quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O coronel Fawcett e as minas de prata do Moribeca

Está disponível no Net Now um filme a respeito do coronel Percy Fawcett. Chama-se Z, a cidade perdida, dirigida por James Gray, produção norte-americana de 2016. Imperdível para quem gosta de histórias de exploradores das potências europeias em busca de civilizações perdidas em territórios inexplorados e habitados por selvagens.
Percy Fawcett (1867-1925?), oficial do exército britânico, foi uma das inspirações para a criação de Indiana Jones, mas o filme está longe das narrativas trepidantes de Caçadores da Arca Perdida e de outros com o mesmo personagem. É um filme lento – com excelentes atores, fotografia primorosa – que investe nas motivações pessoais de Fawcett para se embrenhar na selva amazônica, assim como no ritmo vagaroso, exasperante (mas nem por isso menos apaixonante), das expedições exploratórias do início do século XX. Não segue à risca o gênero “filme de ação”, porém, a sua maneira, é um filme de herói explorador.
Segundo o filme, Fawcett busca a glória (encontrar uma civilização perdida) com o propósito de limpar o nome da família – enlameada pelo pai viciado em jogo e bebida – e cumpre com rigor esse objetivo. A esposa o apoia e chega a se revelar disposta a participar das expedições. Diante da negativa do marido, ela protesta pelo fato dele não aceitar a igualdade entre homens e mulheres e o bate-boca entre o casal esquenta. Mas ela acaba assumindo o padrão tradicional (mulheres não têm treinamento para se embrenharem na selva, mulheres ficam em casa cuidando dos filhos) e o herói segue sozinho para a selva, isto é, apenas com os seus companheiros homens.
A narrativa é muito simpática em relação a esposa de Fawcett e a mostra encontrando um manuscrito, escrito por um “soldado português do século XVIII”, que indica a existência de uma cidade perdida no interior da América do Sul. Seguramente, trata-se do famoso “Documento 512” - que guiou Fawcett pelo interior do Brasil - relativo a uma bandeira realizada no período colonial que foi em busca das minas de prata indicada por outro bandeirante, o Moribeca, e encontrou as ruínas de uma povoação antiga. Segundo o manuscrito, foi descoberta uma “oculta e grande povoação antiquíssima sem moradores”, com entrada formada por “três arcos de grande altura” e muitas casas “com seus telhados descobertos e sem telhas”.
O Documento 512 foi encontrado na Livraria Pública da Corte (atual Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro), em 1839, e, ao que consta, não saiu de lá até hoje. O manuscrito foi publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico, ainda no século XIX, e teve ampla circulação. Serviu de inspiração para o romancista José de Alencar escrever As minas de prata (1865) e era conhecida por Rider Haggard (As minas do rei Salomão, 1886) e Arthur Conan Doyle (O mundo perdido, 1912) – esses dois últimos, figuras que Percy Fawcett conhecia pessoalmente.
Segundo pesquisadores, Fawcett começou a se interessar por civilizações perdidas quando servia no Ceilão e conheceu o Documento 512 por meio da tradução feita por um membro da Real Sociedade Geográfica de Londres, o explorador Richard Burton (personagem de outro filme fabuloso sobre exploradores ingleses, Montanhas da Lua, a respeito da busca das nascentes do Rio Nilo). Seja como for, ao apresentar a mulher de Fawcett descobrindo o manuscrito, o filme delineia uma esposa amorosa e engajada na obsessão do marido – o que ela foi até o final da vida.
É uma bela história, a que protagonizou o coronel Percy Fawcett - e o filme dá conta disso. Porém, resta a observação: no século XVIII, os bandeirantes saíram em busca das minas de prata indicadas pelo Moribeca e "descobriram" as ruínas de uma antiga civilização. Isso criou uma longa tradição, que incendiou a imaginação de pesquisadores, romancistas, exploradores e também cineastas. Mas o documento dessa expedição é apenas indicado de passagem no filme em questão. Um filme brasileiro - como o que estava para sair, feito a partir do livro Coronel Fawcett: a verdadeira história de Indiana Jones (1996), de Hermes Leal –, talvez desse outro tratamento a essa tradição criada pelo Documento 512. Mas o cinema norte-americano, que conhece melhor o caminho das pedras (ou das minas), correu na frente.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Leitura na escola

        Quando eu era guri de ginásio, ouvi um professor dizer em sala de aula que um bom exercício para escrever era a feitura de um diário. Comecei, fiz um diário das minhas férias de inverno daquele ano (1969), peguei o “vício” e passei a escrever diariamente.
