quarta-feira, 29 de abril de 2020

Histórias de família (7)

Quando seu Vittorio desceu para o Sul, não sei se veio sozinho e depois trouxe a família ou se já desceu com mulher e filhos. Seja como for, isso deve ter ocorrido por volta de 1920. A maioria dos catorze filhos nasceu em São Paulo, mas o caçula - meu pai (Rubens), na cidade de Rio Grande, em 1924.
O vô morou nas cidades de Rio Grande, Santa Maria, Rio Grande novamente e depois Pelotas. Acredito que a ordem seja essa. Ele era funcionário da Viação Férrea desde que chegou ao Rio Grande do Sul e tornou-se engenheiro prático. Ou já ingressou na Ferrovia como engenheiro prático, não sei
Essa categoria profissional desapareceu dos quadros da Viação Férrea na década de 1940, quando passaram a predominar os engenheiros com diploma de curso superior. Meu pai se orgulhava dessa trajetória do Velho. O ensino superior era um privilégio das classes ricas e o Velho conseguiu a categoria de engenheiro sem cursar faculdade.
Meu pai foi o único dos irmãos a adquirir diploma de curso superior. Da Faculdade de Ciências Econômicas de Pelotas, que funcionava no Ginásio Gonzaga. Diploma de Perito Contador.
Várias vezes, em encontros familiares, ouvi os tios e tias se referirem jocosamente ao meu pai com “privilegiado”. O único com formação escolar completa. O caçula. Aquele que pode aproveitar o sucesso financeiro obtido pelo Velho no final da vida. Os outros só teriam feito o Primário, um ou outro concluído o Ginásio. O pai parece que se constrangia disso. De ter tido oportunidades que os irmãos não tiveram.
Mas isso são lembranças antigas. Meu pai morreu em 1978, com 53 anos. Eu tinha 22 anos e, quando conversávamos sobre a vida em geral, o meu entendimento do mundo era muito limitado.
Em maio de 78, quando ele faleceu, eu era professor de História recém formado e estava começando a trabalhar numa escola estadual em Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre. Até então nunca trabalhara regularmente. Vivia de mesada. Fazia trabalhos eventuais e não era fácil me manter desse jeito.
Afinal, na perspectiva de um imigrante e de seus descendentes, o trabalho é uma categoria fundamental, definidora. Quem não trabalha não come.
– Eu não sustento vagabundo – o pai nos dizia, dirigindo-se aos seus três filhos.
Quando fiz vestibular para o Curso de História – que ele não aprovava, queria que eu cursasse Direito – ele avisou:
– Se não entrares na Universidade, vais trabalhar.
Eu tinha 18 anos e estava mais do que na hora de encarar o batente (termo que ele gostava de empregar). O tipo de atividade que me esperava era o cartório, o comércio, talvez o banco. Nada que me interessava. Me empenhei ao máximo para ser classificado e obtive uma pontuação boa no vestibular da UFRGS. Me disseram que pela soma dos meus pontos eu poderia ter ingressado na Medicina, na Engenharia ou no Direito. 
Quando ele soube disso (que eu poderia ingressado no Curso de Direito) lascou um comentário cortante:
- Desperdiçaste uma chance.
Durante muito tempo, tive a impressão de que ele tolerava a minha vagabundagem, isto é, a minha condição de simples estudante, sem nenhuma atividade profissional. Eu estudava e fazia poemas. Publicava poemas em jornal (no Bric a Brac da Vida, do Correio do Povo), ganhava prêmios literários.
Um dia, fui substituir a secretária dele (que entrara em férias) na sala em que ele trabalhava no SulBrasileiro (hoje prédio do Santander, na esquina da Rua Sete de Setembro com Rua General Câmara) e encontrei de baixo do tampo de vidro da sua mesa os meus poemas publicados.
Acho que ele se orgulhava do filho metido a literato, vagabundo, arisco em relação ao trabalho, enfiado no movimento estudantil universitário, mas que gostava de livros, cinema e música erudita. A tal da cultura - que ele prezava tanto.
Juntos reviramos várias vezes a trajetória do seu Vittorio e procuramos compreender a sua travessia: Itália – São Paulo – Rio Grande do Sul. Adria, fazenda de café paulista, Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Uma família de inúmeros filhos. Surras homéricas para endireitar os rebentos. Surras que faziam parte da pedagogia do seu Biasoli.
Meu pai, a muito custo – e muita conversa da minha mãe –, largou de mão essa pedagogia. Apanhei pouco. Não lembro mais. A mãe era contra.
Acho que seu Vittorio era isso: um homem duro. Foi com determinação que saiu da lavoura, tornou-se mecânico, ferroviário, fez filhos e mais filhos, e "nunca deixou que faltasse nada para a família", diziam as tias. Mas tinha de trabalhar, merecer – isso todos repetiam.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Histórias de família (6)

