sábado, 25 de agosto de 2012


Na Praça da Matriz

Em 1987, participei da ocupação da Praça da Matriz, em Porto Alegre, promovida pelo CPERS (Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul). Pedro Simon era governador, rompera o acordo feito pelo governo anterior (Jair Soares), que “garantia” ao Magistério um piso salarial de 2,5 salários mínimos, e os professores se indignaram. Simon não quis comprometer o erário com a educação e o Magistério respondeu com uma greve gigantesca. Mas fomos escandalosamente derrotados. Um massacre!
Logo no início da greve, a direção do movimento decidiu pela ocupação da Praça da Matriz – uma ocupação permanente, com barracas e tudo mais – e eu estava lá, no dia em que isso aconteceu. Fazíamos manifestações diárias na frente do Palácio e, no dia da montagem do acampamento, eu não sabia de nada. Soube ao longo da tarde, quando os colegas começaram a montar o acampamento.
A ocupação alterou a rotina da praça e foi tema de longas discussões: como realizar um ato político contra o Governo do Estado sem criar confronto exagerado com a população usuária da praça? Como interagir com as senhoras, babás e crianças que vinham tomar sol, conversar e brincar na praça? Penso que houve civilidade de ambos os lados e que a coisa se resolveu bem. Os usuários logo se tornaram fregueses das professoras que vendiam doces & salgados, e parece que o convívio foi fraterno.
Mas havia o sino, dependurado numa árvore, que era tocado o dia inteiro. Um sino de escola – uma variação encorpada da tradicional sineta – que todos queriam badalar, para expressar a sua indignação com o governador. Chegava uma comissão de professores de longe (de São Gabriel, por exemplo) e a primeira coisa que a turma queria era tocar o sino da praça. Logo veio uma comissão de moradores locais e informou que o sino ecoava nos seus apartamentos. O sino incomodava os moradores e houve uma negociação com a direção do acampamento. O uso do badalo passou a ser disciplinado e não era mais tocado depois do anoitecer até o outro dia de manhã.
Escrevo isto porque, outro dia, me incomodei com os grevistas que ocupavam a Reitoria da UFSM. Uma estratégia de confronto desnecessário, do meu ponto de vista – e deselegante também. Lembrei dos usuários da Praça da Matriz, dos moradores do entorno da praça, e dos mendigos que, à noite, vinham dormir nos bancos...
Meu amigo Joãozinho (mais tarde diretor do Colégio Júlio de Castilhos) era da direção do movimento e logo percebeu que precisávamos administrar o problema dos mendigos. Eles não formaram nenhuma comissão e meu amigo se adiantou. Tratou de liberar alguns bancos, durante a noite, para que os mendigos os usassem como sempre faziam. Eles aceitavam calados o cachorro-quente ou a sopa que servíamos, se enrolavam nos seus trapos e nos observavam, desconfiados. “O que esses riquinhos fazem aqui?”, deviam pensar. E nós ali, lutando pela educação ou coisa parecida.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012


