Em fevereiro de 2017, fiz um passeio pelo Vêneto, na Itália. Frequentava um curso de língua italiana, em Campus Magnolie (na Região de Marche) e, aos finais de semana, a escola proporcionava longas viagens a diferentes recantos da Itália, do norte ao sul.
Dia desses, lembrei justamente do passeio ao norte, ao
Vêneto, junto com meus colegas de curso. Não tanto de Veneza, lindíssima, na
qual passamos um dia inteiro de sábado de Carnaval (e sobre a qual já escrevi no
blog). Lembrei da sequência da viagem.
Após um dia em Veneza, a excursão seguiu para Pádua,
onde dormimos num hotel (Casa del Pellegrino) em frente à Basílica de Santo
Antônio. No outro dia de manhã, seguimos para Vicenza, Largo di Gardia e Verona.
Recordei da caminhada pelo centro histórico de Vicenza (capital da província
de mesmo nome), porque foi dessa região que vieram muitos dos imigrantes que se
estabeleceram na chamada Quarta Colônia de Imigração Italiana, no Rio
Grande do Sul. Na semana passada, li um livro a respeito de uma dessas famílias
e recordei dos meus colegas brasileiros em Campus Magnolie, muitos deles descendentes de
camponeses da Província de Vicenza.
Meu avô paterno também veio do Vêneto, mas da Província
de Rovigo.
Passeando pelas ruas de Vicenza,
ouvindo o guia e professor de italiano parlare a respeito das
realizações de Andrea Palladio, no século XVI, criador de obras “fundamentais da
arquitetura, as quais colocaram Vicenza nos livros de História da Arte”, recordei a observação de um
colega:
– Será que nossos avós sabiam quem era Palladio? Eles reconheciam
esses palácios como grandes realizações artísticas?
Meu colega e eu nos olhamos, rimos, e imagino que ele
tenha concluído o mesmo que eu: claro que nossos antepassados sequer
desconfiavam desse artista e de suas criações. Eram humildes camponeses
que viviam em sua grande maioria como arrendatários; alguns, proprietários de
pequeníssimos lotes de terra; todos eles sem grandes perspectivas de futuro e pressionados pela rude necessidade de sobrevivência. Quando viviam nas cidades, exerciam trabalhos de
pouca qualificação, como no caso do meu avô, que, menino, foi para Veneza ser
servente de obra.
Ao ouvir a comentário do meu amigo, naquela manhã de inverno em Vicenza, de súbito me dei conta de que era um neto de camponês, herdeiro das aflições de meus antepassados... Estava na Contrà Podi – o nome da rua onde se localizam significativos palácios de Palladio (o Palazzo Porto Barbano, Thiene e Iseppo da Porta) –, quis fotografar esses prédios famosos, mas fui vencido pelo cenário. Grandeza demais para caber nas lentes da minha singela máquina fotográfica de amador.
Duas colegas brincavam de pousar na porta do Palazzo Thiene e a faceirice delas foi a minha salvação. Registrei-as em rápidos cliques, diante de uma das portentosas portas do palácio (registrando também os tijolos “inteligentemente talhados como pedras”, como apontam os roteiros de viagem) e meu sentimento diante do cenário transfigurou-se.
Eu não era mais o neto de camponês abalado com a tremenda desigualdade social que seus avós viveram. Pelo contrário, era o neto que voltava para usufruir de algum modo a paisagem criada e preservada pela sociedade italiana ao longo dos séculos (ao custo de severo sistema de dominação social, claro, mas que não interessava no momento). Na Piazza del Signori, diante do Palazzo della Ragione (com colunatas projetadas por Palladio), eu era um turista padrão, deslumbrado com a Itália artística, com as realizações arquitetônicas de Andrea Palladio, no caso.
Palazzo della Ragione |
Era uma manhã fria de domingo de Carnaval. As famílias
traziam as crianças para a rua e algumas brincavam jogando confetes umas nas
outras. Uma cena edílica de carnaval infantil diante das colunatas
renascentistas de Palladio. Nenhum camponês de tamanco à vista e nem sombra de
pobreza ressentida. Apenas, misturado entre os turistas, um dos descendentes dos antigos camponeses, devidamente calçado, agasalhado e
integrado ao mundo. Disfarçado, ele fotogravava, feliz da vida, os cenários que engrandecem a História
da Arte, como bem destacou a Unesco ao estabelecer Vicenza como Patrimônio Cultural
da Humanidade.
Estátua de Andrea Palladio, memorial ao cidadão mais famoso de Vicenza. |