Na década de 90, reencontrei esse material e o utilizei para uma novela juvenil, que denominei Jorge encontra Lilian. Eu andava escrevendo livros paradidáticos para a Editora FTD e achei que poderia emplacar um texto ficcional também. Apresentei os originais para a editoria de literatura juvenil, mas não rolou. A literatura juvenil havia mudado e eu não percebera. Os textos publicados enfocavam temas contundentes – devastação do meio ambiente, consumo de drogas ilegais, AIDS – e a minha história passava longe de tudo isso. Não tinha nenhum apelo dramático. Era a simples narrativa de um menino introspectivo, de classe média, descobrindo o mundo e, especialmente, o sexo oposto. A editora publicara um livro do gênero e não se arriscaria em mais um título.  “Isso vende pouco”, a editora me disse.
Eu não apresentei os originais para outra editora e tratei de encarar a coisa de forma independente. Contratei um diagramador profissional, ele fez o projeto gráfico, a capa, e mandei imprimir. Fiz mil exemplares e vendi mais da metade nas escolas de Ensino Fundamental de Santa Maria e região, entre alunos de sétima e oitava séries. Contei com a colaboração de professores de Língua Portuguesa, que adotavam a novela nas suas turmas, e a coisa funcionou. Era início dos anos 2000 e fui em várias escolas conversar com meus leitores.
Nesse ano, soube que o livro ainda é adotado numa escola de Santa Maria e fui novamente conversar com os alunos. Constatei que a novela continua sendo lida, compreendida, mas não senti grande entusiasmo por parte da gurizada. Eles estão noutra, pensei. Um menino me perguntou sobre a literatura fantástica, por que eu não enveredava por esse caminho, e percebi que não estou em sintonia com os novos leitores. O livro que entusiasma os leitores jovens é alguma coisa que envolva elementos sobrenaturais e não sei fazer isso. Se quisesse emplacar meu Jorge encontra Lilian, imagino que o Jorge deveria ser a encarnação de um viking do século IX, navegando numa nau interespacial, em busca de um amor redentor em alguma megalópole sul-americana. O imaginário juvenil me parece que anda por aí. O jovem leitor que me questionou talvez seja representativo desse público leitor.
E voltei para casa pensando que aquele rapazinho - de modo semelhante ao que eu fazia nos final dos anos 60 - está escrevendo diariamente. Mas na certa não produz um diário e, sim, um texto no qual um jovem herói viaja no tempo, desafia os limites da vida e da morte, e se utiliza de tecnologias não acessíveis aos mortais comuns. Outros tempos.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Palácio de Queluz - coisas que vivemos quando viajamos

Um amigo me enviou pelo correio eletrônico uma foto do famoso Quarto D. Quixote, no Palácio de Queluz, em Portugal, no qual D. Pedro I morreu em 1834. A foto centraliza a cama com dossel – onde também nasceu o futuro imperador – iluminada por uma forte luz vinda das janelas. Muito diferente da imagem que tenho do mesmo quarto.
Visitei o palácio em 2014, num dia de inverno, e o quarto estava sombrio. Não lembro se as janelas estavam abertas ou não. Era um dia chuvoso. Minha mulher e eu ficamos parados no meio do quarto e a monitora da sala nos contou que os brasileiros gostam muito de visitar o lugar, alguns vêm especialmente para ver onde "o imperador do Brasil morreu" e pouco dão atenção às demais peças.
Achei a observação curiosa e fiquei até tomado de alguma emoção retroativa àquele momento dramático da morte de um rei, que, segundo os livros de História, muitas vezes desencadeia uma fase de tensão política e até de instabilidade social. Há um quadro representando os últimos momentos de D. Pedro e creio que ele está reproduzido em miniatura na ficha explicativa colocada na frente da cama. Emocionado ou coisa parecida, não tirei nenhuma foto do local (apesar de permitido).
Quando D. Pedro faleceu, ele abdicara a coroa do Império brasileiro e se tornara Rei de Portugal com o título de D. Pedro IV. Pelo que narra a historiadora Mary del Priore em A carne e o sangue (biografia de D. Pedro com ênfase nos seus amores), ele estava com a saúde bem ruinzinha aos 30 anos e uma tuberculose acabou dando cabo de seu corpo debilitado, quando tinha 35.
Escrevo isso de memória, sem consultar o livro da Mary del Priore, pois quando viajamos é assim: vamos lembrando as coisas de cambulhada, muitas vezes as informações se embaralham e é esse quadro que fica na memória. Eu me utilizo de guias, folders, prospectos, mas às vezes não consigo me concentrar e fico flanando pelos lugares. Foi um pouco assim no Palácio de Queluz.
Meu amigo contou que fez um passeio rápido pelo palácio e riu muito ouvindo um colega (professor de História) comentar as fofocas da corte lusitana. Ele estava num congresso de historiadores e a visita ao palácio durou pouco tempo. Minha mulher e eu passamos boa parte de um dia andando pelos corredores, salas e jardins – praticamente vazios naquele dia de inverno –, lemos detidamente as informações de algumas peças e objetos, conversamos com os monitores, e igualmente ficamos com essa impressão de que tudo é muito rápido, efêmero e que dos séculos de história contidos naquelas paredes pouco ou quase nada apreendemos.
