quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Meu avô e Mussolini


Meu avô paterno não conheceu Mussolini. Nunca fez parte da multidão que o assistiu discursar da sacada do Palazzo Venezia, em Roma, e apenas o escutou pelo rádio. Pelo menos era isso que meu pai e meus tios falavam a respeito dele: que ele ligava o rádio em alguma emissora italiana, escutava as notícias de sua terra natal e às vezes a voz do Duce. Ele se emocionava com o grande líder. Admirava as suas realizações – provavelmente a conquista da Abissínia (1935), o ingresso da Itália no conjunto das nações colonialistas europeias – e a fama que conquistava no mundo, na elite europeia inclusive.

Anticomunista e autoritário, meu avô não teve resistência em relação ao fascismo. Apenas em 1942, quando Vargas declarou guerra ao Eixo e os italianos que viviam no Brasil passaram a sofrer alguns constrangimentos, ele calou a sua admiração. A partir daí, ligava o rádio bem baixinho e escutava as notícias da sua terra com o ouvido colado ao aparelho. Deve ter sido com pesar que tomou conhecimento das derrotas do grande líder: a sua deposição do cargo de ditador (pelos companheiros de partido, em 1943) e o seu fuzilamento pelos partigiani (em 1945).

Pois foi desse avô que lembrei quando me deparei com o Palazzo Venezia, quase dois anos atrás. Estava com meus colegas de Campus Magnolle nas escadarias do Monumento a Vittorio Emanuele, a professora explicava o que há para conhecer no Monte Capitolino e apontou para o famoso palácio. “Era daquela sacada que Mussolini discursava às multidões”, ela disse. Apesar do meu precário italiano, consegui compreender a referência ao Duce e lembrei do meu avô – um homem que admirava Mussolini. Um homem que, de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, nas décadas de 1920 e 30, diante de um rádio, estava – de coração – com pés na Piazza Venezia, na frente do palácio, escutando o grande líder.
Palazzo Venezia, em Roma - antigo quartel-general de Mussolini.
Não conheci meu avô (ele morreu quando eu era criança) e sei dele apenas pelos relatos do meu pai, tios e minha mãe. Mas sua figura sempre me acompanhou (meu pai tinha verdadeira veneração por ele) e não foi por nada que sua lembrança irrompeu quando eu estava em Roma. Entre outras coisas, a admiração desse avô por Mussolini sempre foi motivo de conversa com meu pai e devo ter perguntado mais de uma vez se o vô sabia o que era a doutrina fascista. Meu pai garantia que não, que tudo não passava de uma relação sentimental com a Itália e fui aprendendo que foi assim com muitos imigrantes italianos. 
Os imigrantes vivenciaram com muito sofrimento a inserção nos países da América (tanto no Brasil e Argentina, quanto nos Estados Unidos) e Mussolini restabeleceu neles o orgulho de serem italianos. No final da década de 1920, o Duce era festejado como uma resposta à “decadência da democracia liberal” e não faltavam elogios ao seu estilo de governar. Muitas celebridades passavam por Roma para conhecer o ditador – Gandhi, entre elas, em 1931 – e até falava-se de uma “Internacional fascista
”. Em 1933, em Nova Iorque, um dos emissários políticos de Mussolini discursou para os seus compatriotas e afirmou: “É para vocês, operários, que se dirigem o orgulho e o amor do Duce. Sintam orgulho de serem italianos [...] sobretudo vocês, operários de braços incansáveis e corações simples. [...] Mussolini encerrou a era das humilhações. Ser italiano é um título honorífico.”
Se meu avô escutasse isso, um imigrante que colheu café em fazenda paulista e depois se fez ferroviário no Rio Grande do Sul, o que sentiria? Natural que se enchesse de orgulho e se fizesse um fascista também. Predisposição para isso ele tinha (o anticomunismo e o pouco apreço pela democracia liberal) e o grande líder na certa o fazia reparar antigos ressentimentos.
Mesmo depois do alinhamento com Hitler e as primeiras derrotas na guerra europeia, meu avô manteve a simpatia pelo líder. Ligava o rádio baixinho (para não se incomodar com os vizinhos nem com as autoridades brasileiras) e acompanhava as notícias da Itália. De coração, meu avô devia andar pela Piazza Venezia – e foi com a sua lembrança (especialmente o sentimento que meu pai me passava desse austero imigrante) que também atravessei a mesma praça.

sábado, 8 de setembro de 2018

A polêmica a respeito dos Romanov

         O historiador francês Marc Ferro coloca em xeque a versão de que a família do último czar da Rússia foi fuzilada pelos bolcheviques, na noite de 16 de julho de 1918. Segundo Marc Ferro, apenas o ex-czar Nicolau II foi morto naquela noite – ele, mais o médico e três empregados da família (mortos esses últimos para fazer número e/ou ocultar a farsa montada). A czarina, suas quatro filhas e o herdeiro, Alexei, foram poupados.