No final dos anos 90 estive na Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, e havia terminais de computador para se digitar o nome dos antepassados e se obter informações a respeito dos mesmos. Quando chegaram, com que idade, qual profissão e até o nome do navio.
Eu digitei o nome do avô – Vittorio Biasoli – e não encontrei coisa alguma. Fiz várias tentativas, mudei um pouco a grafia e nada.
Anos depois um sobrinho – Rubens Ernesto – conseguiu encontrar o registro, não sei como. O nome da família tinha sido abrasileirado (alguns preferem dizer “adulterado”), meu sobrinho descobriu isso e achou o registro na hospedaria. O sobrenome que a família do vô trazia, quando aportou no Brasil, era Biasioli.
Como se deu a mudança? Não sei. Na certidão de casamento ainda está o nome original. Na certidão de óbito não, o nome já está alterado.
A hipótese mais provável é de que tal mudança se deu em função da naturalização do avô, durante o Estado Novo. Pressionado pela política de nacionalização de Vargas, talvez incomodado com a suspeita de ser um quinta-coluna (durante a Segunda Guerra Mundial), seu Vittorio mudou de nacionalidade, abrasileirou-se.
Conversando com meu pai na década de 70, eu soube desse processo de naturalização do avô. Mas não fazia ideia de que ele alterara a grafia do nome.
Nós conversávamos sobre o período da guerra e o pai contava que seu Vittorio sempre teve simpatia por Mussolini. Era um fascista? Provavelmente não. Era um homem autoritário na família, no trabalho, e um conservador nos costumes. No campo político, o que é certo é que não possuía nenhuma simpatia pelo anarquismo e socialismo. O que o pai e o tio Victor acentuavam era a simpatia por Mussolini, não propriamente pela ideologia fascista. Pela figura do líder que reergueu a Itália. Estranhamente, as tias nunca comentavam isso.
O fascismo agradou muita gente quando surgiu na década de 1920 e se consolidou nos anos 30. Mussolini se fez primeiro-ministro e passou a mandar mais do que o rei. Barrou o avanço da esquerda, reorganizou a economia e a sociedade italianas e também ensaiou uma política colonialista na África. Com essas ações granjeou entusiasmos na Itália – inclusive na Igreja Católica – e no mundo inteiro.
Perón se empolgou com o fascismo. Vargas, mais discreto, também. Até Churchill fez referências elogiosas a Mussolini em determinado momento – Churchill, que nunca se enganou em relação a Hitler. O campo conservador, de modo geral, viu com bons olhos aquele que hoje temos a imagem de bufão.
O que dizer então de velhos italianos pelo mundo afora, que um dia se viram obrigados a abandonar a terra natal e buscar oportunidades na América? Oportunidades que sua terra de origem foi incapaz de lhes proporcionar e que depois, com Mussolini, parecia capaz.
No Brasil, foram muitos os simpatizantes de Mussolini entre os imigrantes e seus descendentes. Muitos deles sem muito entendimento da ideologia. Empolgavam-se com a terra natal se destacando no cenário internacional, crescendo economicamente, disputando com as potências europeias territórios da África como a Líbia e a Abissínia.
O vô Vittorio talvez se enquadrasse nesse perfil. Tio Victor contava que ele sintonizava o rádio na emissora oficial do Duce e ouvia as notícias do governo da Itália. Durante a guerra, como o Brasil era adversário de Mussolini, o vô ligava o rádio com o volume bem baixo para os vizinhos não escutarem.
Tio Victor, por sua vez, sintonizava na BBC, colocava o volume bem alto para escutar as notícias dos Aliados e sabia que ele não reclamaria.
– O Velho se calava, engolia – o tio comentava, rindo.
E fiquei com a impressão de que nenhum dos quatro filhos homens acompanhou o pai na simpatia ao Duce. Todos eles penderam para o campo dos Aliados. Tio Cléo esteve a ponto de embarcar como integrante da FEB... Essa última informação surgiu numa conversa entre meu pai e tio Henrique (nos anos 70, P. Alegre, apartamento da Rua Sete de Abril), mas ficou vaga. Nenhum dos dois tinha certeza. Só recordo o tio Henrique afirmando:
– A guerra é uma coisa terrível.
E contou que participou de um batalhão gaúcho na guerra contra São Paulo (Revolução Constitucionalista de 1932), que sua tropa ficou vagando sem alimentação no território paulista, que eles só tinham laranjas para comer, e não disse mais nada. Da sua experiência de militar, só falou isso.
Na verdade, nem garantiu que foi na Revolução Constitucionalista que ele combateu. Eu sugeri esse episódio e ele disse que sim, talvez.
– A guerra é uma coisa terrível – ele só tinha certeza disso.
Quando voltei a Hospedaria dos Imigrantes, em 2016, não encontrei os terminais de computador. Nem tive acesso aos arquivos com os registros dos imigrantes. O setor de arquivos estava fechado naquele dia.
Dormitórios. Hospedaria do Imigrante.
A hospedaria estava reformada e entre as novidades havia um espaço que recriava os antigos dormitórios. Várias camas beliches uma ao lado da outra, lençóis brancos, levando o visitante a imaginar o que os imigrantes tinham pensado ou sonhado, quando deitados naquelas camas... Quantas angústias, sonhos, e expectativas.

domingo, 26 de abril de 2020

Histórias de família (5)

Quando me deparei com a coleção de estátuas romanas no Museu do Vaticano, senti como se voltasse à infância. O poeta Sílvio Duncan, nos anos 80, já tinha me avisado: ao envelhecer, a infância volta como se fosse um filme. Não é preciso se esforçar, ela vem.
Foi isso que ocorreu comigo num dos corredores do Museu do Vaticano. Lembrei de quando tinha 10 anos de idade e o pai contava que meus avós eram italianos... Na minha imaginação de menino, eles deviam saber tudo sobre Roma Antiga. Conhecer as ruínas, saber a história...
Museu do Vaticano. Espaço reservado às esculturas romanas.
Um dia perguntei mais ou menos isso para a tia Irani – se meus avós conheciam História Antiga – e ela riu.
– Isso é coisa de gente estudada, Vitinho. Eles não eram. – Ela falou. – Mamãe gostava de ópera. Se tem uma ópera com imperadores e madonas, aí talvez ela soubesse.
Seja como for, minha cabeça de menino inventou histórias fantásticas e até hoje elas me conduzem. Quando criança, em Pelotas, meu pai me levava ao cinema e assistíamos muitos filmes de temática histórica. A queda do Império Romano foi um dos meus preferidos. Épico hollywoodiano sobre o governo de Cômodo.[i]
Guri dado a fantasias, achava que uma história com aquela grandeza na certa qualquer pessoa que nascera na Itália conhecia... O pai nunca me desmentiu (na verdade, nunca soube dessas bobagens do filho) e me apresentou O Tesouro da Juventude, os fascículos do Conhecer e foi por aí que comecei a ler sobre a Roma Antiga.
No Vaticano, diante da estátua do imperador Augusto, lembrei disso tudo. A infância como se fosse um filme. Os joelhos afrouxaram. Se tivesse um banco, me sentaria. Mas aguentei firme, de pé, e saquei várias fotos como qualquer turista.
Conto essa história para deixar evidente o sentimento que embala essas memórias. Meus avós eram lavradores. No documento de entrada no Brasil, na Hospedaria dos Imigrantes, está registrado que Vittorio, 14 anos, tinha a profissão de lavrador – o mesmo registro em relação aos seus pais (Vincenzo, 37 anos, Oliva, 34) e até sua irmã Antonietta, 3 anos. Na certidão de casamento, na cidade de Tietê, em São Paulo, Vittorio já consta como mecânico, mas sua esposa, Santa, continua lavradora.
Mas na minha imaginação de menino, muito mais do que simples camponeses, eles são herdeiros do Império Romano e por aí afora. Fantasias de guri das quais nunca me livrei e que estão nos alicerces dessas histórias de família que vou narrando.



