quarta-feira, 27 de junho de 2012


Uma história que parece não ter fim

Leio no sítio Vermelho, do Partido Comunista do Brasil, que foram exumados mais dois “restos mortais” de combatentes da Guerrilha do Araguaia (1972-75), na região dos estados de Tocantins e Pará, em junho deste ano. A notícia fala em restos mortais e não em cadáveres. Sabe-se que, em alguns casos, os guerrilheiros mortos foram decapitados, mas a notícia não trata disso. Apenas indica que o material se encontra em “avançado estágio de degradação” e que isto dificulta a extração de DNA.
Os restos mortais foram levados para Brasília e passarão por exames no Instituto Médico-Legal e no Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal. Nos últimos quatro anos, já foram recolhidos 19 “corpos” e o processo de identificação tem sido lento.
Até junho de 2009, havia a informação de 25 execuções realizadas pela Forças Armadas na luta contra os guerrilheiros do PCdoB. Naquele ano, o major Curió abriu seu arquivo pessoal para o jornal O Estado de S. Paulo e acrescentou mais 16 casos. Dessa maneira, 41 (dos 69 mortos do movimento guerrilheiro) foram “presos, amarrados e executados, quando não ofereciam risco às tropas”, segundo o jornal.
O major Curió declarou ao Estadão, em 2009, que se sentia no compromisso de prestar essas informações. Mas, no início dos anos 90, não era esta a sua posição. Afinal, em 1993, foi publicado um romance que denunciava a política de extermínio que as Forças Armadas realizaram no Araguaia e Curió tomou medidas legais para “apurar as mentiras” do autor.
O que será que incomodava o major? A denúncia da política de terror que as Forças Armadas exerceram sobre a população do Araguaia e os guerrilheiros ou o fato de Curió aparecer no romance na figura do Dr. Zeca?
O romance se chama Xambioá: guerrilha do Araguaia (Editora Record, 252 p.) e seu autor é Pedro Corrêa Cabral, coronel-aviador reformado, que participou da última campanha. No romance – o gênero que o autor encontrou para aliviar “uma dor que venho guardando, no fundo da minha alma, por quase vinte anos” – são narrados os últimos combates, o aprisionamento de guerrilheiros, a tortura e o fuzilamento dos mesmos. Alguns desses prisioneiros se entregaram espontaneamente, mas nem por isso foram poupados.
No final da campanha militar, os corpos foram levados a um lugar inacessível, escondidos com o propósito de “limpar a área para evitar que a imprensa (...) venha bisbilhotar depois que formos embora”, explica um personagem. Os corpos são transportados de helicóptero e, ao final, descobrimos que o piloto da aeronave é próprio autor da narrativa – Pedro Corrêa Cabral, então capitão-aviador da FAB. Uma história que parece não ter fim. 

sábado, 23 de junho de 2012


Bonequinha de luxo

Revi Bonequinha de luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961). Estava viajando, o DVD foi colocado no aparelho de vídeo do ônibus e não desgrudei o olho da tela. Uma comédia glamorosa, muito bem feita, mas não ri de nenhuma das suas piadas. O que será que me atrai nesse filme?
A interpretação que Audrey Hepburn faz da personagem central – uma maluquinha procurando casamento na Nova Iorque dos anos 50 – é excelente e isso ajuda a manter a atenção. Na pele da atriz de físico adolescente, olhar meigo e maroto, a personagem ganha ares delicados e sofisticados que encantam. Em nenhum momento lembram a caipira e garota de programas que é – características que ficam claras na novela de Truman Capote, na qual se baseia.
Muito antes de assistir ao filme, ouvi minha mãe e minhas tias comentarem a respeito. Até hoje, “todas as mulheres que conheço” gostam do filme. Por que será?
Se o leitor não lembra a trama, aqui vai: Holly, a bonequinha do título, mora sozinha e sai todas as noites. Volta ao amanhecer e, quando está triste, pede para o táxi parar na frente da Tiffany e fica namorando as jóias da vitrine. Para ela, a Tiffany é o paraíso – ali, nada de ruim pode acontecer. Holly se queixa dos homens que pagam cinqüenta dólares para ficarem com ela e sempre tem algum por perto. Mas o que ela quer, na verdade, é um ricaço para casar. Vive tudo isso de forma graciosa e cai nas graças de um escritor. O rapaz sabe que ela foi uma menina de rua, até que um homem a recolheu e se casou com ela. Isto quando Holly tinha 14 anos. Depois ela fugiu do marido e veio para Nova Iorque tentar a sorte.
Na última cena, Holly e o escritor brigam, fazem as pazes e se beijam debaixo da chuva. Final romântico com boa trilha sonora. Aparentemente, ela aceita o pedido de casamento do escritor. Será por isso que as mulheres gostam tanto do filme? O final romântico, a glamorização do sofrimento da personagem?
Sei lá. Um belo filme, de qualquer maneira. Lembrei a minha mãe comentando que as mulheres são muito frágeis nesse mundo de homens. “Tão frágeis que precisam de muita sabedoria para não ser esmagadas”, ela acrescenta. E fiquei com a impressão de que o filme aborda essa sabedoria... Deve ser por isso que não ri das piadas.

