo uma tia mostrando uma foto de robustas mulheres russas trabalhando com britadeiras, e ela dizendo que era uma barbaridade o que a União Soviética fazia com as mulheres, como brutalizava as mulheres ou coisa assim.
Mais tarde, no início dos anos 70, freqüentei um ambiente católico influenciado pelas idéias da Conferência de Medellín (o berço da Teologia da Libertação) e a pregação anticomunista arrefeceu. O socialismo soviético ou cubano não era propagandeado, mas compreendido como uma alternativa às injustiças criadas pelo capitalismo. E os comunistas, por outro lado, entendidos como aliados na luta a favor da justiça social.
Escrevo as linhas acima depois de ler artigo da historiadora Marta Borin, que investigou a respeito da devoção a Nossa Senhora Medianeira. Segundo a pesquisadora, uma das variáveis que dinamizaram essa devoção fui justamente o anticomunismo. A devoção teve seu centro na cidade de Santa Maria, ganhou as ruas em 1930 – segundo os devotos, a santa salvou a cidade de bombardeios, quando foi desencadeada a revolução liderada por Vargas – e nos anos seguintes se propagou pelo Rio Grande do Sul e também pelo país. Padre Valle, o principal divulgador da devoção, vinculou o culto a Medianeira aos nascentes Círculos Operários e a pesquisadora entende que este foi um dos fatores que favoreceu o fortalecimento da devoção.
Em 1937, os Círculos adquiriram projeção nacional – com a criação do Movimento Nacional dos Círculos Operários Católicos, no Rio de Janeiro – e, ao mesmo tempo, N. Sra. Medianeira foi entronizada “Rainha e Advogada” dos trabalhadores brasileiros. Do ponto de vista simbólico, Medianeira se tornou uma “poderosa Senhora, colo materno e consolo nos momentos de dor, aflição e perigo”. Vinculada ao projeto de difusão da Doutrina Social Católica, que buscava soluções para as aflições da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, combatia o “socialismo revolucionário”, N. Sra. Medianeira ganhou o coração dos operários. Nas festas em honra a santa, em Santa Maria, operários de Porto Alegre e Pelotas vinham de trem participar.
Em 1942, Medianeira foi oficialmente entronizada padroeira do Rio Grande do Sul, e, em 1951, a direção nacional dos Círculos Operários entregou ao Papa Pio XII sete volumes de assinaturas (117 mil assinaturas) “pela definição do dogma de Medianeira de Todas as Graças”. A “Poderosa Senhora” intervinha a favor dos operários, apaziguava suas aflições, e servia de defesa contra a ameaça comunista.
A ação dos Círculos Operários arrefeceu nas décadas seguintes – a partir dos anos 50, houve mudanças na política católica, a Ação Católica, p.ex., passou por transformações –, mas nem por isso a devoção a Medianeira arrefeceu. Em Santa Maria, por sinal, continuou crescendo. Segundo a pesquisadora, Igreja e Estado fizeram esforços conjuntos para que a santa se legitimasse aos olhos e corações dos brasileiros e não apenas dos operários.

Em relação ao comunismo, Nossa Senhora sempre esteve alerta. Foi isso que escutei quando criança. Foi isso que lembrei ao ler o artigo da professora Marta Borin. Com inteligência e planejamento, o clero católico trabalhou para que os seus fiéis assim pensassem e se sentissem protegidos das mazelas do perigo vermelho.

