domingo, 5 de abril de 2020

Isolamento social, sol e leituras


Meu filho recomendou que eu tomasse sol todas as manhãs para aumentar a dosagem de vitamina D. Em tempos de Covid-19 é importante fortalecer as defesas do organismo. A ideia é essa. E estou seguindo à risca o conselho. Fico na sacada por um tempo, tomando o sol das oito horas, escuto os pássaros, olho os morros que cercam a cidade e lembro coisas.
Hoje lembrei do sol da praia do Cassino, entre os anos 2000 e 2015, quando lá fui veranear com minha companheira. Nas últimas vezes nos hospedávamos num hotel de frente para o mar e por volta de 9 e 10 horas saíamos para a praia, com as cadeiras debaixo do braço, guarda-sol e toalhas. Atravessávamos as dunas por meio de uma ponte de madeira e logo estávamos na beira d’água.
Recordei aquele sol esquentando a pele, a areia da praia sendo ocupada pelas pessoas (acho que a maioria chegava perto do meio-dia) e as coisas que conversávamos...
Na verdade, nem lembro o que conversávamos. Em algum desses verões dividimos o romance Reparação, de Ian McEwan, e na certa falávamos do livro. Ela lia de dia (talvez até na beira da praia), eu lia quando ela largava o romance na mesa de cabeceira.
Lembrei desse sol do Cassino. E também de Castro Alves – mas não sei por onde uma coisa se juntou com a outra... Talvez por causa da descrição que o poeta faz do mar logo no início d“O navio negreiro”:

‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...

Quem leu e ouviu Castro Alves na adolescência, geralmente não esquece. Pelo menos aqueles que foram ginasianos nos anos 60 e participaram de sessões de Grêmio Literário na escola.
E esse interesse pelo Poeta Condoreiro (era assim que meus professores chamavam o poeta) foi reavivado semanas atrás ao ler Castro Alves: um poeta sempre jovem, de Alberto da Costa e Silva. Uma bela biografia.
Não recordava que o poeta morrera tão cedo, aos 24 anos. E não sabia muita e muita coisa que esse biógrafo narra.
A mãe do poeta morreu de tuberculose quando ele tinha 11 ou 12 anos, em 1859, e provavelmente foi ela quem o contaminou. Aos 16 anos, o poeta teve a primeira manifestação da doença.
Costa e Silva o descreve como homem de palco, um poeta político, que antes de mais nada queria ser “um bravo soldado da guerra para a libertação da humanidade”.
“O navio negreiro” foi recitado pela primeira vez em 1868, em São Paulo, e bem concretiza esse projeto. Um poeta político e de vanguarda. Em 68, o movimento abolicionista ainda não ganhara as ruas e era assunto especialmente de estudantes, nas escolas de ensino superior do Recife, Salvador, Rio e São Paulo.
Mas também um homem sensual, com magníficos poemas nessa linha. Aos 19 anos se tornou amante de Eugênia de Castro, atriz talentosa, beirando os 30 anos, e a mulher largou tudo para viver com o poeta. Ela “deixava-se adorar, encantada por ser musa e senhora”, diz o biógrafo. Eugênia reorganizou a sua vida de atriz e foi viver com o poeta (dois anos).
Castro Alves era estudante pouco aplicado aos estudos, vivia de mesada enviada pela madrasta (que o adorava) e a atriz não largou o palco. Nem outros amantes, cochichavam os amigos.
Lembrei do sol do Cassino e do poeta dos escravos nessa manhã de isolamento social. Enquanto o sol reforçava a taxa de vitamina D no meu organismo, minha lembrança flanava... E lembrei, depois, dessa pérola de Castro Alves, escrita para sua amada Eugênia, depois de uma das tantas discussões, em 1868:

A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.

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