segunda-feira, 27 de junho de 2022

Entre uma igreja e um museu

Releio o que escrevo a respeito das minhas viagens e fico com receio de que o leitor me veja como chato (um chato de galochas, como se dizia décadas atrás). Afinal meus relatos enfatizam andanças por igrejas e museus, são recheados de considerações sobre História, Arte e Religião (assim mesmo, com maiúsculas) e há pouco espaço para vivências divertidas, em restaurantes e casas de espetáculos, por exemplo.

Ora, um sujeito atravessar o Atlântico e gastar horas e horas com as representações do martírio (tão caras ao Catolicismo), com quadros e esculturas em museus e se embasbacar com as marcas da História! Há coisas melhores pra se fazer, dirá alguém com mais bom humor.

Mas acho que não sou apenas um chato, insisto nisso.

Na primeira vez em que estive em Lisboa (em 2012), fui à um show de fado e isso estava no roteiro acertado com a agência de viagem. Um carro bacana veio buscar minha mulher e eu no hotel, nos levou até a Rua da Misericórdia, para o espetáculo, e depois havia um jantar no restaurante do Teatro São Carlos.

Rua da Misericórdia (foto de 2018). 

O show foi uma imersão no mundo do fado (a primeira parte, bem melancólica, com um fado raiz; a segunda, mais leve e agradável) e depois fomos caminhando até o restaurante, quatro quadras de onde estávamos. Uma noite fria, com as ruas praticamente vazias, a Rose assustada e eu inebriado, sem exagero, nós dois andando abraçados e escutando o som dos próprios passos.

O restaurante era em alto estilo, com decoração em tons vermelhos, pouca luz, comida saborosa e, de repente, um artista tenta nos vender uns quadros horríveis. De pé diante da nossa mesa, ele conta uma história triste (tinha vivido em Paris, fora obrigado a voltar, vivia atualmente de modo precário, injustamente sem reconhecimento) e precisei pedir auxílio ao garçom para me livrar do homem. A Rose ficou sensibilizada com a performance do sujeito (alterado, olhos vermelhos, dentes estragados, trajetória infeliz marcada pelo alcoolismo) e chegou a cogitar que poderíamos comprar algum trabalho dele.

Restaurante do Teatro São Carlos (foto de 2018).

O garçom nos disse que ele iria nos esperar na saída e nos auxiliou a escapar, chamando um táxi, cuidando para ver se ele nos aguardava e dando o sinal verde para sairmos apressados. Um clima de filme, uma boa história pra contar, depois que passou.

Outra vez, em Roma, fui assistir a uma ópera e sentaram na mesma fileira onde eu estava quatro senhoras norte-americanas que pareciam pouco entender do que se passava no palco. Era uma apresentação de La Traviata e, no intervalo que antecede ao último ato, elas se levantaram para ir embora. Mas me viram calmamente sentado e uma delas me perguntou se a peça tinha terminado. Eu, num inglês macarrônico, expliquei que ainda faltava a morte de Violetta, a heroína da história, elas me olharam de um jeito estranho e voltaram a se sentar.

Mais tarde, quando Violetta caiu morta na cama, senti que uma delas se virou para mim, sorriu e achei que estava me agradecendo. Como elas poderiam voltar para casa ser assistir a heroína morrer!

Histórias que gosto de lembrar para dizer a mim mesmo que não sou apenas um chato que visita igrejas, museus, palácios e castelos. Também vou a espetáculos de fado e de ópera, nem todos especificamente voltados para turistas, frequento um e outro restaurante bacana, bebo vinhos variados (nem todos de alta qualidade), escapo de artistas de rua e também converso (ou tento conversar) com velhas turistas americanas.

          Vivencio um pouco de tudo, acho eu, entre uma igreja e um museu.            

           

quinta-feira, 23 de junho de 2022

A Capela dos Ossos

           Na primeira vez que fui a Évora, em fevereiro de 2015, não deu para visitar a Capela dos Ossos. Estava com a Rose (minha ex-mulher) e, quando chegamos ao Convento de São Francisco (no qual se encontra a capela), havia encerrado o horário de visitas.