sábado, 31 de agosto de 2013

A biografia de Kafka

        Na década de 80, costumava freqüentar a biblioteca do Instituto Goethe, em Porto Alegre. Certa vez tirei uma biografia de Kafka, li menos da metade e a esqueci na estante de casa. Um mês depois, recebi correspondência do Instituto avisando que o livro estava atrasado. Prontamente, fui até a bibliotecária, entreguei o livro e procurei saldar a minha dívida. A funcionária, no entanto, respondeu que não havia multa pelo atraso. Bastava que o livro fosse entregue em boas condições. Fiquei admirado.
Não conheci outra biblioteca igual. Aquilo me pareceu o máximo de civilidade entre biblioteca e usuário: os atrasos plenamente compreendidos e nem sombra de punição. Cada leitor tem seu ritmo, cada livro impõe seu tempo e nem sempre o prazo das bibliotecas se adequam a esse compasso.
O episódio me faz pensar na temporada de Lênin na Suíça. Lênin escrevia aos bibliotecários e solicitava os livros que precisava. Os bibliotecários o atendiam, enviavam os títulos pelo correio e tudo se dava de maneira simples e cordial. Esse mundo europeu, civilizado, existia enfim no Brasil, conclui.
Nos anos 90, quando fui responsável por um gabinete de leitura no Curso de História da UFSM, sonhei com um sistema de empréstimo dessa natureza. Um sistema de total confiança entre a biblioteca e os usuários. O curso tinha um excelente acervo de historiografia e era fundamental incentivar e facilitar a consulta, a leitura e o apetite intelectual dos alunos. Com o passar do tempo, porém, alguns estudantes entenderam que poderiam se adonar dos livros... e nosso acervo foi minguando. Uma lástima!
Essa experiência foi um divisor de águas para mim. Não sei bem se me ensinou a respeito das pequenas maldades da alma humana ou quanto à nossa escassa educação. Seja como for, passei a entender que empréstimos de livros só funcionam se houver prazos e multas, alguma espécie de punição para o usuário relapso ou mal intencionado. Foi uma aprendizagem e tanto esse meu curto período no gabinete de leitura.
Será que o Instituto Goethe, de Porto Alegre, ainda continua não cobrando multas pelo atraso? Continuará a ser a ilha de civilidade que era nos anos 80?

Não sei. No mundo que conheço, as coisas só funcionam se houver punição. Caso contrário, a biografa do Kafka ou as obras de Lênin... ficariam dormindo nas estante de leitores esquecidos, relapsos ou mal intencionados mesmo.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A origem da base aérea em Santa Maria

Foi na Feira do Livro de Santa Maria, anos atrás. Conheci um senhor numa fila de sessão de autógrafos e ficamos conversando. Ele contou que morava na região onde hoje se encontra a Base Aérea, no Bairro Camobi. Era guri de enxada na mão enquanto acontecia a guerra na Europa e os norte-americanos chegavam a Santa Maria e instalavam uma pista para os aviões que iam espionar o Rio da Prata e adjacências. “Para acompanhar o que os argentinos faziam porque a Argentina, não sei se o senhor sabe, não declarou guerra ao nazismo como fez o doutor Getúlio.”
Ele contou que era menino de dezesseis anos e parava tudo para ouvir os aviões decolarem, saia correndo para vê-los levantar vôo e ficava horas esperando eles voltarem. Não entendia nada de guerra. Peleia para ele se dava em terra firme, com os pés cravados no chão ou então em cima de um cavalo. Um tio era brigadiano em Santa Maria e participara ao cerco da fazenda de Borges de Medeiros, em 1932. Brigadiano de botina nos pés e fuzil nas duas mãos. “Só fui conhecer piloto de avião, de perto, muitos anos depois”, ele disse, “aqueles americanos eu não via direito. Ficava escondido no mato e observava tudo de longe.”
O nome do homem que me fez este relado eu não lembro. Disse que tinha 80 anos e aprendera a ler no quartel. Que graças ao quartel aprendera ofício de telegrafista e deixara a roça. Que considerava isto o maior feito da sua vida: sair da roça e se tornar telegrafista da Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Mas que às vezes tinha vontade de ter sido piloto de avião e voado sobre o Rio da Prata. Depois de velho, sabia tudo sobre aviões e sobre a geografia do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina – “que é a parte mais bonita do mundo”, afirmava.

