No final da década de 80 eu morava em Porto Alegre, no
centro. Dois filhos pequenos, minha mulher e eu professores da rede estadual e
uma vida muito apertada, isto é, com grana curta. Uma noite toca o telefone e
do outro lado da linha uma amiga (Tatiana Lenskij), pesquisadora na área da
História, conta que encontrou um Biasoli (ou Biasioli, não lembro) em um jornal
da década de 1920.
– O nome dele é Vittorio, é teu parente? – ela pergunta.
– Meu avô – eu respondo.
E ela conta o que encontrou no jornal. O Vittorio Biasoli
era chefe de seção de uma oficina mecânica, em Santa Maria, e os ferroviários
entraram em greve. O chefe da seção não aderiu ao movimento paredista e
entregou uma lista com o nome dos grevistas para a direção da empresa. O jornal
era de sindicato ou de organização política e denunciava meu avô.
– Teu avô jogava do lado da repressão – ela comenta.
Eu lembro que ele era um imigrante em ascensão, simpatizava
com Mussolini e concluo que talvez não tivesse dificuldade em se alinhar aos patrões.
Alcançara uma boa posição profissional e queria manter isso. Era o modo de
cumprir seu projeto de ascensão social, manter a família e sei-lá-mais-o-quê. Por que iria se
preocupar com ferroviários socialistas ou anarquistas?
– Meu avô era chegado ao fascismo – eu explico para a
Tatiana.
Ela e eu fomos colegas no Curso de História, na UFRGS,
e nosso primeiro exercício de pesquisa histórica foi a respeito da criação da
primeira estrada de ferro no Rio Grande do Sul. Leitura das atas da Assembleia
Provincial. As primeiras discussões a respeito da construção da ferrovia. Os deputados
discutem sobre a necessidade de favorecer o transporte de gado das estâncias da
Campanha para as charqueadas de Pelotas e logo depois o assunto sai de pauta. Provavelmente
porque os estancieiros avisaram os nobres deputados que uma estrada regular
atrapalharia o contrabando de gado com o Uruguai. Às vezes valia mais à pena negociar
com os hermanos do que com os charqueadores pelotenses.
Assim, a primeira ferrovia foi construída entre as cidades
de São Leopoldo e Porto Alegre e é a partir daí que inicia a história da
estrada de ferro no estado. E o modelo de estação ferroviária foi o mesmo utilizado nos Estados Unidos, isto é, com paredes revestidas de folhas de zinco para
resistir às flechas dos índios.
Empresas estrangeiras investiram no setor e capitalistas
belgas e norte-americanos aportaram por aqui. Em 1920 a ferrovia foi encampada
pelo poder público. Borges de Medeiros, presidente do estado, pretendia atender
a classe proprietária barateando o custo dos transportes e criou a Viação
Férrea do Rio Grande do Sul.
É nesse contexto que meu avô imigrante chegou ao Rio Grande
do Sul.
A Tatiana não me disse a data exata da greve (ou não
lembro). Mas garantiu que o caso se passara em Santa Maria. Provavelmente nas
oficinas do Km 3, nas quais as tias me garantiram que ele esteve ligado.
Tia Irani me disse, ainda, que em Santa Maria a
família morou na Vila Belga, numa casa de esquina, na Rua André Marques com a Rua
Manuel Ribas. E ela e outras irmãs estudaram na Escola de Artes e Ofícios Santa
Terezinha, escola criada pela Cooperativa dos Ferroviários para as filhas dos
seus associados.
Quando minha amiga relatou essa história, eu não conhecia
Santa Maria. Naquela noite do telefonema, fiquei na janela da sala olhando a
cidade. Morava no sétimo andar, devo ter bebido um cálice de conhaque e pensado
na trajetória do avô... Mal sabia que meses depois prestaria concurso na Universidade
Federal de Santa Maria (1989), e dois anos depois me estabeleceria na cidade.
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Vila Belga, em Santa Maria. Casa onde meu avô morou. |
Conheceria a Vila Belga – um conjunto de casas
construídas a partir de 1905, pela direção da Compagnie Auxiliaire des Chemins
de Fer, para os funcionários superiores da empresa – e fotografaria a casa em que
o vô morou. Uma casa pequena para uma família tão grande, com mais de uma
dezena de filhos, mas a tia Irani garantiu que todos moraram ali.
Um avô imigrante, um avô ferroviário – que não fechou
com os grevistas e os denunciou.
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