Estávamos hospedados em Lisboa e fomos a Évora de ônibus, no meio da manhã. Almoçamos no Fialho, fomos até a praça onde se encontram as ruínas do Templo de Diana, visitamos o museu ao lado, seguimos depois por ruas estreitas (orientados por um mapa comprado numa loja de souvenires), mas quando demos as caras no Convento... cerrado. Essas coisas de turistas sem planejamento, mas mesmo assim um passeio inesquecível.

Rose se lembra até hoje que ficou com os pés doloridos. Calçava umas botas de solado pouco adequado para uma pernada de dia inteiro e diz que nunca mais vai repetir uma coisa dessas, isto é, usar um calçado estiloso ao invés de um outro, apenas confortável.

Voltei a Évora em outubro de 2019 e, aí sim, encontrei o Convento e Igreja de São Francisco abertos à visitação. Recordo que foi uma família de portugueses que me levou até o local. Eu me enturmara com ele durante o almoço (num restaurante de mesas na calçada) e eles, ao final da refeição, me deixaram na frente do Convento. Estava sozinho, com o mesmo mapa que adquirira anos antes, e tenho a impressão de que não acharia o local com facilidade. Cidade de traçado medieval, difícil para um sujeito como eu se localizar.

A Capela dos Ossos é um local de pouco menos de 20 metros de extensão e tem uma peculiaridade assombrosa: suas paredes estão revestidas por ossos humanos (mais ou menos 5 mil, segundo a Wikipédia) cravando na mente do visitante a dura lembrança da morte. Foi construída no século XVII, por monges franciscanos, dedicada ao Senhor dos Passos e orientada pela doutrina do Concílio de Trento. Uma doutrina severa, que acentua a transitoriedade da vida frente à Eternidade, indicando que esta última é que deve ser a preocupação central do cristão. Ora a vida e seus prazeres!

Portal de entrada da Capela dos Ossos.

Além do dístico famoso gravado no alto da porta da capela – “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos” –, no interior estão reproduzidos os versos de um religioso do século XIX que refletem bem o catolicismo tradicional e sombrio que se vivencia ali dentro: “Caveiras descarnadas / São a minha companhia, / Trago-as de noite e de dia / Na memória retratadas; / Muitas foram respeitadas / No mundo, por seus talentos / E outros vãos ornamentos. / Que serviram à vaidade, / E talvez... na Eternidade / Sejam causa de seus tormentos.”

Detalhe das paredes da Capela dos Ossos.

Ao visitante atento não há dúvida de que a Morte é o principal tema a ocupar os pensamentos do cristão e ficar com o cenho franzido me parece ser a reação mais comum dentro da igreja. Eu fiquei consternado: que catolicismo terrível orientou a fundação da Civilização Ocidental, pensei. Entretanto, logo na saída, o visitante que olhar com atenção o painel de azulejos na sua frente se deparará com um sopro de vida: a representação de um casal em dois momentos de êxtase com o filho pequeno. Uma lufada de vida, dos encantos da vida, depois do bafo de morte que a capela nos proporciona.

Painel de azulejos, de Álvaro Souza.

São os azulejos de Álvaro Souza, uma “alegoria à vida em oposição à morte”, conforme está escrito na legenda presa na parede. São José e a Virgem Maria com o Jesus Menino nos braços, certamente. Não encontrei a data da criação do painel, mas, sem dúvida (pelos traços dançantes das figuras representadas,) uma obra moderna, orientada pela doutrina de um outro momento do catolicismo, aquele inaugurado pelo Concílio Vaticano II, na década de 1960.

Um catolicismo que reconhece o que há de prazeroso na vida (ou, ao menos, não teme alguns prazeres da vida) e que indica algumas das transformações que ocorreram nas últimas décadas. Mudanças que, um dia, acreditei pudessem apontar dias melhores para a Humanidade e que, hoje, nem sei mais. Mas que, sem dúvida, ainda me deixam impactado (até esperançoso) e fizeram com que essa visita a Capela dos Ossos se tornasse agradável, sempre agradável de recordar. Uma síntese dos embates do Catolicismo.

