quinta-feira, 23 de abril de 2020

Histórias de família (2)

Geralmente os descendentes de imigrantes italianos, esses que vieram durante o período imperial e o início da República, com uma mão na frente e outra atrás, são muito orgulhosos da sua origem. Eu não fujo à regra.
O pai contava que a vó lia revistas em italiano (possivelmente as que eram produzidas no Brasil antes da política de nacionalização de Vargas) e as guardava debaixo do colchão. Ela gostava muito de canto lírico, acompanhava a vida das cantoras de ópera, a trajetória das grandes companhias – mas não lia em português.
– Só foi alfabetizada em italiano – o pai explicava.
– Chegou no Brasil mocinha – me disse uma tia. – Já tinha frequentado a escola e não iria assistir aula novamente.
Mas fiquei com a impressão de que, na verdade, ela nunca quis aprofundar o seu conhecimento da língua portuguesa. Falava a língua que se falava no Brasil e pronto. Leitura era outra coisa. Pra isso existia o italiano.
Quando Vargas implantou o Estado Novo, a política de nacionalização e, especialmente, quando declarou guerra ao Eixo, em 1942, ela passou a esconder as revistas debaixo do colchão e não se tocava no assunto. A edição de jornais e revistas em italiano, em São Paulo, Caxias, Porto Alegre, foram proibidas e não pegava bem andar com esse material. O sujeito encontrado com revistas em italiano poderia ser considerado um quinta-coluna e ter de dar explicações ao delegado.
Em alguns lugares, italianos e descendentes foram presos porque falavam ou cantavam em italiano – muitas vezes em dialeto, no caso das colônias do Rio Grande do Sul. O vô e a vó, nessa época (do Estado Novo, da Segunda Guerra Mundial), moravam em Pelotas e não sei de italianos ou descendentes que tenham sido presos na cidade.
Mas em agosto de 1942 (em resposta aos afundamentos de navios brasileiros por submarinos alemães na costa do Nordeste) ocorreram depredações de lojas, hotéis e residências de italianos e alemães em várias cidades brasileiras – inclusive em Pelotas. Meu pai nunca falou nisso. Nem nenhum dos meus tios ou tias tocou no assunto – e isso que eles eram catorze (meu pai era o caçula, o décimo quarto). Mas deve ter sido um acontecimento que marcou todos eles.
Pelo que o pai contava, a vó nunca mais tirou as revistas debaixo do colchão. Aquilo era um tesouro, o mundo que a fazia sonhar (suposição minha). E um tesouro (o mundo operístico) que o pai me ajudou a apreciar.
Quando lembro dele escutando La Traviata ao lado da eletrola, os olhos marejados, acho que não era só a música de Verdi que o emocionava. Era a lembrança da mãe (minha vó).
– Ela gostava muito – ele me disse certa vez, quando me pegou escutando um disco com trechos de Aída. Um disco de uma coleção de banca de revista que ainda guardo em algum lugar.
No ano passado, quando assisti La Traviata em Roma (no Salone Margherita), lembrei disso tudo. Era um teatro de poltronas vermelhas, próximo a Piazza di Spagna, com cantores e músicos muito bons. Uma produção que seguia o padrão tradicional: os cantores-atores com roupas de época e nenhuma modernização de cenário ou em outra coisa. Espetáculo pra turista não botar defeito.

Salone Margherita. Roma, outubro de 2019.

Interior do Salone Margherita.
Lembrei o pai, a mãe e também a vó materna que não conheci. Os três adorariam estar ali. Estranhamente, o vô não fez parte dessa memória.
– Era um homem duro – a mãe disse várias vezes. O pai nunca se referia a ele quando falávamos sobre o interesse da vó por cantoras líricas e espetáculos operísticos (que ela só conhecia do rádio e das revistas, provavelmente).
Quando o espetáculo terminou, sai caminhando pelo centro histórico de Roma e fui dando voltas até a Fontana di Trevi. As ruas praticamente vazias naquela hora da noite.
Descendentes de imigrantes italianos geralmente são assim: sentem-se orgulhosos da sua origem. E acham, mesmo que seus avós tenham vindo com uma mão na frente e outra atrás, que têm alguma coisa com o grande mundo italiano, sua história, sua arte e sua música.
Um tesouro que guardamos com carinho – alguns de nós, escondendo debaixo do colchão; outros, escancarando de modo desavergonhado e fazendo crônicas a respeito.

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