E ficamos ali, entre os livros da praça, o homem me contando sobre os aviões que os americanos usavam durante a Segunda Guerra Mundial, como se desenvolveu a Força Aérea Brasileira, e eu me sentindo um guri de colégio. Um guri com os cadernos e os livros de baixo do braço, que pára tudo para ouvir os mais velhos contarem todas as coisas que sabem, a guerra, as barbaridades do mundo, “e essas coisas que nem dá pra imaginar aqui no meio da praça, com tanta gente jovem e bonita.”

domingo, 18 de agosto de 2013

Comentário de ministro do STF

No Rio de Janeiro, duas jovens advogadas estão pleiteando cargos de desembargadoras para o Tribunal Regional Federal (TRF). As jovens têm 37 e 32 anos e defenderam, até agora, meia dúzia de processos cada uma (nenhum deles no TRF). Para profissionais da área do Direito, elas têm um currículo inexpressivo, experiência rala no ramo e dificilmente seriam candidatas fortes. No entanto, as duas jovens são filhas de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e contam com o aval dos colegas e amigos dos pais. Seus concorrentes são dois advogados, com 45 e 52 anos, com vasta folha de serviços, mas sem padrinhos importantes. Estão desacorçoados os concorrentes.
Li a respeito do episódio no sítio da Folha de S. Paulo e fiquei impressionado. Isto ainda acontece? Feita a denúncia do jornal, será que o processo de escolha dos futuros desembargadores seguirá o trâmite viciado apontado pela matéria ou pesará a avaliação criteriosa do currículo dos candidatos?
Seja qual for o resultado – e o resultado pende a favor das jovens candidatas –, resta o consolo de que o episódio está ricamente documentado na imprensa. E, quem sabe, talvez se transforme numa cena teatral sobre nepotismo e corrupção em ambientes atapetados de palácios da Justiça... em São Petersburgo.
Na cena, o ministro Marcus Melinovski, dialogando com jornalista que questiona seu comportamento a favor da filha, pergunta exaltado:
– É justo que nossos filhos tenham que optar por uma vida de monge?
O jornalista lembra que um colega do ministro, na distante América do Sul, já reagiu dessa maneira às críticas de nepotismo e pondera que nas subdesenvolvidas repúblicas sul-americanas isso não costuma causa maiores problemas.
– Mas na selvagem Rússia, senhor ministro, os estudantes exaltados costumam jogar bombas. O senhor não teme esses impiedosos radicais?
O ministro ignora a provocação e se dirige ao samovar para se servir de uma xícara de chá.
Resta este consolo, reles consolo, prezado leitor: o de fazer humor com o comentário paternal e debochado de um ministro do STF e ponderar se é justo ou não um pai-ministro acertar a vida da filha.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A festa de Nossa Senhora dos Navegantes