[i] A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO. Direção de Anthony Mann. EUA, 1964, 188 min. Cômodo assassina o pai (Marco Aurélio) e se torna imperador. Segundo o filme, o fim do governo despótico de Cômodo é o início da decadência do Império.

sábado, 25 de abril de 2020

Histórias de família (4)

Um dia um primo contou que o filho dele foi a Adria visitar a terra do nosso avô. Queria se encontrar com os Biasoli – na verdade, Biasioli, a grafia italiana do nosso nome, que foi alterada com o tempo – e ninguém quis falar com ele. Conversou com um padre e esse foi categórico:
– Aqui ninguém quer contato com os parentes da América.
Depois eu soube que isso é comum. Alguns italianos que emigraram, foram para a Argentina, Brasil, Estados Unidos, voltaram (ou voltaram seus descendentes) e questionaram a forma como seu deu a herança. Quiseram saber com quem ficou a propriedade rural, a casa de pedra, o açougue, coisas assim.
Os que emigravam saiam apressados das suas aldeias, fazendo festa, em cortejo acompanhado por banda de música – como descreve Pozenato, no romance A Cocanha - e na certa não se preocupavam com detalhes. Ora, a herança!
“Eles vão para a América e pensam estar agora livres dos senhores e da polícia, dos contratos não cumpridos, da miséria e da fome.” Depois, na hora do embarque, em Gênova, novo alvoroço, “alarido de choro, gritos e risadas”. Addio Italia, addio per sempre, gritavam. Addio fame, addio miséria.[i]
Anos depois, com a cabeça fria, esses italianos e descendentes lembravam dos parentes que ficaram na Itália, faziam o levantamento dos bens deixados para trás e talvez se incomodassem. Muitos voltaram, questionaram a partilha dos bens familiares... e deixaram ressentimentos. Mas isso não aconteceu com meus avós.
Mais de uma vez conversei com minha mãe (vó Lêdinha) a respeito disso e nunca soube nada a respeito de Vincenzo e Oliva (os pais de Vittorio, os meus bisavós). Muito menos dos que ficaram na Itália. Vó Lêdinha conheceu seu Vittorio, dona Santa (esse era o nome da vó, Santa Marcon, nome de solteira) e eles não falavam dos parentes.
– Deve ter acontecido alguma coisa – a mãe contava. E especulava: – Teu avô foi um homem difícil, talvez tenha brigado com Deus e o mundo. Quando eu casei com teu pai, em 1950, ele tinha amansado. Era muito bom comigo. Tua vó morreu um tempo depois, ele ficou doente e ajudei a cuidar dele.
O vô e a vó começaram a vida de casados em Tietê, em 1895, e nesse período não eram mais colonos de fazenda. O vô trabalhava numa companhia de navegação fluvial, enquanto a vó, ao que tudo indica, era exclusivamente dona de casa.
O vô viajava pelo Rio Tietê, pegava o Rio Paraná, ia até o Mato Grosso e fez essa viagem várias vezes. Até que pegou malária, contraiu a doença mais de uma vez e sofreu por conta disso. Dores horríveis.
– Ouvia teu avô gritar, Vitinho. Eu era criança – contava a tia Irani – e ficava assustada. Todo mundo corria pela casa para atender o Papai. Ele pegou malária uma, duas, três vezes, até que o médico disse que não podia mais reincidir.
Não sei se alguém pode pegar malária mais de uma vez – mas é assim que eu lembro a tia contar. Na sala do apartamento dela, em Porto Alegre (num prédio na Avenida Ramiro Barcelos, na frente do Hospital de Clínicas), a tia me servindo doce e perguntando.
– Queres mais doce de abóbora?
– Quero sim – e eu repetia uma, duas vezes as conservas feitas por ela, uma de abóbora, outra de pêssego, só para provar. A tia era uma cozinheira de mão cheia. E ela falando que o vô gritava durante a noite, sofria, tinha convulsões.
– Aí o médico chamou a Mamãe e falou que ele precisava viver num lugar onde a malária não existisse. Se ele fosse infectado novamente, morreria.
– Foi um desespero – ela continuava. – Mamãe perdeu o tino. Chorava.
É assim que eu lembro. A tia Alice e a tia Landa confirmaram a doença, sem maiores detalhes. Era malária mesmo? Não sei.
Quando contei para a mãe, ela falou que era uma doença tropical, dessas que acometem os povos do centro do País, na Floresta Amazônica.
– Naquele tempo não era comum um diagnóstico preciso – a mãe ponderava. – Mas foi por motivo de saúde que ele deixou São Paulo e veio para o Rio Grande do Sul. Um clima melhor ou diferente. Novos ares.
E as tias me garantiram:
– Foram os patrões do teu avô que acertaram a vinda dele para a Viação Férrea, no Rio Grande do Sul. Os chefes de uma e de outra tinham ligações. Eram empresas de capital estrangeiro e o acerto se deu dessa maneira.
Calculo que isso ocorreu no final da década de 1910. (Cálculo que refaço todas as vezes que conto essa história.) Os belgas já tinham perdido o controle acionário da Ferrovia, no Rio Grande do Sul, e passado para os norte-americanos – vinculados a uma holding de Percival Farquhal, que tinha investimentos nas ferrovias paulistas, que controlava a companhia que construía a estrada de ferro entre São Paulo e Rio Grande do Sul, entre as cidades de Itararé e Santa Maria.
Nesta época (década de 1910) o vô talvez já deixara a navegação e atuava em alguma ferrovia paulista. Quem sabe trabalhasse na Sorocabana, vinculada aos investimentos de Farquhal, não sei. Divagações de um professor de História...
Seja como for, vale o relato das tias. História familiar se reconstrói na base de relatos orais – sempre questionáveis pela historiografia acadêmica. Mas história familiar é isso: memória, narrativa emocional, beirando o relato mítico. No caso de uma família de imigrantes, a aproximação me parece com os mitos de travessia, de viagem marítima. Ulisses buscando sua casa depois da Guerra de Tróia. E nós, os descendentes, forjados na tradição de Telêmaco (o filho de Ulisses), buscando reconstruir a trajetória do Patriarca.
Assim, se o vô desembarcou no porto de Santos com uma mão na frente e outra atrás, com 14 anos de idade – viagem subsidiada, mão-de-obra barata para a cafeicultura –, não foi dessa maneira que desceu para o Sul. Com mais de 40 anos, tornara-se um trabalhador qualificado. Ingressou na Viação Férrea e alcançou a posição de engenheiro prático.
Meu pai se orgulhava disso:
– Teu avô não fez faculdade. Aprendeu trabalhando. Se tornou engenheiro dessa maneira.
Um imigrante que ascendeu social e economicamente. Sustentou uma família de 14 filhos. E nunca voltou a Itália. Não reivindicou parte da pequena propriedade rural que talvez seus avós tivessem. Não sei. Tenho a impressão de que meu pai sabia. Sabia que seu pai, Vittorio, desdenhou o passado rural de seus antepassados e que sua trajetória de lavrador a engenheiro prático foi a sua grande conquista. A sua travessia.
E talvez isso os Biasioli da Itália sequer desconfiem. Provavelmente nem se interessem.