terça-feira, 14 de junho de 2022

Filosofando sobre educação

Na última Feira do Livro de Santa Maria, o professor Ronai Rocha lançou Filosofia da Educação (Editora Contexto, 158 pág.), uma das cinco obras mais vendidas no evento. Livro constituído por dez capítulos densos sobre o espinhoso tema da educação e escrito com as ferramentas da filosofia. Aristóteles, Kant, Rousseau e Hannah Arendt são citados diversas vezes, constituindo-se em referências constantes. Tema difícil, como o próprio autor indica e que ele procura amenizar desenvolvendo suas reflexões na forma de uma conversa com o leitor. Mas uma conversa na qual todos os pontos abordados são destrinchados conceitualmente e, aos poucos, vão se articulando e evidenciando um complexo entendimento do que o autor considera o essencial na educação, na pedagogia, na didática, no currículo e, especialmente, na escola. Haja fôlego para segurar o rojão. Conversa aparentemente amena, mas na qual não faltam provocações. Afinal o autor sabe que está em terreno minado e não deixa de encarar as polêmicas que envolvem o tema. Mas faz isso sem explicitar as apaixonadas discussões que os especialistas da área travam entre si. Apaixonadas e raivosas, eu acrescentaria. E o leitor que tiver algum trânsito na área certamente perceberá isso.

Ao iniciar o livro, Ronai indica que, essencialmente, a educação diz respeito às relações entre uma geração de adultos e uma geração de crianças, relações que tratam da transmissão dos conhecimentos, habilidades e valores acumulados pela Humanidade. Com isso, desloca uma questão que muitos consideram o ponto de partida para pensar a educação, isto é, a de responder politicamente qual homem e sociedade queremos construir. O autor não ignora essa abordagem, mas, como se propõe a olhar as coisas a partir da “torre mais elevada no terreno”, vai deixá-la em segundo plano. Assim, ao longo de uma abordagem minuciosa, vai refinando, capítulo a capítulo, uma compreensão da educação que enfatiza a experiência formativa das crianças e as tarefas que cada geração precisa dar conta se pretende a continuidade da vida humana.

Apenas no último capítulo, o autor retoma o tema das relações entre educação e política, muito cara à pedagogia contemporânea. No quadro dos debates educacionais e da formação de professores, arrisco afirmar que o autor vira o jogo. Mesmo que seja, como ele próprio diz, apenas recolocando o que, desde séculos, os filósofos entenderam como essencial na educação: a transmissão dos saberes acumulados e a preocupação com o cuidado e a formação das crianças. A escola pensada como um local privilegiado da formação e socialização das crianças, no qual elas se encontram numa relação assimétrica com os adultos, devido ao fato de não serem (ainda) pessoas completamente desenvolvidas.

Contrapondo-se aos pensadores da educação que privilegiam as ações educativas como políticas, o autor estabelece uma compreensão da escola como pré-política, afinal as crianças ainda não estão habilitadas para o jogo da política, uma atividade do mundo dos adultos. A política consta do acervo de conhecimentos que devem ser transmitidos na sala de aula, mas o tema deve chegar pelas mãos da didática, tal qual a língua portuguesa e a matemática.

As professoras formadas até as décadas de 1960 e 70 certamente dirão que autor não afirma nada de novo. “Crianças são crianças, ora bolas!” – escuto minhas antigas mestras falarem – “elas não podem ser tratadas de igual para igual pelos adultos, pelo simples fato de que ainda não estão suficientemente crescidas”. Muito menos serem abaladas pelas paixões político-partidárias dos professores e educadores.

Um livro escrito para professores e estudantes dos cursos de licenciatura, recolocando questões essenciais da educação. Livro de linguagem descomplicada (se pensarmos em livros de Filosofia) - uma conversa, diz o autor repetidas vezes -, mas que é nitroglicerina pura, não tenho dúvidas. Eu, ao menos, li desse jeito, tendo em mente o modo como aqueles que se consideram progressistas encaram uma proposta (como a de Ronai Rocha) de recolocar a educação nos trilhos tradicionais, defendendo a escola como local distanciado das discussões políticas e priorizando a transmissão dos conhecimentos acumulados pela Humanidade. Uma proposta que parecerá, a muitos, como conservadora, mas que para outros tantos soa como simplesmente necessária frente ao estado de ineficácia da atual educação brasileira, que tem se revelado incompetente na formação das novas gerações.