quarta-feira, 29 de abril de 2020

Histórias de família (7)

Quando seu Vittorio desceu para o Sul, não sei se veio sozinho e depois trouxe a família ou se já desceu com mulher e filhos. Seja como for, isso deve ter ocorrido por volta de 1920. A maioria dos catorze filhos nasceu em São Paulo, mas o caçula - meu pai (Rubens), na cidade de Rio Grande, em 1924.
O vô morou nas cidades de Rio Grande, Santa Maria, Rio Grande novamente e depois Pelotas. Acredito que a ordem seja essa. Ele era funcionário da Viação Férrea desde que chegou ao Rio Grande do Sul e tornou-se engenheiro prático. Ou já ingressou na Ferrovia como engenheiro prático, não sei
Essa categoria profissional desapareceu dos quadros da Viação Férrea na década de 1940, quando passaram a predominar os engenheiros com diploma de curso superior. Meu pai se orgulhava dessa trajetória do Velho. O ensino superior era um privilégio das classes ricas e o Velho conseguiu a categoria de engenheiro sem cursar faculdade.
Meu pai foi o único dos irmãos a adquirir diploma de curso superior. Da Faculdade de Ciências Econômicas de Pelotas, que funcionava no Ginásio Gonzaga. Diploma de Perito Contador.
Várias vezes, em encontros familiares, ouvi os tios e tias se referirem jocosamente ao meu pai com “privilegiado”. O único com formação escolar completa. O caçula. Aquele que pode aproveitar o sucesso financeiro obtido pelo Velho no final da vida. Os outros só teriam feito o Primário, um ou outro concluído o Ginásio. O pai parece que se constrangia disso. De ter tido oportunidades que os irmãos não tiveram.
Mas isso são lembranças antigas. Meu pai morreu em 1978, com 53 anos. Eu tinha 22 anos e, quando conversávamos sobre a vida em geral, o meu entendimento do mundo era muito limitado.
Em maio de 78, quando ele faleceu, eu era professor de História recém formado e estava começando a trabalhar numa escola estadual em Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre. Até então nunca trabalhara regularmente. Vivia de mesada. Fazia trabalhos eventuais e não era fácil me manter desse jeito.
Afinal, na perspectiva de um imigrante e de seus descendentes, o trabalho é uma categoria fundamental, definidora. Quem não trabalha não come.
– Eu não sustento vagabundo – o pai nos dizia, dirigindo-se aos seus três filhos.
Quando fiz vestibular para o Curso de História – que ele não aprovava, queria que eu cursasse Direito – ele avisou:
– Se não entrares na Universidade, vais trabalhar.
Eu tinha 18 anos e estava mais do que na hora de encarar o batente (termo que ele gostava de empregar). O tipo de atividade que me esperava era o cartório, o comércio, talvez o banco. Nada que me interessava. Me empenhei ao máximo para ser classificado e obtive uma pontuação boa no vestibular da UFRGS. Me disseram que pela soma dos meus pontos eu poderia ter ingressado na Medicina, na Engenharia ou no Direito. 
Quando ele soube disso (que eu poderia ingressado no Curso de Direito) lascou um comentário cortante:
- Desperdiçaste uma chance.
Durante muito tempo, tive a impressão de que ele tolerava a minha vagabundagem, isto é, a minha condição de simples estudante, sem nenhuma atividade profissional. Eu estudava e fazia poemas. Publicava poemas em jornal (no Bric a Brac da Vida, do Correio do Povo), ganhava prêmios literários.
Um dia, fui substituir a secretária dele (que entrara em férias) na sala em que ele trabalhava no SulBrasileiro (hoje prédio do Santander, na esquina da Rua Sete de Setembro com Rua General Câmara) e encontrei de baixo do tampo de vidro da sua mesa os meus poemas publicados.
Acho que ele se orgulhava do filho metido a literato, vagabundo, arisco em relação ao trabalho, enfiado no movimento estudantil universitário, mas que gostava de livros, cinema e música erudita. A tal da cultura - que ele prezava tanto.
Juntos reviramos várias vezes a trajetória do seu Vittorio e procuramos compreender a sua travessia: Itália – São Paulo – Rio Grande do Sul. Adria, fazenda de café paulista, Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Uma família de inúmeros filhos. Surras homéricas para endireitar os rebentos. Surras que faziam parte da pedagogia do seu Biasoli.
Meu pai, a muito custo – e muita conversa da minha mãe –, largou de mão essa pedagogia. Apanhei pouco. Não lembro mais. A mãe era contra.
Acho que seu Vittorio era isso: um homem duro. Foi com determinação que saiu da lavoura, tornou-se mecânico, ferroviário, fez filhos e mais filhos, e "nunca deixou que faltasse nada para a família", diziam as tias. Mas tinha de trabalhar, merecer – isso todos repetiam.

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