[i] POZENATO, José Clemente. A Cocanha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2000. 1º vol. da trilogia sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Histórias de família (3)

Quando meus avós paternos chegaram da Itália, foram trabalhar em fazenda de café, em São Paulo. O vô desembarcou em Santos, em agosto de 1888, depois subiu para a cidade de São Paulo; a vó, eu não sei. Os dois se conheceram no eito, contou uma tia. Era hora do almoço, os trabalhadores se ajeitaram debaixo dos cafezais, abriram os embrulhos onde estava a refeição e foi aí que começaram os olhares. Um namoro de olhares e bilhetes. Pouca conversa. Namoro que se dava durante o serviço no cafezal. Talvez durante a colheita... As mãos de um e de outro arrancando os grãos vermelhos dos pés de café e enchendo os cestos.
Mas essa última parte (a da colheita) já é imaginação minha. Ou talvez de alguma tia, não sei, quem sabe a tia Landa, Alice ou Irani – as tias com as quais conversei sobre o assunto. Com a tia Landa (Iolanda), a conversa era na cozinha da casa que foi do vô Vittorio, em Pelotas, nos anos 80. Nós dois ao redor da mesa, comendo galinha com arroz e bebendo cerveja preta. Cerveja preta era a que ela mais gostava. Uma tia pequeninha, anã, que os sobrinhos adoravam. Demos muita gargalhada, os dois.
– Era tudo muito difícil naquela época – ela contava. – Eles trabalhavam muito. Depois casaram, tiveram catorze filhos e sempre as gurias mais velhas eram designadas a cuidar dos mais novos. Cada filha mais velha responsável por um mais novo. Era assim que funcionava. Teu pai, o Rubens, era responsabilidade da Irani.
Depois ela parava, ficava pensando, olhava pra mim e ria:
– Como a gente trabalhava, Vitinho. Nem imagina.
Trabalhavam, mas também se divertiam. O pai contava que os irmãos corriam pela casa, corriam atrás da tia Landa e ela – tão pequenininha, anãzinha – passava chispando por baixo da mesa, sem precisar se agachar.
– Era difícil pegar ela – o pai explicava.
Mas estou desviando o assunto. Volto ao namoro do vô e da vó no cafezal – em Sorocaba talvez. Um pouco depois eles se casaram e foram viver na cidade de Tietê. Ele com 22 anos, mecânico; ela com 17, lavradora. É assim que está escrito na certidão de casamento, de 1895.
– E como é que saíram da fazenda? – eu perguntava. Mas nunca ninguém soube responder. As tias não sabiam.
O tio Victor, que eu vivia pedindo para me contar o que sabia, ficou protelando, protelando e não deu tempo. Um dia a Carmen Lúcia, a filha dele, me telefonou para dizer que ele ia falar, que eu podia vir, vamos marcar (ele morava em Pelotas, eu já estava em Santa Maria), mas naquela semana ele morreu. Dormindo. E levou todas as suas histórias consigo.
Nas conversas com o pai, esse assunto nunca foi tocado. A saída de um imigrante da fazenda (um imigrante que viajou financiado pelo governo para servir como mão-de-obra para os fazendeiros paulistas) não era problematizada. Eu só soube dessa história depois, isto é, que não era fácil os colonos deixarem as fazendas. Os proprietários faziam de tudo para retê-los. Havia uma legislação que obrigava os imigrantes a ficarem nas fazendas (pelo menos durante um certo número de anos). Então, muitas vezes, os colonos fugiam.
O vô e a vó fugiram? Não sei.
Ele era mecânico. O pai contava que ele sempre gostou de máquinas. Aprendeu a lidar com isso na fazenda. As fazendas paulistas tinham um setor de beneficiamento do café, com secadores, descascadores, ventiladores. Havia uma indústria agrícola próspera, com muitas invenções e melhoramentos de equipamentos.
Não sei como meu pai e eu conversávamos sobre isso. Eu era estudante de História (1974-77), lia sobre a expansão da cafeicultura em São Paulo, o pai ouvia e reorganizava as suas lembranças com as informações que eu passava.
Como é que o vô deixou de ser colono que trabalha no eito (essa era uma expressão que as tias gostavam, para se referir ao trabalho na terra) e passou a atuar no setor de beneficiamento?
Imagino que cheguei a conversar isso com o pai. Ele não soube responder. Minhas tias também não – mas garantiram que o vô e a vó se conheceram no cafezal, durante o serviço. Um namoro de olhares e bilhetes. Pouca conversa. E depois casaram.
– Tua vó era muito mocinha – a tia Landa falava. As outras tias confirmavam. Todas diziam que ela começou muito cedo. – Quando abriu os olhos, já tinha uma penca de filhos – concluía a tia Landa. E ria. Ela tinha um sorriso enorme.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Histórias de família (2)

Geralmente os descendentes de imigrantes italianos, esses que vieram durante o período imperial e o início da República, com uma mão na frente e outra atrás, são muito orgulhosos da sua origem. Eu não fujo à regra.
O pai contava que a vó lia revistas em italiano (possivelmente as que eram produzidas no Brasil antes da política de nacionalização de Vargas) e as guardava debaixo do colchão. Ela gostava muito de canto lírico, acompanhava a vida das cantoras de ópera, a trajetória das grandes companhias – mas não lia em português.
– Só foi alfabetizada em italiano – o pai explicava.
– Chegou no Brasil mocinha – me disse uma tia. – Já tinha frequentado a escola e não iria assistir aula novamente.
Mas fiquei com a impressão de que, na verdade, ela nunca quis aprofundar o seu conhecimento da língua portuguesa. Falava a língua que se falava no Brasil e pronto. Leitura era outra coisa. Pra isso existia o italiano.
Quando Vargas implantou o Estado Novo, a política de nacionalização e, especialmente, quando declarou guerra ao Eixo, em 1942, ela passou a esconder as revistas debaixo do colchão e não se tocava no assunto. A edição de jornais e revistas em italiano, em São Paulo, Caxias, Porto Alegre, foram proibidas e não pegava bem andar com esse material. O sujeito encontrado com revistas em italiano poderia ser considerado um quinta-coluna e ter de dar explicações ao delegado.
Em alguns lugares, italianos e descendentes foram presos porque falavam ou cantavam em italiano – muitas vezes em dialeto, no caso das colônias do Rio Grande do Sul. O vô e a vó, nessa época (do Estado Novo, da Segunda Guerra Mundial), moravam em Pelotas e não sei de italianos ou descendentes que tenham sido presos na cidade.
Mas em agosto de 1942 (em resposta aos afundamentos de navios brasileiros por submarinos alemães na costa do Nordeste) ocorreram depredações de lojas, hotéis e residências de italianos e alemães em várias cidades brasileiras – inclusive em Pelotas. Meu pai nunca falou nisso. Nem nenhum dos meus tios ou tias tocou no assunto – e isso que eles eram catorze (meu pai era o caçula, o décimo quarto). Mas deve ter sido um acontecimento que marcou todos eles.
Pelo que o pai contava, a vó nunca mais tirou as revistas debaixo do colchão. Aquilo era um tesouro, o mundo que a fazia sonhar (suposição minha). E um tesouro (o mundo operístico) que o pai me ajudou a apreciar.
Quando lembro dele escutando La Traviata ao lado da eletrola, os olhos marejados, acho que não era só a música de Verdi que o emocionava. Era a lembrança da mãe (minha vó).
– Ela gostava muito – ele me disse certa vez, quando me pegou escutando um disco com trechos de Aída. Um disco de uma coleção de banca de revista que ainda guardo em algum lugar.
No ano passado, quando assisti La Traviata em Roma (no Salone Margherita), lembrei disso tudo. Era um teatro de poltronas vermelhas, próximo a Piazza di Spagna, com cantores e músicos muito bons. Uma produção que seguia o padrão tradicional: os cantores-atores com roupas de época e nenhuma modernização de cenário ou em outra coisa. Espetáculo pra turista não botar defeito.

