quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O bolsonarista convicto

 

“Esquerda nunca mais, a população brasileira quer liberdade”, me disse um bolsonarista convicto, antes da vitória do Lula. Um bolsonarista que entende a coligação “Brasil pela Esperança” como expressão de uma plataforma de governo contrária às liberdades políticas e às do mercado – a quem eu escutei sem contestar, um pouco por educação, outro tanto para conhecer o bolsonarismo da classe média alta. Um fenômeno e tanto. Dizendo-se bem informado, o meu interlocutor acrescentou que o modelo de governar de Lula segue os exemplos de Fidel e de Chávez.

Quando eu lecionava História da América Latina, indicava o deputado Jair Bolsonaro como representação patética de uma direita nostálgica da ditadura militar e da tortura como arma de combate. Uma direita que eu entendia jamais voltaria a ter grande expressão política no Brasil e na América Latina em geral.

Não preciso dizer que me enganei. Bolsonaro escancarou o seu protofascismo – a sua homenagem ao coronel Ustra na votação do impedimento da Presidente Dilma foi emblemático nesse sentido – e isso não incomodou a direita brasileira. Pelo contrário, serviu como uma luva para a direita tradicional (conservadora) e a direita neoliberal (adepta de pautas libertárias) barrarem a moderada esquerda petista.  

A direita brasileira não teve nenhum escrúpulo em relação aos disparates autoritários do Capitão e, como bem expressou meu interlocutor bolsonarista, o revestiu de uma aura de defensor das liberdades “frente ao totalitarismo”.

Coisas da reformulação da direita mundial que eu não soube compreender. Uma nova direita que rejeita o Iluminismo, desconfia do Estado burguês como ele está construído e propõe uma reformulação selvagem do Estado, da economia e da sociedade.

Escutando meu interlocutor bolsonarista convicto, me distraí separando as espinhas do peixe que almoçávamos (nas margens de um lago) e as colocando na beira do prato. Um esforço para não me engasgar com as espinhas e nem com o que escutava.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Lupicínio Rodrigues em Santa Maria

 

Lembrei dos meus amigos (Orlando Fonseca, Antônio Cândido, Raul Maxwell e Tex Júnior) ao ler a biografia de Lupicínio Rodrigues, escrita por Mário Goulart, numa antiga coleção da Editora Tchê![i] Em nossas reuniões semanais do bar da Lurdinha, volta e meia eles comentam a passagem de Lupicínio Rodrigues por Santa Maria e o fato dele ter composto “Felicidade” quando morava aqui. Conversa de bar sem a precisão de uma referência bibliográfica e que me deixava curioso quanto aos detalhes dessa passagem.


          Pois agora tenho algumas informações mais precisas, colhidas no pequeno livro de Mário Goulart: quando o compositor servia no Exército, ele foi enviado para cá. O rapaz (nascido no bairro da Ilhota, em Porto Alegre, em setembro de 1914) não era dado ao estudo nem ao serviço. O pai, Francisco Rodrigues (porteiro da Escola de Comércio), matriculou o filho na Escola Técnica Parobé, com a esperança de fazê-lo um mecânico, mas não deu certo. Nem a escola nem o estágio de aprendiz na Companhia Carris Porto-Alegrense serviram para dar um rumo ao guri. Então seu Francisco decidiu colocar o rapaz como “voluntário” no Exército brasileiro (7º Batalhão de Caçadores) e Lupicínio ficou nessa função por uns cinco anos.

Antes de completar 16 anos (antes da Revolução de 1930, então) o rapaz é promovido a cabo e transferido para Santa Maria. Fica na cidade até 1935, quando volta a viver em Porto Alegre.

Nesses cinco anos santa-marienses, ele conhece Inah, o seu primeiro amor, que lhe inspira “Zé Ponte”: “Uma cabocla / que trabalha ali defronte / carregando água da fonte / (...). / E cada vez / que ela carrega um balde d’água / leva junto a minha mágoa / pendurada em sua mão.”

Lupicínio engata um noivado com a moça, mas o casamento não se realiza (o rapaz não larga a boemia) e Inah se casa com outro. Anos depois, em Porto Alegre, Lupicínio a encontra numa festa de N. Sra. dos Navegantes de braço com o marido e a situação lhe inspira uma de suas obras-primas, “Nervos de aço”: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor / ter loucuras por uma mulher / e depois encontrar esse amor, meu senhor / nos braços de um outro qualquer?”

Em Santa Maria ele também conhece aquela que será a sua segunda esposa, Cerenita Quevedo, então com 2 anos de idade. Lupicínio casa-se com ela 18 anos depois (em 1949) – ela com 20; ele, com 35 anos.

Também em Santa Maria Lupicínio compõe “Felicidade”, gravada pela primeira vez em 1947, pelo quarteto Quitandinha Serenaders e, mais tarde, em 1974, por Caetano Veloso. Nessa composição, o poeta se refere a uma felicidade que se foi embora e de uma saudade “lá de fora”, onde “a falsidade não vigora”. Falsidade que impera na triste cidade em que ele vive...

           Apesar de ter afirmado que foi em Santa Maria que seu coração despertou, certamente o poeta teve experiências tristes por aqui.


[i] GOULART, Mário. Lupicínio Rodrigues: o poeta da dor-de-cotovelo, seus amores, o boêmio e sua obra genial. P. Alegre: Tchê! / RBS, 1984. 102 p. Coleção Esses Gaúchos.