A festa de Nossa Senhora dos Navegantes é tradicional no Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, começou em 1871, ao ser fundada a “Devoção da Santa Virgem Protetora dos Navegantes”. Nesse mesmo ano, foram realizados os primeiros festejos na cidade, com procissão terrestre e fluvial.
A procissão fluvial se manteve até o final da década de 1980. Em 1989, sob o impacto do acidente do Bateau Mouche, no Rio de Janeiro, a Capitania dos Portos de Porto Alegre a suspendeu. Denúncias quanto à segurança das embarcações se acumulavam há alguns anos e nunca mais se suspendeu a proibição. Atualmente, a Irmandade de N. Sa. dos Navegantes, responsável pelo evento, promove apenas a procissão terrestre. Umbandistas e batuqueiros, no entanto, realizam uma procissão paralela sobre as águas.
No Rio Grande do Sul, outras cidades portuárias também mantém a devoção e a festividade – como é o caso de Rio Grande, Pelotas, Uruguaiana e São Borja. Os católicos coordenam as festividades, mas o sincretismo com a religiosidade de matriz africana contribui muito para a popularidade e grandeza da festa. Nos últimos vinte anos, porém, com o fortalecimento do “africanismo”, alguns babalorixás e ialorixás não estimulam mais os seus seguidores a frequentar a festa católica. A maioria dos umbandistas e batuqueiros, no entanto, continua entendendo que N. Sa. dos Navegantes e Iemanjá são a mesma entidade e participa entusiasticamente.
Meu pai era um devoto mariano e não perdia a procissão. Gostava de acompanhar a imagem da santa quando morava em Pelotas e passou a fazer a mesma coisa quando nos mudamos para Porto Alegre. No final dos anos 60, a mãe o acompanhou numa procissão pelo Guaíba, mas a superlotação do barco a deixou assustada. Ela passou a participar apenas da procissão terrestre (entre a Igreja do Rosário e o cais do porto) e o pai seguia adiante, pulando para dentro de um barco ou navio.
O pai adorava a função. Ele era um devoto de Nossa Senhora (e também de Santa Terezinha) e gostava de se envolver em festividades populares, de participar de um ritual litúrgico e também de comer melancia. Apesar da melancia estar presente na festividade por conta da associação com Iemanjá, essa dimensão da religiosidade umbandista não o sensibilizava. Gostava da fruta, isto sim – de preferência se ele pudesse escolher e talhar a melancia –, assim como navegar pelas águas do Guaíba sob a proteção de Nossa Senhora. Homem de ação que era, a sua religiosidade precisava de exteriorização e não se importava com a super-lotação dos barcos, com o empurra-empurra do povo ou com o sacolejo das ondas do rio. Pelo contrário.
Quando frequento as festas religiosas, atualmente, volta e meia lembro do pai. Vejo os homens carregando o andor do santo ou da santa, vejo os homens assando o churrasco que vai ser servido depois da missa e sinto o quanto eles são religiosos e felizes nos seus gestos simples e honrados. Penso que meu pai era desse jeito, que sua fé precisava desses gestos – como pular para dentro de um barco super-lotado, sem muita segurança e ir seguindo a santa com os olhos e o corpo inteiro.

Uma lástima que eu nunca tenha acompanhado meu pai na procissão de Nossa Senhora dos Navegantes.

sábado, 3 de agosto de 2013

A morte do general

O general morreu. O general estava preso, dormia na sua cela, foram acordá-lo e ele estava morto. O general, aquele mesmo a respeito do qual nós conversávamos numa praça de Buenos Aires, no verão de 1977.
         Mas não me pede para lembrar o nome da praça. Sei que ficava no centro da cidade. Nós éramos três jovens estudantes e havíamos comido pizza e bebido vinho num restaurante das imediações. Tu estudavas Ciências Sociais, interromperas o curso e trabalhavas numa livraria. Minha amiga e eu cursávamos os últimos anos dos cursos de Medicina e História, respectivamente, e visitávamos Buenos Aires pela primeira vez. Estávamos deslumbrados com a capital portenha e apavorados, também, pelo que tu nos contavas a respeito do golpe militar, no ano anterior.
Tu relatavas as aflições da esquerda argentina e dizias que muitos amigos e conhecidos haviam desaparecido, seguramente torturados e talvez estivessem mortos. Outros viviam na clandestinidade e nos desenhavas um quadro social no qual a vida cotidiana se estraçalhava.
         Não restava perspectiva para os grupos de esquerda, por mais que uma ou outra liderança afirmasse o contrário. Andando pelas ruas de Buenos Aires, cruzávamos por automóveis Falcon e nos explicavas que eram esses os carros dos sequestros. Dentro deles andavam paramilitares, militares e policiais, e eles capturavam e davam sumiço em quem entendessem ser inimigo do Estado: um estudante, um sindicalista, um militante de esquerda. E, depois disso, não se tinha mais notícias deles.
Tu falavas sussurrando, olhando para os lados e teu corpo vivia aflições que nos contagiavam. Nós estávamos sentados num banco da praça, era quase meia-noite e a praça estava movimentada, aparentemente por pessoas alegres e despreocupadas. 
Pedias que falássemos baixo e seguíamos tua orientação. Num banco próximo um casal se enroscava no maior amasso, braços e pernas entrelaçados, e eu disse que nas praças brasileiras nunca vira coisa igual. Aqui é assim, tu explicaste, e continuaste falando da situação dramática que o país vivia. Ou, pelo menos, que parte da população vivia – afinal, outros tantos apoiavam o general e seus comparsas.
Dias depois atravessei o Rio da Prata e voltei para o Brasil. Nós, brasileiros, vivíamos um outro momento político – a abertura do general Geisel se consolidava, mesmo que a achássemos conservadora e canhestra – e não padecíamos a conjuntura de terror vivida pelo povo argentino.
Tempos depois vieste ao Brasil, te reencontrar com minha amiga, mas a transa de vocês não rolou com a mesma química que acontecera em Buenos Aires. Faltou tempero, ela disse, e não entrou em detalhes.
Agora – depois que li na Internet a respeito da morte do general – me pergunto se permaneceste em terras brasileiras, seguiste para a Espanha ou regressaste ao teu país... Que foi feito de ti? Não recordo teu nome, mas lembro tua figura de cabeludo e a expressão soturna. Um argentino de origem italiana. Um estudante de esquerda assustado. Se continuas vivo, na certa estás pensando no general... 
Pois eu saio para andar pela cidade onde moro, no interior do Rio Grande do Sul, e parece que escuto nossas conversas em Buenos Aires... Atravesso a praça central, é início de uma noite de inverno e faz frio. Não vejo nenhum casal se abraçando e se beijando nos bancos da praça e nem avisto algum automóvel Falcon passando. Tenho a impressão de que uma noite latino-americano nos cobriu, aterrorizou, mas já amanheceu.
São bem outros os tempos que vivemos, mas alguma coisa ainda assombra. Vem do passado um lamento triste e sinto que minha alma escurece. Estou numa praça brasileira, sul-rio-grandense, santa-mariense, e caminho em silêncio em homenagem aos mortos, aos feridos e aos desaparecidos.
O general morreu. O general que comandou o golpe. E evito dizer seu nome.