Salone Margherita. Roma, outubro de 2019.

Interior do Salone Margherita.
Lembrei o pai, a mãe e também a vó materna que não conheci. Os três adorariam estar ali. Estranhamente, o vô não fez parte dessa memória.
– Era um homem duro – a mãe disse várias vezes. O pai nunca se referia a ele quando falávamos sobre o interesse da vó por cantoras líricas e espetáculos operísticos (que ela só conhecia do rádio e das revistas, provavelmente).
Quando o espetáculo terminou, sai caminhando pelo centro histórico de Roma e fui dando voltas até a Fontana di Trevi. As ruas praticamente vazias naquela hora da noite.
Descendentes de imigrantes italianos geralmente são assim: sentem-se orgulhosos da sua origem. E acham, mesmo que seus avós tenham vindo com uma mão na frente e outra atrás, que têm alguma coisa com o grande mundo italiano, sua história, sua arte e sua música.
Um tesouro que guardamos com carinho – alguns de nós, escondendo debaixo do colchão; outros, escancarando de modo desavergonhado e fazendo crônicas a respeito.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Histórias de família (1)

Histórias de família se perdem. Os netos, por exemplo, raramente sabem a trajetória dos seus avós e bisavós. Eu pouco sei. Meu pai morreu quando eu tinha 22 anos e hoje, com 64, às vezes embaralho as histórias que ele contava relativas aos meus avós paternos.
Eles vieram da Itália, no final do século XIX, e se conheceram em São Paulo, numa fazenda de café. O vô era do norte, da região do Vêneto, da cidade de Adria. A vó era do sul, mas eu nunca soube de qual localidade. Calábria? Uma vez ouvi alguém especular a respeito.
Ambos trabalharam em fazendas de café, no estado de São Paulo, que era o destino da maioria dos imigrantes italianos que chegavam ao Brasil, no final do século XIX e início do XX. Mão de obra para substituir o trabalho escravo. Mão de obra barata. Segundo um fazendeiro paulista, 1/3 mais barata que a de um escravo.
O vô chegou em agosto de 1888. Tinha catorze anos. Desembarcou no porto de Santos, subiu de trem até a cidade de São Paulo e foi hospedado na Hospedaria do Imigrante. Vinha com o pai, a mãe e uma irmã de três anos de idade. A família passou alguns dias na Hospedaria e logo foi para Sorocaba, para trabalhar numa propriedade da família Prestes.
Hospedaria do Imigrante, em São Paulo (2016).
Uma tia contou que eles (a família do meu avô) ficaram muito espantados quando souberam que as casas onde moravam, na fazenda, fora moradia de negros. Negros escravos. A figura do negro tinha alguma coisa de pavorosa para eles. Provavelmente a escravidão também – que tinha sido extinta meses antes deles se estabelecerem em Sorocaba.
Tempos atrás eu visitei uma fazenda de café paulista – Fazenda Santa Maria do Monjolinho, em São Carlos – e conheci as tais senzalas reformadas para receber as famílias italianas. As senzalas divididas em “apartamentos” de dois quartos, sala e cozinha. Um padrão de habitação provavelmente inferior à moradia dos camponeses no Vêneto.
Faço essa comparação lembrando as casas dos pastorinhos de Fátima, em Portugal, que estão preservadas (e visitei em 2012). Moradias da década de 1910, de simples camponeses portugueses – que imagino semelhantes às dos camponeses italianos do final do XIX. Casas de paredes de pedra, com assoalho de madeira, tudo muito rústico, mas visivelmente superior a uma senzala reformada, de paredes de tijolos e assoalho de chão batido.
Antiga senzala da Fazenda Santa Maria do Monjolinho, em São Carlos (2016).

Interior da senzala, reformada para receber os imigrantes (2016). O assoalho de tijolo
foi colocado muito depois, segundo a guia da fazenda.
O pai contava que eles viviam da terra, na Itália. Pequena propriedade rural que não dava para grande coisa. Mas que garantiu que o avô estudasse e fosse alfabetizado. Um dia, ele jogou um tinteiro no professor e foi expulso da escola.
Essa última história o pai contou no final de um almoço de domingo, enquanto nós dois terminávamos o vinho. Meus dois irmãos já tinham saído da mesa, a mãe retirava os pratos e às vezes fazia um comentário, acrescentava um detalhe.
O vô fora expulso da escola e obrigado a trabalhar. Um dos serviços fora o de servente de obra. No caso, de construção de pontes na cidade de Veneza – não muito distante de Adria.
Uma das funções do avô era carregar os pregos (ou parafusos) para os operários colocarem nas vigas de ferro que constituíam as pontes. O pai contava isso como se fosse uma história engraçada. Um dia o tio Victor contou a mesma história e o tom era o mesmo: o de um caso divertido.
O cômico, para eles, talvez fosse imaginar o velho Vittorio (esse o nome do meu avô), então um menino de 10 ou 12 anos, carregando um prego (ou parafuso) por meio de uma espécie de pinça e cuidando para não cair. O prego (ou parafuso) fora aquecido, estava muito quente, e precisava chegar desse jeito até o operário que o esperava para colocar entre as vigas de ferro.
– O velho tinha que se equilibrar na ponte em construção – dizia meu pai – e cuidar para não se queimar nem deixar a peça cair.
A graça estava aí: o velho, então um menino, passando um perrengue danado. Equilibrando-se numa ponte em construção, “piando fino” - expressão que meu pai gostava de usar para se referir a alguém passando por uma situação difícil. Adulto, Vittorio se tornou um homem severo, exigente, que deu surras homéricas (de cinta) nos filhos.
Histórias de família se perdem. Quando lembradas, são servidas em porções pequenas, que mudam de feitio ao sabor do vento.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Na beira da Lagoa Rodrigo de Freitas