Na porta da Reitoria

Se você é professor, funcionário, estudante ou utiliza o espaço da Universidade Federal de Santa Maria para alguma coisa, quantas vezes já foi barrado nesses últimos meses? Barrado de entrar no campus, na Reitoria ou em outro lugar da universidade, por conta das operações de choque do movimento grevista?
Da minha parte, não pude entrar na Reitoria quatro vezes, de julho para cá. Em duas ocasiões, eu não me incomodei. Numa terceira, eu soube com antecedência que os grevistas fariam a invasão e driblei o problema. Mas hoje, sexta-feira, fui surpreendido e me irritei. Cheguei até a porta da Reitoria e resolvi bater boca com os estudantes que estavam lá.
Uma menina abriu a porta e disse que “ninguém vai trabalhar hoje”. Fiquei discutindo com os guris que faziam a segurança externa e perguntei o que eles estavam ganhando com o movimento. Argumentei que a greve é um sucesso do ponto de vista político – emparedou a Dilma, engessou a UFSM, produziu dividendos políticos inegáveis para o PSOL & PSTU –, mas, e daí? Tirando isso, o que as categorias envolvidas estão ganhando? A greve já não foi além do razoável?
A conversa durou pouco tempo e praticamente apenas eu falei. Além do aviso da estudante, que abriu e fechou as portas da Reitoria para dar o seu recado, os estudantes que faziam a guarda foram lacônicos, disseram apenas duas frases, que reproduzo logo a seguir.  
“Estamos lutando contra a intransigência da Dilma”, disse um deles, quando falei que a greve passara dos limites e que não havia intenção de negociar por parte dos comandos de greve. E me estendi falando do movimento dos professores, que explicitou uma cisão profunda na categoria, com o ANDES recusando o acordo com o governo que o PROIFES aceitou. Uma atitude que terá danos irreparáveis para o ANDES, do meu ponto de vista.
Depois, com a continuidade da minha conversa, procurando responder que os estudantes não estavam na disputa por interesses político-partidários, um dos rapazes repetiu o slogan clássico: “estamos lutamos pela melhoria da educação”.
Aí não deu. “Isso é conversa pra boi dormir”, falei. E saí de cena. Com 57 anos, 34 de magistério (21 na UFSM), não posso endossar um argumento desses. Acreditar que, na conjuntura atual, com os números espantosos de crescimento da UFSM, uma greve de três meses possa sinalizar luta por melhoria educacional, puxa vida, é demais! Deixo esse argumento para os que chegaram ontem ao mundo.
Na porta da Reitoria, percebi que mudei. Mudei meu entendimento de luta política, luta econômica e por melhoria da educação. Estratégias de ocupação, com agressão à liberdade dos outros, só em casos excepcionais. Na conjuntura atual, não me parece que somem positivamente. Não sei se indicam o beco sem saída a que o movimento chegou ou, simplesmente, muito pior, a sua irresponsabilidade.

A mamãe não quer

Caminho pela Rua Floriano Peixoto e escuto a frase:
– A mamãe não quer que tu ponhas porcaria na boca.
Olho para a “mamãe”, vejo uma senhora puxar um cachorrinho pela coleira – o cusco estava furungando alguma coisa na calçada – e constato com quem ela está falando. Então lembro uma conversa de estudantes de Veterinária: a rapaziada não agüenta os “papais” e as “mamães” que chegam as clínicas. Que essa é uma das pedreiras da profissão. A gurizada tem que se preparar.
– É precioso ter psicologia – dizia um dos estudantes. – Agora o veterinário tem que ter preparo semelhante ao do pediatra.
Observo a “mamãe” do cusquinho passar por mim e penso que o guri está com razão. Essa aí deve chegar a clínica e explicar que o seu “filho” não obedece ou coisa assim:
– O que eu faço, doutor?    
Conto isso a um amigo que se apaixonou pelo poodle da filha e ele comenta que não entendo nada da relação entre homens e animais.
Não entendo mesmo. Sou do tempo em que cachorro era cachorro – bicho, animal doméstico – que se tratava com carinho, sim, mas não passava do umbral da porta da cozinha. Vivia e dormia no pátio.
Um dia, meu irmão mais velho chegou com um filhote de perdigueiro com vira-lata e foi uma festa lá em casa. Foi o único cachorro da minha infância. Nós morávamos em casa e meu irmão criava pombas e periquitos. Os periquitos tinham um viveiro; as pombas, uma casinha que ficava perto do chão. Uma tentação para o cusquinho! Banzé era o nome dele. Passaram-se alguns dias e o Banzé entrou na casinha das pombas e saiu com uma delas na boca.
Não vi o cachorrinho mastigando a pomba. Vi ele correr feliz da vida pelo pátio, com umas penas no canto da boca. Custei a entender. Meu irmão logo compreendeu a situação e ficou furioso. Uma lição para nós. Jamais imagináramos que o Banzé fizesse uma coisa daquelas.
– Ele é bicho – o pai explicou – ele não fez nada demais – e ajudou meu irmão a colocar a casa das pombas numa altura que o Banzé não alcançasse.
Acho que é por isso que tenho dificuldade em entender esses cachorrinhos que viraram gente. Que se tornaram “filhos” e passaram a ter mamães-gente, papais-gente, e até vovós.
– Haja psicologia! – disse um estudante de Veterinária