(Maio de 2013)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Um lugar ao sol

          Houve um tempo que era assim: eu acordava de manhã, me dava na veneta de pegar a estrada e lá ia eu. Fazia a mochila, ia até a rodoviária pegar um ônibus ou então parava na beira da estrada e esperava uma carona.
         Minha mãe conta que nessas horas era difícil me conter. Ela não sabia o que acontecia comigo.
– Pra onde tu vais? – ela perguntava.
– Não sei – eu respondia. – Pra praia, pra qualquer lugar.
E geralmente o caminho era o litoral mesmo. Muitas vezes o Litoral Norte (Tramandaí, Capão da Canoa ou Torres), mas outras vezes eu seguia até Santa Catarina (Garopaba, Naufragados, Porto Belo). Certa vez fiquei numa praia que até hoje não sei o nome e dormi dentro de um barco de pescador.
A viver o tédio em Porto Alegre, às vezes eu escolhia o tédio na beira mar.
         Nessa oportunidade em que parei dentro de um barco de pescador, coloquei na mochila um romance do Érico Veríssimo e foi a salvação da lavoura. Me acomodava na sombra do galpão dos pescadores e passava horas lendo. Dava um mergulho no mar, dava uma caminhada e voltava para a leitura. 
Na minha mochila, sempre houve lugar para os livros: uma bolsa externa, na qual os livros ficavam bem acomodados e não tinham as páginas amassadas. Ali cabiam os poemas de Drummond e Quintana, o jornalismo contracultural de Luís Carlos Maciel, os textos políticos de Trotsky e até Monteiro Lobato. Não me recordo de nenhum título de Hermann Hesse me acompanhando nessas viagens, nem de Rubem Fonseca, Caio Abreu ou Dürrenmatt – leituras obrigatórias daqueles anos 70. Ou melhor, leituras que faziam parte do repertório da minha geração.
Naquela manhã que resolvi partir para uma praia desconhecida, em Santa Catarina, era o romance Um lugar ao sol, de Veríssimo, que me acompanhou. A luta de Vasco e Noel por um lugar na sociedade porto-alegrense da década de 1930. E, no meio da trama, uma personagem feminina luminosa chamada Fernanda, que nunca perdia a fé & a esperança.
Abri o romance outro dia e várias lembranças vieram à tona: uma viagem repentina, uma praia desconhecida e a sombra de um galpão de pescadores... É este livro que me entreteve nos últimos dias – um romance sem unidade, segundo o próprio autor, mas com personagens bem configurados. E, no meu caso, mais do que uma leitura agradável, um bilhete de viagem para um verão da década de 70.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