Vou narrando como lembro. A memória anda tirando coisas do fundo do baú, nem sempre são lembranças confiáveis - muitas vezes estão envoltas em névoas -, mas, como tenho medo de perdê-la, vou registrando-as como surgem.
Hoje lembrei da primeira vez que estive no Rio de Janeiro. Julho de 1975. Viajava sem um roteiro certo. A ideia era chegar em Ouro Preto. Saí de Porto Alegre com umas amigas e nossa primeira parada foi em Garopaba. De ônibus. O ônibus não entrava em Garopaba, nos deixou na beira da estrada e depois pegamos carona. Nos hospedamos no Hotel Lobo.
Engraçado que éramos quatro e só lembro daquela que era minha colega na universidade. Mas não digo o nome. Ela não quer. Um dia contei uma história que nós vivemos e recebi a cobrança:
– Pô, Vítor, não conta uma coisa dessas.
Vou acatar o pedido. Mas lembro bem dela. Era muito bonita. As outras duas gurias eram suas amigas e recordo de todos nós, juntos, tomando o café da manhã no Hotel Lobo. Todos os hóspedes do hotel reunidos em torno de uma única mesa. Havia um prato com frios (presunto, salame, essas coisas) e um dos hóspedes disse que não comia carne e fez uma pregação vegetariana. Nós ficamos ouvindo. Eu, sem coragem de pegar uma fatia de presunto e colocar no sanduíche.
De repente um outro hóspede – um magrão, como se dizia – se vira pra mim e diz:
– Me passa esse cadáver que eu vou encarar.
Eu alcancei o prato de presunto e logo depois também peguei uma fatia para mim.
Não lembro do resto do passeio na praia. Era inverno. De lá fomos para São Paulo, depois Rio de Janeiro.
Quando chegávamos nessas cidades, nos dispersávamos. Cada um procurava uma casa de parente para se hospedar. No Rio, eu tinha um endereço perto da Lagoa Rodrigo de Freitas e fui até lá. Era um prédio sofisticado, mas não havia porteiro eletrônico e portaria estava vazia. Fui entrando, bati na porta do apartamento, ninguém atendeu e fui embora.
Como era início da tarde, fiquei na beira da lagoa e me recostei debaixo de uma árvore. Bateu o sono e dormi. Quando acordei, entardecia e achei a paisagem muito bonita. Cenário de filme.
Quando lembro disso – que dormi na beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, com a mochila ao lado e que me acordei são e salvo, com a mochila intacta, tenho a impressão de que vivi um Rio que não existe mais.
Lembrei disso quando estive em Copacabana, no verão de 2020, e a Lagoa Rodrigo de Freitas era um dos meus caminhos. Um dia, minha companheira e eu fomos visitar a Casa Museu Eva Kablin, próxima à lagoa, e recordei a cena: um mochileiro dos anos 70, sesteando nas margens da lagoa. O que eu esperava da vida?
Deitado na beira da lagoa, dormindo o sono dos justos, na certa eu achava que a vida seria fácil, muito fácil. Que tudo seriam flores, como ironizava meu pai, tentando me fazer enxergar a dureza da vida. Me enganei redondamente. Mas naquele dia deu certo, isto é, naquele dia me dei bem.
Não lembro se voltei ao apartamento daqueles parentes bacanas. Sei que fui procurar o apartamento de uma tia-avó no Flamengo. Ela morava com a filha e o genro. O neto era atleta. Mas aí seria outra história. Deixo para a próxima.
Dessa vez é só a cena da soneca na beira da lagoa. Uma bela sesta. Me revitalizou. Encontrei pousada na casa da tia e depois segui para Minas Gerais. Apenas minha amiga e eu. As outras duas já tinham ficado em São Paulo.
          Pegamos um ônibus para Belo Horizonte, depois outro para Ouro Preto, e o que vivemos na cidade mineira foi muito legal. Deixou ótimas lembranças - essas coisas que se vive aos 20 anos e que ficam melhores com o passar dos anos.

domingo, 19 de abril de 2020

Turista brasileira em Varadero

Estive em Cuba em 2011 e me hospedei num hotel de Havana, no bairro Miramar, um local de embaixadas e hotéis internacionais, com casarões antigos (“pré-revolucionários”) e casas no estilo norte-americano dos anos 1950. Caminhando pelo bairro, tive a impressão de andar num território estadunidense e lembrei que não foi sem razão que o anti-imperialismo foi um dos vetores da luta revolucionária. Cuba era uma espécie de protetorado dos Estados Unidos.
Hotel Miramar. Havana.

          Recordo essa viagem por conta de um passeio que fiz a Varadero e de uma cena que assisti protagonizada por uma turista brasileira. Varadero é um dos locais mais importantes da indústria turística cubana e consiste numa série de resorts ao longo de uma praia paradisíaca. Eu tinha que conhecer o lugar e lá fui com minha companheira passar um dia.
Saímos de Havana de manhã cedo, voltamos ao anoitecer. Ao chegar fomos para a beira da praia e constatei que aqueles postais que vemos do Caribe... são verdadeiros. Eles não enganam. A areia é branca, o mar é azul. Todas as cores são intensas. Uma paisagem de cartão postal. É só clicar.
Infelizmente, apesar do dia de sol, o mar não estava para banho. A bandeira era vermelha e havia um enorme cartaz informando (em diversas línguas) a respeito de uma determinação internacional para as praias do Caribe segundo a qual os banhos de mar ficam proibidos quando a bandeira estiver vermelha. Devido ao repuxo, me explicou o salva-vidas.
Fiquei frustrado e molhei apenas os pés. Eu e a totalidade dos visitantes daquela pequena praia de um resort de Varadero. E digo pequena porque a praia era cercada por rochas. Uma extensão de areia de pouco mais de cem metros e sólidas rochas em cadda uma das pontas. Na areia, cadeiras de praia, umas armações cobertas com folhas de palmeira para servir como guarda-sol e um bar servindo quantos drinques o visitante quisesse. Território paradisíaco. Mas sem banho de mar naquela manhã de céu esplendorosa, sol brilhante e nenhuma nuvem.
Varadero.