quinta-feira, 9 de agosto de 2012


Churrasquinho na praça

Seu Antônio faz churrasquinho na Praça Roque Gonzáles (na frente do Hospital de Caridade) há um ano. Tem freguesia certa. Enquanto conversávamos, vieram duas funcionárias de uma farmácia das imediações e comeram cada uma um espetinho, sentadas num banco da praça. Veio também um rapaz, que acabara de chegar de viagem, e levou meia dúzia, todos embrulhados em papel laminado.
Era uma noite quente e seu Antônio estava na praça desde as quatro da tarde. Sobravam poucos espetinhos e ele me adiantou que o movimento fora muito bom.
– Dá pra vender uns 50 por dia. No início do mês, se trouxer 80 ou 90, vão todos. Depois do dia 20, porém, fica difícil. O pessoal já gastou o salário – ele explica.
Seu Antônio nasceu em Jaguari, em 1945. Aos cinco anos de idade, começou a trabalhar numa leiteria – ele disse “leitaria”, é assim que se fala na região – e cuidava das vacas. Dava comida, levava elas pro campo, pra estrebaria. E eu não acreditei.
– Com cinco anos de idade? – perguntei.
Sorrindo, ele respondeu que sim. Contou que puxava os animais por uma corda e os bichos vinham tranqüilos. Depois, ainda criança, passou a entregar leite nas casas. O dono arrumava os litros de leite em malas de garupa, em cima do cavalo, e lá saia ele.
Novamente meu espanto. Mas dessa vez fico calado. 
Depois seu Antônio veio para a cidade e foi trabalhar no escritório de uma empresa de transporte.
– A mesma empresa, durante vinte oito anos – ele explica com orgulho.
 Tenho vontade de perguntar como se deu a passagem do mundo rural para o urbano, mas deixo pra outra hora. Chegam mais duas clientes e ele as atende com atenção.
Ao redor de nós, o Hospital de Caridade, os prédios de consultórios médicos e clínicas variadas. Um pólo sofisticado de serviços de saúde, referência no interior do estado. Como será que seu Antônio vê tudo isso?
São oito e meia da noite e ele não tem mais churrasquinho para vender. Vai para casa mais cedo e fico observando ele encerrar o expediente.
Na verdade, ficamos olhando, Leonardo Brasiliense e eu. Foi o Brasiliense quem descobriu o seu Antônio. Trouxe a máquina fotográfica e ficou fotografando o homem, enquanto eu conversava com ele. (Confira as fotos no blog leonardobrasiliense.blogspot.com.)
Quem vê o seu Antônio?, me pergunto. Se não fosse o Brasiliense, fotógrafo atento à paisagem humana da cidade, eu não teria visto.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012