A reconstrução

            O assunto é antigo: no final do século XVII, os jesuítas espanhóis atravessaram o rio Uruguai, penetraram no que viria a ser o atual estado do Rio Grande do Sul e reconstruíram suas cidades, isto é, as chamadas reduções.
         A primeira onda de evangelização ocorreu nas décadas de 1620 / 1630 e foi interrompida pelos ataques dos bandeirantes paulistas, que visavam à escravização dos indígenas. Acossados pelas agressões, os jesuítas regressaram ao outro lado do rio.
         A partir de 1682, no entanto, os religiosos voltaram. Fundaram São Borja e depois mais outros seis povos – entre eles São Miguel, com uma imponente igreja. A igreja de São Miguel Arcanjo era comparável a muitas catedrais européias do período e suas ruínas permitem até hoje que percebamos as suas dimensões grandiosas.
Em 1750, Portugal e Espanha negociaram as terras pertencentes a esses Sete Povos Missioneiros e decretaram o fim do projeto dos jesuítas na região. Os padres cruzaram novamente o rio Uruguai, enquanto os índios guarani enfrentavam militarmente as tropas luso-espanholas. Em janeiro de 1756, na batalha de Caiboaté, os índios foram derrotados e calcula-se que tenham perdido mil e quinhentos guerreiros no episódio.
A chamada Região Missioneira do Rio Grande do Sul se constrói a partir dessa derrota. Em 1801, os luso-brasileiros ocupam definitivamente o território e, mais tarde, chegam os imigrantes alemães e italianos. Os nativos ficam como população marginal diante dessa ocupação lusitana, brasileira, alemã e italiana, e perdem o papel que tiveram durante o período das reduções. Porém a história “da civilização criada no Rio Grande do Sul pelos Padres Jesuítas e Índios Guarani” é apossada e recriada pelos novos habitantes lusos, brasileiros e imigrantes.
Provavelmente, é essa uma das melhores histórias da formação da sociedade sul-rio-grandense.
No último final de semana, visitei as ruínas de São Miguel e dessa vez o que me chamou atenção foi a capacidade dos jesuítas de superarem a derrota frente aos bandeirantes e voltarem. Regressarem às terras abandonadas a contragosto e reconstruírem seu projeto missionário. Levantarem escolas, oficinas e um grande templo religioso. Superarem dores, frustrações e, mais tarde, serem derrotados novamente.
Caminhando por cima das pedras que antes erguiam escolas e oficinas, pensei nos homens corajosos que foram capazes de superar a derrota e colocarem em pé seus projetos de grandeza e delírio.
Só pensei nisso: a capacidade que alguns têm de se reerguerem, não esmorecerem e reconstruir.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Sempre há um dia em que a gente descobre