          A proibição, no entanto, não valia para uma turista que caminhava dentro da água enquanto o filho (um guri de menos de dez anos) se banhava livremente, dando mergulhos invejáveis. O salva-vidas foi até ela explicar as normas da praia e ela respondeu, altivamente, que cuidava do menino. Que era seu filho e ela estava habituada. Nas praias brasileiras nunca ninguém lhe dizia o que tinha de fazer. E respondeu num português brasileiríssimo que não deixava dúvidas quanto a sua origem.
O salva-vidas (um professor de educação física) se esmerou em explicar o quanto o mar é traiçoeiro, mas não houve jeito. Ora o mar, ora as normas internacionais! A jovem senhora, escultural no seu maiô de duas peças, não se dobrava a qualquer argumento.
O rapaz se retirou, me viu observando a cena, sabia que eu era brasileiro e veio me dizer que isso era frequente.
– Alguns turistas não entendem – explicou. – E os piores são os russos e os brasileiros – acrescentou. – Se atiram dentro da água, dizem que está tudo sob controle, que eles sabem nadar, mas se o repuxo os carrega para o fundo não conseguem voltar sozinhos. Eu tenho de busca-los. E não pensa que é fácil.
Lembrei desse episódio porque tenho a impressão de que muitos brasileiros são assim: acham que podem descumprir as normas e se comportarem do mesmo modo como fazem em casa. Se o sujeito é jovem, penso que a petulância está explicada. Vai passar. Mas se já passou dos 30, se já foi curtido pela vida, a coisa me incomoda.
Um comportamento, me parece, que tem se revelado ultimamente no país, quando vemos brasileiros de meia idade, enrolados na bandeira nacional, negando as medidas rigorosas de combate à expansão do covid-19. Negam o que é consenso entre as autoridades médicas e sanitárias internacionais. Negam com o nariz erguido. Negam e acham que não serão atingidos pela catástrofe que se aproxima.
Me lembram a turista brasileira em Varadero. Ao final ela se deu bem. O filho deu todos os mergulhos que teve vontade e depois ela saiu com ele pela mão. Era uma mulher bonita. Arrogante e bonita. Bem tratada. E imagino que  ela, nesses últimos dias, deve ter estado engrossado a multidão dos bolsonaristas que estiveram na Avenida Paulista protestando contra o governo Dória, a Rede Globo e a China.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Memória, enchente e Beethoven

Algumas coisas estão se transformando dentro de mim. Nem sei o que é e escrevo para descobrir. Já fiz e refiz esse texto várias vezes e aqui vai a última versão.
Minha memória está perdendo a clareza e preciso me apressar. Algumas lembranças estão se perdendo, às vezes ganhando um jeito difuso. Diversos quadros surgem “na parede da memória” e nem sempre doem como o Belchior cantava em uma de suas canções. Pelo contrário, até dão alegria. Algumas lembranças afloram estranhas e embrulhadas em clima de sonho. Quase um conto mitológico.
Por exemplo, uma lembrança a respeito do Canal São Gonçalo (aquele canal que liga a Lagoa dos Patos a Lagoa Mirim e que muitas vezes chamamos de rio). Na primeira metade dos anos 60 ele deu de transbordar e invadir as margens da cidade de Pelotas (onde eu morava). Acho que poucas pessoas moravam na beira do rio, mas algumas casas foram alagadas. Eu residia a dez quadras do canal (mais ou menos) e lembro disso. Eu tinha menos de dez anos de idade.
Era agosto e chovia. Era agosto, a chuva dava uma trégua e fazia um dia cinzento. As pessoas vinham da beira do rio e paravam na frente de casa para contar para o pai e a mãe o que estava acontecendo com o canal. Pelo jeito dos adultos, era coisa grave. Mas eu não me assustava. Meu irmão sim. Acho que ele chorava. Minha mãe o abraçava e consolava.
Um dia o pai falou que depois da tempestade sempre vem a bonança. Não sei quando ele disse isso. Acho que foi num daqueles dias cinzentos, depois de muita chuva e trovoada. Ele colocou a 6ª Sinfonia de Beethoven na eletrola e eu ouvia (ouço até hoje) com atenção. O quinto movimento representa a tempestade e no sexto tudo muda de repente: a bonança. “O hino de ação de graça dos camponeses” (nome dado por Beethoven ao sexto movimento). Uma felicidade só.
É isso que eu lembro. As águas do São Gonçalo transbordam, invadem a cidade e até a minha casa fica submersa. Mas isso não atrapalha a vida. Pelo contrário, nós voltamos a nossa condição primeira, primitiva e arcaica, de seres aquáticos ou algo assim, e tudo corre bem.
Vá entender porque eu recordo as coisas desse jeito. Realidade misturada com fantasia, com sonho. Parece um conto mitológico. Lembro assim essa enchente. Minha memória dá piruetas e desenha as cenas da infância desse jeito.
Faz sentido e deixo dessa maneira. Sinto uma satisfação danada e me dou conta que é isso que tenho procurado. Pouco tempo atrás viajei a Pelotas, fui ao Cassino, e era isso que estava buscando: essa sensação de viver num mundo submerso, aquático, dentro da minha casa, com meus pais. Essa lembrança primitiva Minha mãe consolando meu irmão, meu pai colocando um disco na vitrola, e do outro lado da janela esse clima de horror – a enchente do São Gonçalo - incapaz de me perturbar.
Minha memória não é mais confiável. Ela está me pregando peças. Mas deixo estar. Alguma coisa está acontecendo dentro de mim e sinto que há algo de verdadeiro nessas lembranças embrulhadas em lenda.
Depois da tempestade vem a bonança. Quando parava de chover, eu saia para a calçada com meus dois irmãos e colocávamos barquinhos de papel na água da sarjeta, que corria feito correnteza de rio.
Já refiz esse texto várias vezes e não vou reescrever mais. Vou deixar assim.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Copacabana Palace