Para isso, houve uma negociação entre o governo comunista e o kaiser Guilherme II, que desejava salvar os membros da família real russa com sangue alemão (a czarina era alemã). No acordo, a Alemanha se comprometeu a sair da Bielorrúsia, entregar dois membros da organização spartaquista, enquanto os Sovietes reconheciam a independência dos Estados Bálticos, deixavam de incentivar a propaganda revolucionária entre o proletariado alemão e entregavam a imperatriz alemã e seus filhos.

Assim, após o assassinato do ex-czar, um comboio conduz secretamente os sobreviventes da família real em direção a Moscou e dali para fora da Rússia. No caminho, porém, desaparece Alexei e a princesa Anastasia foge com um guarda. Sobre Alexei não há pistas plausíveis (apenas uma história rocambolesca), mas Anastasia aparece mais tarde, na década de 1920, e sua identidade vai ser contestada. Injustamente contestada, segundo o autor.

Enquanto isso, ainda segundo Marc Ferro, a imperatriz e suas três filhas são acolhidas por membros da nobreza europeia, sem alarde, pois assim convinha ao movimento contrarrevolucionário que pretendia reinstaurar a monarquia na Rússia. Restaurar a partir de outra linha sucessória que não a estabelecida por Nicolau II, visto que esse soberano era avaliado como incompetente e sua memória incapaz de empolgar os nostálgicos do Antigo Regime.
Para muitos historiadores, a hipótese que Marc Ferro encampa – a da sobrevivência da imperatriz e das princesas – não passa de uma lenda. O historiador francês, porém, argumenta com tanta propriedade, levanta documentos e testemunhos tão contundentes, que, ao menos no meu caso, convence. Essa tese ele já anunciara em 1990, ao publicar na França uma biografia de Nicolau II – recebida, segundo ele próprio, “com uma indiferença e um silêncio glaciais”. Em 2012, o autor sintetizou o assunto num pequeno livro – A verdade sobre a tragédia dos Romanov –, o qual foi publicado no Brasil (Editora Record, 2017, 160 p.).
É um pequeno livro impactante, recomendável para quem se interessa por Revolução Russa e/ou gosta de histórias de famílias reais. No meu caso, os dois temas agradam. São assuntos para muitas leituras e conversas. Para quem indiquei o livro, uma professora apaixonada por História, a leitura foi daquelas de varar a noite. Um tema polêmico que ainda rende.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Museu Nacional - tragédia anunciada

           Difícil assimilar a destruição do acervo do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no último domingo. Enquanto escrevo, ainda não há nada conclusivo a respeito das causas do incêndio. No noticiário de TV, ouvi que pode ter sido um curto circuito. Um risco apontado há muitos anos e até discutido no Conselho Estadual de Cultura, do Rio de Janeiro, em 2014, quando foram apresentadas denúncias de fiações expostas. O próprio diretor do museu na época, Sérgio Azevedo, reconheceu a situação complicada e disse que tal quadro era ruim desde meados dos anos 90. De lá para cá, a situação só se agravou e o Museu foi fechado várias vezes.

Quando visitei o Museu Nacional pela primeira vez, em 2007, a situação não era boa. Fiquei chocado com a precariedade, mas maravilhado com o seu acervo (mesmo que apresentado de maneira um pouco confusa). Quando o visitei novamente, no final de julho desse ano, o choque foi muito maior. Alguns espaços estavam interditados, havia salas fechadas, e já se notava o reboco de uma parede externa se deteriorando.

Fiquei parado numa sacada, olhando os jardins e um guarda me pediu para não ficar ali muito tempo. “Não é seguro”, ele disse, e percebi certo constrangimento quando ele explicou que “o prédio é antigo, não está bem conservado e é necessário tomar cuidado”. Mesmo assim, mesmo com essa precariedade, a visita foi excelente, e revi algumas peças com muita satisfação e conheci outras que não dei atenção na primeira vez.

Privilegiei as salas com material histórico e antropológico – como a maioria dos visitantes, sou magnetizado pela Sala Egípcia –, mas também apreciei o acervo paleontológico e, especialmente, os seus pequenos visitantes, a meninada. Uma gurizada que dava gritos de alegria e espanto vendo a reconstituição de um dinossauro – o Maxakalisaurus topai, de 13 metros de comprimento – e outros animais pré-históricos, como a fantástica preguiça-gigante. 
Sala de Paleontologia - reconstituição de uma preguiça-gigante.
Uma gurizada que deve estar agora com os olhos cheios de lágrimas, pensando que nunca mais visitarão aquele Museu e viverão o mesmo espetáculo daquela tarde: o da reconstituição de animais pré-históricos e o contato direto com vestígios de outras civilizações, como a egípcia, a romana e de povos pré-colombianos, como os Incas, os Jivaros, os Tikunas. Uma gurizada que talvez esteja experimentando pela primeira vez o sentimento da perda, da perda irremediável, da perda incompreensível.
Sala de Etnologia Indígena Brasileira - no primeiro plano, máscara Tikuna.
Ainda não consegui assimilar a destruição do que aconteceu com o Museu Nacional. Mas seguramente se trata de uma tragédia anunciada, como declararam à imprensa vários funcionários e pesquisadores do Museu.