Algumas coisas estão se transformando dentro de mim. Nem
sei o que é e escrevo para descobrir. Já fiz e refiz esse texto várias vezes e aqui
vai a última versão.
Minha memória está perdendo a clareza e preciso me
apressar. Algumas lembranças estão se perdendo, às vezes ganhando um jeito difuso.
Diversos quadros surgem “na parede da memória” e nem sempre doem como o
Belchior cantava em uma de suas canções. Pelo contrário, até dão alegria. Algumas
lembranças afloram estranhas e embrulhadas em clima de sonho. Quase um conto mitológico.
Por exemplo, uma lembrança a respeito do Canal São Gonçalo (aquele canal que
liga a Lagoa dos Patos a Lagoa Mirim e que muitas vezes chamamos de rio). Na
primeira metade dos anos 60 ele deu de transbordar e invadir as margens da
cidade de Pelotas (onde eu morava). Acho que poucas pessoas moravam na beira do
rio, mas algumas casas foram alagadas. Eu residia a dez quadras do canal (mais
ou menos) e lembro disso. Eu tinha menos de dez anos de idade.
Era agosto e chovia. Era agosto, a chuva dava uma
trégua e fazia um dia cinzento. As pessoas vinham da beira do rio e paravam na
frente de casa para contar para o pai e a mãe o que estava acontecendo com o canal. Pelo jeito dos adultos, era coisa grave. Mas eu não me assustava.
Meu irmão sim. Acho que ele chorava. Minha mãe o abraçava e consolava.
Um dia o pai falou que depois da tempestade sempre vem
a bonança. Não sei quando ele disse isso. Acho que foi num daqueles dias
cinzentos, depois de muita chuva e trovoada. Ele colocou a 6ª Sinfonia de Beethoven
na eletrola e eu ouvia (ouço até hoje) com atenção. O quinto movimento representa a
tempestade e no sexto tudo muda de repente: a bonança. “O hino de ação de graça dos
camponeses” (nome dado por Beethoven ao sexto movimento). Uma felicidade só.
É isso que eu lembro. As águas do São Gonçalo transbordam, invadem a cidade e até a minha casa fica submersa. Mas isso não atrapalha a
vida. Pelo contrário, nós voltamos a nossa condição primeira, primitiva e
arcaica, de seres aquáticos ou algo assim, e tudo corre bem.
Vá entender porque eu recordo as coisas desse jeito. Realidade
misturada com fantasia, com sonho. Parece um conto mitológico. Lembro assim essa enchente. Minha
memória dá piruetas e desenha as cenas da infância desse jeito.
Faz sentido e deixo dessa maneira. Sinto uma satisfação
danada e me dou conta que é isso que tenho procurado. Pouco tempo atrás viajei
a Pelotas, fui ao Cassino, e era isso que estava buscando: essa sensação de
viver num mundo submerso, aquático, dentro da minha casa, com meus pais. Essa lembrança primitiva Minha mãe
consolando meu irmão, meu pai colocando um disco na vitrola, e do outro lado da
janela esse clima de horror – a enchente do São Gonçalo - incapaz de me perturbar.
Minha memória não é mais confiável. Ela está me
pregando peças. Mas deixo estar. Alguma coisa está acontecendo dentro de mim e sinto que há algo de verdadeiro nessas lembranças embrulhadas em lenda.
Depois da tempestade vem a bonança. Quando parava
de chover, eu saia para a calçada com meus dois irmãos e colocávamos barquinhos de
papel na água da sarjeta, que corria feito correnteza de rio.
Já refiz esse texto várias vezes e não vou
reescrever mais. Vou deixar assim.
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