Éramos um casal plebeu, do outro lado do Atlântico, conhecendo as plagas dos antigos colonizadores e tudo aquilo era um pouco estranho. Súbito cruzamos com um casal de atores, vestidos como cortesões do século XVIII, e travou-se um diálogo engraçado.
O cortesão nos perguntou de onde vínhamos, dissemos que éramos do Brasil, e ele quis saber como estava “a Colônia”. Informado de que o Brasil não era mais colônia, o ator – muito afetado, como talvez tenham sido os cortesões do Palácio de Queluz – encenou uma perplexidade que nos fez rir e depois saiu por um salão envidraçado, a andar elegantemente com sua companheira.
- As voltas que o mundo dá - dissera o ator, encenando de forma cômica as transformações políticas e sociais que nós, professores de História, sisudamente explicamos em sala de aula, muitas vezes enfastiando os alunos.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Questionando a educação brasileira

Não é pouca coisa o que propõe o professor e filósofo Ronai Rocha no seu livro “Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire” (Editora Contexto, 2017, 153 p.): um diagnóstico da educação brasileira, um mapeamento do cenário conceitual que marca a atual discussão a respeito dos planos curriculares (a polêmica BNCC), e uma defesa do reerguimento da escola e da mística do professor. Tanto um texto de combate, que fustiga a pedagogia brasileira (em especial a de matriz freireana), quanto de reflexão ponderada e até poética a favor da melhoria da escola, do revigoramento da atividade do professor e do engajamento do aluno. Ora é a voz do filósofo que domina o texto, esmiuçando os conceitos que orientam o debate educacional, ora é a do professor que vive a realidade escolar desde os anos 70 e tem o doloroso entendimento de que a escola foi rebaixada e não está cumprindo à contento as suas funções de ensinar os conhecimentos básicos.
Na avaliação do autor, esse rebaixamento da escola aconteceu devido a “um certo extravio de nossa cultura curricular e pedagógica", ocorrida a partir da virada da educação brasileira nos anos 70 e 80. Uma transformação explicável a partir da expansão da rede de ensino e das decorrentes discussões pedagógicas que a acompanharam, em especial uma maior atenção aos aspectos social e político da educação em detrimento das práticas pedagógicas propriamente ditas.
        Quanto a esse estado da pedagogia, a obra de Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, foi e é fundamental. Ronai Rocha não desconsidera o seu valor e papel históricos, mas vê como exagerada a sua influência no pensamento educacional brasileiro e compreende que a mesma se mantem “ao preço de uma leitura anacrônica”. Uma leitura descontextualizada, que minimiza o foco da obra, a alfabetização de adultos, assim como a problematização das opressões em geral e do diálogo com as camadas populares nos termos das décadas de 60 e 70. Temas candentes, claro, mas que o autor entende não serem os centrais para a construção de um modelo escolar formal.
O capítulo sobre a Pedagogia do oprimido já vale o livro, mas esse não é foco principal da reflexão de Ronai Rocha. Seus propósitos centrais são o já referido rebaixamento da escola assim como proposições de como encarar esse problema. Se a inspiração freireana foi fundamental para a pedagogia brasileira e proporcionou ganhos consideráveis (como maior consciência política a respeito da educação), os custos foram muito maiores, segundo o autor. A instituição escolar foi abalada quanto ao seu papel de transmissora de conhecimentos consagrados (a famosa e pertinente discussão a respeito dos “aparelhos ideológicos do Estado”) e perdeu-se o sentido grandioso da escola: o de possibilitar uma espécie de segundo nascimento dos indivíduos, aquele proporcionado pelo conhecimento e usufruto do “legado que transcende as paredes que nos cercam”, das Artes e da Ciência, por exemplo, construídas pela nossa civilização.
Não é pouco coisa o que se propõe Ronai Rocha. Não sei como os teóricos da educação de orientação freireana e desconstrutivista reagirão à provocação, mas entendo que o questionamento apresentado é pertinente. E, em especial, o diagnóstico da escola quanto as suas falhas no ensino dos conhecimentos básicos calará fundo os professores habituados ao chão da sala de aula. A partir daí, entendo que até aqueles que ainda amam Paulo Freire lerão esse livro como uma provocação instigante. Um livro que se propõe a reorganizar os termos da discussão educacional, priorizando a revalorização do currículo e da prática pedagógica, assim como apontando as disposições necessárias para a retomada da escola das suas funções essenciais. Aparentemente uma proposta conservadora – a de recolocar a escola como capaz de organizar e transmitir o grande legado da nossa civilização (a tão mal falada Civilização Ocidental). Mas, como o autor indica, até para que prosperem propostas revolucionárias de educação e sociedade é necessário que a escola funcione, que o professor ensine e que os alunos conheçam e saibam usufruir aquilo que está muito distante de suas experiências cotidianas, como o Teorema de Pitágoras, a obra de Machado de Assis e as Bachianas de Villa Lobos.