Sempre há um momento em que a gente descobre a fragilidade da vida. Este era o tema de uma conversa que tive semanas atrás, com alguns alunos, no campus da UFSM.
Esta semana, um dos alunos retomou a conversa. Nos encontramos no centro da cidade – numa manifestação de luto pelos mortos na boate Kiss – e ele falou:
– Eu descobri na madrugada desse domingo. Descobri que a vida é frágil, bem no centro de Santa Maria, diante de uma boate sofisticada. Vinha caminhando pela Avenida Rio Branco, ouvi a sirene dos bombeiros e corri para ver o que era. A bebedeira passou na hora. Vi tudo. O incêndio, a fumaça, os corpos sendo retirados. Vi mais do que devia. De uma hora pra outra, dezenas de mortos e feridos.
A história do meu aluno é dramática, de uma intensidade violenta, e talvez sintetize a de muitos outros jovens de Santa Maria – os sobreviventes. Esta geração não vai esquecer o que aconteceu.
Tenho escutado relatos dessa juventude e todos conhecem alguém que morreu, que escapou, que está em observação no hospital, que por pouco não entrou na boate, que decidiu ir noutro lugar.
Muitos falam dos shows de pirotecnia (que sempre assistiram despreocupados), a maioria especula sobre a qualidade dos extintores, sobre as saídas de emergência, as luzes de sinalização, os alvarás de funcionamento, as responsabilidades dos engenheiros, dos bombeiros, dos empresários e da Prefeitura.
Alguns querem entender como as coisas acontecem. O que é da responsabilidade humana, o que está ao alcance das nossas ações? O que é fruto da fatalidade e não é possível controlar?
Meu jovem interlocutor está arrasado. Ele quer saber como uma faísca, uma simples faísca, provocou um número inacreditável de mortos e feridos. Quem errou no combate a esse pequeno incidente? Onde as falhas (os erros humanos) para que a faísca, o fogo e a fumaça tomassem proporções trágicas?
Sempre há um dia em que a gente descobre a precariedade da vida. E a juventude santa-mariense está descobrindo isso de forma excessivamente dramática, brutal, insuportável. 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Mundo doméstico


A mãe conta que tinha empregada doméstica, faxineira e lavadeira. Ela era professora primária, o pai trabalhava num banco, e pergunto para ela como eles pagavam tantos empregados. “Não sei”, ela diz, e explica que o salário que recebia permitia que renovasse o guarda-roupa dos três filhos, sempre que mudava a estação. Os professores da escola pública não ganhavam mal nas décadas de 1950 e 60. Mas nos 60 as coisas mudaram, ela explica. A situação salarial dos bancários também se modificou.
Na segunda metade da década de 60, as condições da classe média brasileira se reconfiguraram. Talvez seja assim que se deva dizer. Crise do modelo de acumulação de capital, crise política e institucional (resolvida por meio de golpe militar), repressão aos movimentos operário e camponês. Aos poucos as coisas foram apertando para os setores médios também.
A mãe conta que não lembra da “repressão”. Todos na família apoiavam a intervenção militar. O irmão dela era major e se alinhava ao “movimento civil-militar”. Um outro tio (do lado paterno) era do PTB, fora preso (desapareceu logo depois do golpe, apareceu meses depois num quartel e depois foi solto), mas não se falava sobre ele.
“Teu tio brizolista era da pá virada”, a mãe conta. “Ele levou teu pai a uma reunião partidária e ele voltou enfurecido. Nunca contou o que houve. Só falou que nunca mais voltava. Passou a detestar política.”
Faço com minha mãe o que se chama história oral – ou, ao menos, a coleta do seu depoimento de vida. É uma mulher que admiro – não apenas por ser minha mãe.
De manhã cedo, acordando o marido e os filhos, andava de um lado para o outro e não faltava coisa alguma para nós: a roupa para vestir, o café, o leite e o pão na mesa da copa. Andando pela casa, ela cantava o Hino Rio-Grandense ou recitava Alceu Wamosy (“Ó tu que vens cansada, ó tu que vens de longe / Entra e sobre meu teto encontrarás pousada”).
Ríamos muito, nessas horas matutinas, vestindo as calças brim-coringa e depois segurando a xícara com as duas mãos e sorvendo o café com leite. Às vezes, reclamávamos de alguma coisa. Se bem que isto de reclamar não era permitido. “Vocês têm tudo” – e aqui entrava a voz do pai –, “reclamar do quê?”
A mãe cantava, recitava e comandava. Comento que o pai dizia que ela era uma ótima administradora. Poderia comandar uma empresa. Ela ri. Bastava a casa, a sala de aula, a merenda do grupo escolar (ela foi merendeira por vários anos), responde.
Então a mãe olha para mim e diz que tinha uma senzala: cozinheira, faxineira, lavadeira. Que era desta maneira que ela fazia as coisas andarem. Mas não sabe como pagavam essas mulheres todas. Afinal, o pai era bancário e ela, uma professora primária.