sábado, 9 de junho de 2012


Woodstock & Garopaba

         Cursei o clássico no Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, no início dos anos 70. A escola funcionava (continua funcionando) num prédio de três andares, com sacadas enormes. E ali, naquelas sacadas, minha turma e eu passávamos horas conversando, tentando entender o mundo e lapidando nossos sonhos para o futuro.
Falávamos de música e literatura. O rock, os hippies e o Festival de Woodstock eram temas recorrentes. Sidarta e Limite branco, de Hermann Hesse e Caio Abreu, passavam de mão em mão e eram nossas chaves de leitura para decifrarmos o mundo.
Política, no entanto, estava fora de cogitação. O Grêmio Estudantil fora fechado, vigorava uma censura rigorosa nos meios de comunicação e sabíamos mais sobre os festivais de rock nos Estados Unidos do que da UNE e do movimento estudantil. Queríamos ser livres como os hippies norte-americanos e desconhecíamos os estudantes brasileiros que “enfrentavam a ditadura”. Às vezes alguém se manifestava “contra o sistema”, dizia ser “contra os preconceitos” e assim tocávamos o barco.
         Foi numa dessas conversas nas sacadas do Julinho que conheci uma moça tímida, que anos mais tarde veio ser minha namorada. Ela foi procurar uma amiga, minha colega de aula, e ficou por ali. Terminamos conversando, nos encontrando nos corredores da escola, mas a coisa não prosperou entre nós.
Poucos anos depois, nos reencontramos na Universidade e, aí sim, viemos a namorar. E, como bons porto-alegrenses, no primeiro verão que apareceu, pegamos as mochilas e nos tocamos pra Garopaba. Montamos a barraca na encosta do morro e ficamos namorando diante do mar. Um dia, inventei de tomarmos banho nus numa prainha do outro lado do morro, onde não havia viva alma. Imaginei que teria meu Woodstock particular – as fotos do festival sempre destacavam os momentos de nudez, liberdade e descontração –, mas ela não quis.
Era uma moça recatada e nunca quis “enfrentar o sistema” nem tomar atitudes escandalosas. Woodstock não estava no seu horizonte de fantasias, imagino. Nudez, só dentro do quarto ou da barraca. E lá fui eu tomar banho sozinho – cumprindo a sina dos adolescentes que um dia conversaram nas sacadas do Julinho e sonharam ser “livre, leve e solto”, como dizia uma canção daquela época.

domingo, 3 de junho de 2012


Guerra contra a esquerda

Cláudio Guerra é um ex-delegado do DOPS e acaba de sair da cadeira, onde cumpriu pena de sete anos por atentado a um bicheiro. Na prisão, “conheceu Jesus” (hoje é pastor evangélico) e resolveu tornar pública a sua participação na guerra contra a esquerda brasileira, no período do Regime Militar. Cláudio Guerra se diz um ex-agente operacional clandestino, vinculado aos aparelhos de repressão do Estado, como o SNI e o DOI-Codi. Estava subordinado ao coronel Freddie Espigão Pereira e ao comandante Antônio Vieira, estes sim, ligado aos órgãos oficiais de repressão. Cláudio era apenas um operador, afirma, um matador e terrorista (colocou bombas no jornal O Estado de S.Paulo e numa estação de rádio em Angola, p.ex.). E diz jamais ter torturado.
Cláudio Guerra convidou dois jornalistas – Marcelo Netto e Rogério Medeiros – para organizarem seu depoimento e o resultado é o livro Memórias de uma guerra suja (Editora Topbooks, 2012, 290 p.). Os jornalistas deram corpo às memórias do ex-delegado, procuraram checar informações (nem sempre conseguiram) e o resultado é algo desconjuntado – mas instigante e desconcertante: a voz de um homem que operava à margem da lei. Com certo orgulho, Cláudio Guerra afirma ter feito o serviço que os militares de carreira não tinham competência para realizar. “A Delegacia de Roubos e Furtos e o DOPS, da Polícia Civil, tinham as melhores equipes para atuar no combate à esquerda, pelo conhecimento adquirido com investigação e espionagem de crimes comuns” (p. 93).
A partir de 1973, executou vários militantes da esquerda e auxiliou no desaparecimento do cadáver de outros tantos. Mas sem nunca torturar, reitera o ex-delegado. Quando Geisel e Golbery iniciaram a abertura política, participou de ações que contestavam a orientação "esquerdista” do governo. Seus comandantes consideravam Golbery um traidor, faziam oposição ao grupo que estava na Presidência da República e foram os responsáveis pela tentativa de atentado terrorista no Riocentro, em 1981.
A abertura, no entanto, foi vitoriosa e os quadros ligados à repressão obrigados a se rearranjarem. Alguns encontraram novo lugar na máquina do Estado, enquanto outros passaram a atuar nas organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas, na formação de milícias e no jogo do bicho (caso de Cláudio Guerra). “O know-how conquistado com o aparato do Estado agora serviria ao submundo do crime organizado”, diz o delegado (p. 194).
Um relato desconcertante, que os jornalistas apressaram por temerem um breve assassinato de Cláudio Guerra. Um depoimento duro e cruel – nem sempre confiável, arrisco dizer. Mas esclarecedor do que foi a guerra contra a esquerda brasileira, na perspectiva de um quadro ideologicamente comprometido (como ele afirma ter sido) aos grupos de extrema direita. Na visão desses grupos, até Golbery do Couto e Silva entrava na conta de esquerdista...