domingo, 18 de agosto de 2019

Na Basílica de São Francisco de Assis


Acordei lembrando a visita que fiz a Basílica de São Francisco, na cidade de Assis, dois anos atrás. Mais especificamente, na igreja superior da Basílica, onde se encontram os 28 painéis do ciclo “A vida de São Francisco”, feitos por Giotto por volta do ano de 1300. Uma experiência única, desses momentos inesquecíveis em que conseguimos entrar em sintonia com o lugar e as obras artísticas ali expostas.

Meu grupo chegou na Basílica no meio da tarde e fomos direto para a igreja inferior, onde se encontra o túmulo do santo. Havia missa naquele horário, muitos visitantes e peregrinos, uma balbúrdia de vozes e cantos, e não me senti bem. Lembrei dos afrescos de Giotto, consultei meu guia de viagem (Guia da Folha de S. Paulo) e tratei de enveredar para a igreja superior, que encontrei praticamente vazia, com uma luz suave, um silêncio enorme, e parece que a magia começou ali. 


Basílica de S. Francisco (ao fundo).


Procurei o primeiro painel da série e fui parando diante de cada um deles. São painéis muito narrativos, claríssimos na sua simplicidade, na sua beleza de alguma ingenuidade e composição rigorosa. Pinturas que não oferecem maiores complicações de compreender, sentir e se envolver. Fui observando um a um, gostando mais desse do que daquele (o de número 15, São Francisco fazendo sermão aos pássaros, é belíssimo) até que cheguei ao de número de 19, o do Monte Alverne.

Seguindo painel por painel, tive a impressão de que chegara ao clímax da narrativa criada por Giotto: o santo ajoelhado no Monte Alverne e tendo a visão do Cristo sob a aparência de um serafim crucificado. Da imagem de Cristo partem raios diretamente aos pés e às mãos do santo e sabemos que é naquele momento que Francisco recebe os estigmas. O ápice da trajetória do santo: a imitação completa do sofrimento vivido por Cristo para a salvação dos homens.

Painel 19: S. Francisco no Monte Alverne.

Devo dizer que nessa hora fiquei profundamente emocionado e logo senti um grande cansaço. Uma emoção intensa, um cansaço bom – desses que vivemos quando cumprimos uma tarefa almejada. Nesse caso, a sensação de ter completado o percurso de um homem que foi criado desde menino dentro do imaginário cristão, que procurou compreendê-lo e que, de alguma maneira, chegou a uma compreensão mínima a respeito. Não um entendimento racional (este ainda estou procurando), mas um entendimento intuitivo e emocional sobre um dos elementos centrais da cultura cristã: o fascínio pelo sofrimento, pelo martírio, que tanto marcam a Cristandade.

A partir do painel 19, meu fôlego se esgotou e a muito custo continuei a visitação. O painel 20 aborda a morte do santo e fiquei dando passos entre um painel e outro, examinando cada detalhe, reexaminando, certo de que estava no coração da Cristandade.

Acordei hoje de manhã lembrando justamente desse momento: o da visitação ao painel de número 19, a emoção profunda e a sensação de ter alcançado alguma compreensão sobre uma dimensão da Cristandade (a sedução pelo martírio) que muito me intriga e atrai. E, ao relembrar esses momentos dois anos depois, me percebi distante do sofrimento de Francisco e da atração pelo martírio que tanto a Cristandade cultiva.

Ao constatar o quanto o martírio seduziu São Francisco de Assis e como ele conseguiu alcança-lo, me sinto – hoje – distante desse fenômeno central da Cristandade. Aliviado, devo concluir. E humildemente pronto a realizar as mesmas coisas de sempre, as mesmas coisas que fiz a vida inteira, sem o pesado fardo da culpa e da penitência. Ou, ao menos, com o peso do fardo diminuído.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Na Basílica da Santa Casa de Loreto


Sonhei que estava de volta a Basílica da Santa Casa de Loreto e caminhava pelo seu interior.

Essa basílica fica na Itália e a “Santa Casa” a que se refere é uma casa palestina, trazida no século XIII pelos Cruzados e depois instalada no alto de uma montanha, em Loreto. Uma casa que os cristãos medievais acreditavam ser aquela em que a Virgem Maria viveu e recebeu o anjo Gabriel.

Tornou-se um santuário mariano e em torno da pequena moradia (de uma peça só) foram colados grandes blocos de mármore (com duas portas de acesso ao interior da casa), ricamente trabalhados por escultores do Renascimento. Em torno disso tudo, construiu-se uma enorme basílica, com ricas pinturas no teto, mais diversas obras de arte por todos os cantos. Não há espaço que não seja decorado.

Visitei a basílica em fevereiro de 2017 e até então nada sabia a respeito. Segunda a lenda, foram os anjos que trouxeram a casa da Palestina. Uma lenda bonita, que contribui para a emoção da visita: a casa da Mãe se instala no alto de uma colina italiana, vindo de muito longe, da Palestina, trazida pelas mãos dos anjos.

Como é proibido tirar fotos dentro da igreja, coloco abaixo uma foto do exterior para dar a uma ideia da dimensão grandiosa do templo. E logo abaixo outras fotos, do chafariz em frente da igreja, com destaque para as figuras fantásticas e monstruosas – que, de certa forma, fazem um contraponto ao sublime que a igreja encerra. 







Mas o importante é dizer que sonhei com a basílica. Que caminhava pelo interior da igreja, dava a volta em torno da Santa Casa e uma voz me inquiria a respeito do que eu fazia ali. “Voltando ao princípio dos tempos”, eu respondia. Mas depois, acordado, com o pensamento sereno, reconheci que apenas voltava ao princípio de mim mesmo. Voltava ao território da Mãe – não a Mãe Celestial do panteão católico, mas aquela mãe que me proporcionou nascer e me criou. Me questionava a respeito do lugar que essa mulher, minha mãe, ocupa dentro de mim.

No sonho, eu caminhava em torno da Casa da Mãe e pensava sem aflição, feito um arqueólogo escavando a si próprio. Um arqueólogo em busca da sua Tróia, o local mítico da própria fundação. Lugar de conflitos, embates sangrentos - território do Pai e da Mãe -, e que um dia adquire uma estranha paz, a almejada paz das paisagens bucólicas. A paz desejada e nunca, completamente, compreendida e aceita.