sábado, 29 de abril de 2017

Greve Geral

Não estava muito otimista em relação à greve geral proposta para o dia de ontem. Mas, ao longo da semana, tive a impressão de que a coisa poderia dar certo. Para quem, como eu, apostou na política desenvolvimentista dos governos Lula e Dilma, as atuais reformas em curso, encabeçadas pelo Governo Temer, são uma calamidade – a começar pela desconstrução da Constituição de 88, com a chamada “PEC da Morte”, de congelamento dos gastos públicos em educação e saúde. A desmontagem da Petrobrás (em especial a sua retirada do Pré-sal) mais as reformas trabalhista e da Previdência configuram um quadro de horror. É a vitória completa do Capital sobre os interesses do Trabalho e também da Nação (ou de uma espécie de nação, aquela que leva em consideração "a saúde do seu tecido social”).
Pois foi com esse sentimento – de pouco otimismo, mas de certeza quanto à necessidade de uma reação popular contra essa reconfiguração da sociedade brasileira que as reformas neoliberais indicam – que fui caminhar pela cidade desde o início da manhã. Fui para minha sessão de Pilates e, antes disso, passei pelo centro. Eram oito horas da manhã e lá estavam, na boca do Calçadão, vários manifestantes – provavelmente sindicalistas – já com aparelho de som ligado (música do Zé Ramalho) e as devidas cuias de chimarrão.
No final da manhã, voltei ao centro da cidade e vi e fotografei os militantes do movimento fechando o Buraco do Behr e a Rua Venâncio Aires - esta última logo depois liberada ao trânsito - e tive uma conversa curiosa com uma repórter do SBT. Ela falou, rindo, que “estão dizendo que a Globo mente”, e logo acrescentou:
– Mas felizmente é só a Globo, não é mesmo?
Achei graça do comentário – deve ser duro trabalhar nas grandes empresas de comunicação, haja visto o engajamento delas nas atuais reformas – e olhei a moça com simpatia.
Voltei ao final da tarde para acompanhar a passeata pelas ruas do centro e me surpreendi com a quantidade de pessoas. Seguramente a maior manifestação de rua de que participei em Santa Maria. Gente a perder de vista. Impressionante. Fiquei contente em viver e registrar (com a câmara fotográfica) esses momentos de "luta popular". Em Santa Maria e no Brasil inteiro (pelo que acompanhei no Facebook), as manifestações tiveram grande presença de público. Talvez se possa dizer que o campo popular reagiu. Talvez se possa dizer que é o início de alguma coisa. Seja o que for, com certeza as forças políticas que apoiaram o Fora Dilma e dão sustentação ao Governo Temer e suas reformas neoliberais vão ter de levar em conta essa "resposta das ruas" - por mais que tenham, ao longo do dia, minimizado a greve geral de 28 de abril.
Passeata do dia 28 de abril em Santa Maria.


quarta-feira, 26 de abril de 2017

Descaroçado


No período colonial, havia uma expressão utilizada para designar o processo de desumanização que os negros africanos sofriam ao se transformarem em escravos e passarem a trabalhar nas lavouras, nos engenhos e nas minas: descaroçado. Homens e mulheres tinham os cernes de suas vidas (caroços) extirpados e ficavam vazios por dentro.
Lembrei dessa expressão um dia desses, enquanto caminhava pela rua. Estranhamente me senti vazio, como se algo houvesse sido arrancado de mim. Estava no centro da cidade e parei na calçada. Constatei as pessoas ao meu redor e tive a impressão de que eram conduzidas por propósitos muito claros. Iam ao supermercado, voltavam para casa, buscavam os filhos na escola e isso configurava suas vidas. O mundo tinha sentido, coisas e pessoas possuíam razão de ser, e eu, no entanto, alheio a isso. Descaroçado, pensei, era isso que acontecera comigo.
O leitor dirá que estou exagerando e concordo. Naquele momento, caminhando no centro da cidade de Santa Maria, eu era um personagem de filme vivendo um drama surreal. Perdera a minha identidade, a minha razão de ser. Parei na calçada, procurei a parede mais próxima e me encostei para observar o movimento da rua. Constatar a imensidão do mundo e minha insignificância não é uma experiência nova. Já vivi isso de forma mais intensa e hoje, ao menos, consigo não me apavorar. Espero passar e sigo em frente.

Após a tempestade vem sempre a bonança – ouvi desde pequeno -, o  difícil é esperar. Reencontrarei meu caroço, minha alma e o sentido das coisas – é só uma questão de tempo. O mundo voltará a ter sentido e roda do mundo girará sem muita estranheza. Estou no centro de Santa Maria e recordo que, quando lecionava no ensino fundamental e abordava o mundo colonial, afirmava que a ordem política e social descaroçava os escravos, mas havia a possibilidade da resistência e até da rebelião. A possibilidade de reencontrar o cerne da vida e humanizar-se. Reencontrar o sentido das coisas e sentir-se parte do mundo. A possibilidade, ao menos. A esperança, enfim.