Professores e leitura

Nikelen Witter fez uma provocação no Facebook quanto à função do professor na formação do leitor. Fiquei motivado pela questão e aqui vai minha resposta.
Professor ajuda, sim. No meu caso, foi fundamental. Tive um bom incentivo dos pais – da mãe professora e alfabetizadora; do pai bancário, que gostava de Alexandre Dumas & Balzac – e os professores completaram o ciclo.
A professora da escola primária falava em Tomé de Souza e lá ia eu procurar em casa o que havia sobre os governadores gerais no Brasil. As primeiras leituras de livros de História. Depois, na 1ª série ginasial, o professor indicou As aventuras de Tibicuera como leitura obrigatória e foi um deslumbramento. Leitura inesquecível. Na seqüência, não me tornei leitor de Erico Veríssimo. Isso veio depois. Fui ler José de Alencar, por indicação dos professores, e Júlio Verne, por sugestão do pai.
Um dia, na 3ª série ginasial, o professor de Língua Portuguesa apresentou Olhai os lírios do campo para fazermos análise sintática e fiquei encantado. Aquele texto enxuto, claro, claríssimo – frases curtas e diretas – me pegou pelo pé. Estava encharcado de Alencar, Casimiro de Abreu e Ronald de Carvalho, e de repente aquela “simplicidade” do Erico veio para lavar a alma. Acho que nunca mais fui o mesmo.
O professor de História dava uma aula sobre a Guerra do Paraguai, eu comentava o assunto com um tio, coronel do Exército, e terminava ganhando livros da Biblioteca do Exército. O melhor de todos, Reminiscência da Guerra do Paraguai, de Dionísio Cerqueira. Uma preciosidade!
E, no meu caso, que era ligado à Igreja Católica, valeu também a indicação de livros de temática religiosa: Quo vadis, O último cruzado, Ricardo Coração de Leão – que o pai lia (às vezes relia) e comentava comigo. E mais Maria da tempestade, de João Mohana, um romance inesquecível. E também O diário de Anne Frank, indicado por um irmão marista, professor de Religião.
Penso que um leitor se forma a partir de múltiplas motivações. E nisso entra a família, mas também a escola, às vezes a Igreja, mais os meios de comunicação, especialmente o cinema.
Foi um professor de Teoria da História, na faculdade, que me colocou no rastro de Dostoievski. Ele falava olhando para um ponto qualquer da sala, muito distante de nós, reles mortais, e de repente se referiu a Os irmãos Karamazov. Disse que era um tratado sobre a alma humana e fez um longo silêncio. “Um tratado”, “a alma humana”, “as verdades da nossa condição”. Nunca mais esqueci.
Quando fui ler este romance, era com o professor da faculdade que dialogava. E concordei com ele. Estava diante da “mais dura e torpe humanidade”. O teacher não me enganara. Pelo contrário. 

Um moço de bombachas

A escritora Tânia Lopes comentou crônica que publiquei dias atrás, na qual me refiro a uma viagem que fizemos a Bagé, para a Feira do Livro local. Chamei de “Romance policial” a tal crônica. Tânia lembrou que não foram os prédios da cidade que lhe chamaram a atenção, como destaquei, mas, sim, o acolhimento que as pessoas nos proporcionaram. Apresentamos nosso livro de contos – Milongueiro – para o público que estava na praça e o pessoal nos ouviu com atenção.
Além disso, Tânia lembrou uma cena periférica, que nos atiçou a imaginação. Cruzou pela praça uma moça com um short curtíssimo, mostrando tudo e mais um pouco, e ficamos observando. A moça rebolava, exibia os atributos que a natureza lhe dera, e logo atrás seguia um moço de bombachas, feito um manso cachorrinho. Pensei na hora que a cena servia de mote para um conto...
O moço recém chegara a Bagé, tinha passado a vida inteira no campo, entre cavalos, bois e moças recatadas, e de repente aquela exuberância de carnes. Metade da bunda da moça saltava para fora do short e uma cena dessas ele nunca vira. Sem se dar conta do ridículo, lá ia o jovem macho, alfinetado “no recôndito da sua alma”, atrás da sua dama.
O que a mulher faria com ele? Tripudiaria? Cobraria caro pelo programa? Ou ela não era profissional e eu estava sendo preconceituoso? Sei lá. A Tânia lembrou o episódio e resolvo dar um desfecho para a trama.
A moça era uma profissional, sim, mas não tripudiou do rapaz. Deixou que ele fizesse a abordagem e estabeleceu um preço para o programa bem acessível ao seu bolso. Deu muito prazer ao rapaz, coisa que ele não imaginava existir, e o moço agora quer casar. Já prometeu mundos e fundos, e a moça ri e pergunta:
– Tu não sabes quem eu sou?
O rapaz não sabe. Largou a estância onde trabalhava, deixou o campo, largou tudo, e hoje sobrevive na cidade graças a pequenos biscates. Aguarda, ansiosamente, o dia em que a mulher lhe dará “seu coração”.