Estive no Rio de Janeiro neste verão e me hospedei em Copacabana, num ótimo hotel da Rua Xavier da Silveira. No primeiro dia, passeando pela Avenida Atlântica, minha companheira falou em tomarmos um café no Copacabana Palace. Nada mais do que um café no Pérgula do hotel, ao redor da piscina. Na verdade, um simples cafezinho. Da outra vez que estive lá inventei de pedir uma taça de vinho branco e paguei o preço de uma garrafa. O vinho era bom, claro, mas não valia tudo aquilo. O local, no entanto, puxa vida, era de cinema.
E continua sendo, constatei mais uma vez. Nessa oportunidade, uma moça caminhava de maiô inteiro, azul, lá na outra ponta da piscina, e era como se desfilasse. Alvoroçada, cheia de gestos, vestia uma espécie de saída de banho branca e transparente, esvoaçante, e andava entre as mesas, saia em direção ao prédio dos fundos, entrava, saia, voltava a andar entre as mesas, e tive a impressão de que protagonizava uma encenação. Uma performance, quem sabe.
Minha companheira chamou minha atenção para uma mulher que se deixava fotografar próxima a nós, com muitos brincos, pulseiras e colares, e percebi que era outro espetáculo. Fiquei atento. A mulher pousava puxando os cabelos para trás, indicando o detalhe dos brincos, e depois mudava de pose, as mãos na cintura, e parecia dizer para a fotógrafa que agora era ali que ela devia focar.
– Uma styler influence – imaginamos. Vendendo balangandãs, eu pensei (compraria uma biografia da Carmen Miranda naquela semana).
O garçom nos serviu os cafezinhos e notei que as xícaras não tinham alças. Coisa estranha, mas deve ser a tendência ou coisa assim. Peguei a xícara com uma das mãos (ou copo ou sei-lá-o-quê), me recostei na cadeira para beber e lá estava a moça do maiô azul sentada na mesa defronte. Ela, mais outras duas, todas jovens, bonitas e maquiadas, reunidas a três homens velhos, feios, um deles sem largar o celular.
As jovens empunhavam taças de espumante (ou seria champanhe o que elas bebiam?), riam e falavam entre si. Os homens conversavam também entre si, sem risos, um deles sempre com o celular. Minha companheira e eu nos olhamos e acho que pensamos a mesma coisa: acompanhantes, garotas de programas? Sei lá, mas não falamos nada pra não pegar mal e ficamos observando o cenário: o azul da piscina, o entardecer, a fauna sofisticada, essas coisas.
Na madrugada de hoje revi Pixote – a lei do mais fraco (no Canal Brasil) e me acordei pensando no Copacabana Palace... O que será que o Pixote, a Lilica, o Dito e Chico (personagens do filme) achariam desse hotel?
Explico melhor: Pixote, Lilica, Dito e Chico são os meninos que fogem do reformatório em São Paulo e vão para o Rio de Janeiro vender cocaína. Eles imaginam que vão se dar bem e se dão mal, claro.
Uma cena antológica: os meninos estão na Pedra do Arpoador, assistindo o entardecer na Praia de Ipanema e sonham acordados a respeito do que vão fazer quando meterem a mão na grana resultante da venda de cocaína... Os meninos divagam, a Lilica canta “Menino do Rio”, e a cena releva o quanto eles são estranhos naquela paisagem carioca, um território de alta classe média.
Exagerando a analogia, diria que lembrei do Pérgula do Copacabana Palace porque me senti como os meninos do filme: um alienígena num território estranho. Um exagero, claro. Era outro o filme que eu estava encenando. Minha companheira e eu formávamos um casal de turistas de classe média e apenas usufruíamos um dos diversos cenários do Rio de Janeiro. Nada de mais. Um dia na Pérgula do Copacabana Palace, outro no Angu do Gomes, outro na barca para Niterói.
Quando fui pagar a conta, o garçom perguntou se eu queria que lançasse nas despesas do quarto. Sem  pestanejar, eu disse que não e abri a carteira. Aprendi a me comportar no universo dos bacanas. Me tornei um personagem de filme, talvez: o turista metido, o poeta da província, conferindo os mais diversos cenários. Nesse caso, um território da mitologia carioca.

domingo, 5 de abril de 2020

Isolamento social, sol e leituras


Meu filho recomendou que eu tomasse sol todas as manhãs para aumentar a dosagem de vitamina D. Em tempos de Covid-19 é importante fortalecer as defesas do organismo. A ideia é essa. E estou seguindo à risca o conselho. Fico na sacada por um tempo, tomando o sol das oito horas, escuto os pássaros, olho os morros que cercam a cidade e lembro coisas.
Hoje lembrei do sol da praia do Cassino, entre os anos 2000 e 2015, quando lá fui veranear com minha companheira. Nas últimas vezes nos hospedávamos num hotel de frente para o mar e por volta de 9 e 10 horas saíamos para a praia, com as cadeiras debaixo do braço, guarda-sol e toalhas. Atravessávamos as dunas por meio de uma ponte de madeira e logo estávamos na beira d’água.
Recordei aquele sol esquentando a pele, a areia da praia sendo ocupada pelas pessoas (acho que a maioria chegava perto do meio-dia) e as coisas que conversávamos...
Na verdade, nem lembro o que conversávamos. Em algum desses verões dividimos o romance Reparação, de Ian McEwan, e na certa falávamos do livro. Ela lia de dia (talvez até na beira da praia), eu lia quando ela largava o romance na mesa de cabeceira.
Lembrei desse sol do Cassino. E também de Castro Alves – mas não sei por onde uma coisa se juntou com a outra... Talvez por causa da descrição que o poeta faz do mar logo no início d“O navio negreiro”:

‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...

Quem leu e ouviu Castro Alves na adolescência, geralmente não esquece. Pelo menos aqueles que foram ginasianos nos anos 60 e participaram de sessões de Grêmio Literário na escola.
E esse interesse pelo Poeta Condoreiro (era assim que meus professores chamavam o poeta) foi reavivado semanas atrás ao ler Castro Alves: um poeta sempre jovem, de Alberto da Costa e Silva. Uma bela biografia.
Não recordava que o poeta morrera tão cedo, aos 24 anos. E não sabia muita e muita coisa que esse biógrafo narra.
A mãe do poeta morreu de tuberculose quando ele tinha 11 ou 12 anos, em 1859, e provavelmente foi ela quem o contaminou. Aos 16 anos, o poeta teve a primeira manifestação da doença.
Costa e Silva o descreve como homem de palco, um poeta político, que antes de mais nada queria ser “um bravo soldado da guerra para a libertação da humanidade”.
“O navio negreiro” foi recitado pela primeira vez em 1868, em São Paulo, e bem concretiza esse projeto. Um poeta político e de vanguarda. Em 68, o movimento abolicionista ainda não ganhara as ruas e era assunto especialmente de estudantes, nas escolas de ensino superior do Recife, Salvador, Rio e São Paulo.
Mas também um homem sensual, com magníficos poemas nessa linha. Aos 19 anos se tornou amante de Eugênia de Castro, atriz talentosa, beirando os 30 anos, e a mulher largou tudo para viver com o poeta. Ela “deixava-se adorar, encantada por ser musa e senhora”, diz o biógrafo. Eugênia reorganizou a sua vida de atriz e foi viver com o poeta (dois anos).
Castro Alves era estudante pouco aplicado aos estudos, vivia de mesada enviada pela madrasta (que o adorava) e a atriz não largou o palco. Nem outros amantes, cochichavam os amigos.
Lembrei do sol do Cassino e do poeta dos escravos nessa manhã de isolamento social. Enquanto o sol reforçava a taxa de vitamina D no meu organismo, minha lembrança flanava... E lembrei, depois, dessa pérola de Castro Alves, escrita para sua amada Eugênia, depois de uma das tantas discussões, em 1868:

A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.