terça-feira, 5 de maio de 2020

Histórias de família (9)

Aos 64 anos, relembro o guri de 22 anos que eu era quando meu pai morreu e a imagem é essa mesma: a de um guri. Recém me formara em História (Licenciatura Plena) e minha mãe conseguira (por meio de um político da Arena) um contrato de 12 horas no Magistério Estadual.
Meu primeiro emprego regular. Uma escola em Alvorada (Grupo Escolar Júlio César Ribeiro de Souza). Comecei a lecionar em abril. O pai morreu no final de maio.
Nessa época (início do ano de 1978) o único irmão da mãe (tio Joaquim) foi diagnosticado com câncer, um mês depois baixou hospital e os médicos disseram que ele tinha pouco tempo de vida. Meus avós estavam hospedados conosco e a mãe não sabia como lhes dar a notícia da morte anunciada do filho primogênito.
Era verão e tudo se passou de modo muito rápido. O diagnóstico, a hospitalização, o avanço rápido da doença. Minha mãe atarantada, não sabendo como informar os pais, como conduzir a situação. Ela, a filha dedicada, sempre preocupada com o bem-estar de todos.
Enquanto isso, o pai – sempre um homem determinado, de respostas rápidas aos desafios da vida – se deprime. Minha mãe se divide entre o irmão, os pais, o marido – e não sabe para onde se virar primeiro. Angustiada, ela às vezes desabafava comigo. Deu prioridade ao irmão e aos pais.
– Teu pai teve uma crise semelhante – ela me disse meses depois. – Aconteceu depois que nasceste.
O tio faleceu na metade de maio, o pai se suicidou no final do mês.
Meses depois um dos irmãos do pai (tio Henrique) morreu e minha mãe e eu fomos ao velório. De noite. No mesmo cemitério onde o tio Joaquim e o pai foram velados e enterrados. Uma noite de inverno. A meia-noite um carro de funerária estacionou na frente da capela onde se dava o velório e o corpo do tio Henrique foi transportado. Ele iria ser conduzido a Santa Maria, onde passara a vida inteira.
A mãe e eu acompanhamos a operação de embarque do corpo. Logo depois pegamos um táxi e voltamos para casa. Do Cemitério João XXIII, na Azenha, para a Rua Sete de Abril, no Bairro Floresta. As ruas vazias, o táxi atravessando a cidade, atravessando o mundo, e nós dois quietos. Parecia que deslizávamos por um território que não era real. De repente ela se vira para mim e diz:
– Não aguento mais – e aperta minha mão.
Quando chegamos em casa, ela preparou um chá e ficamos conversando na copa. Apesar de falarmos, lembro mesmo é do silêncio. Nossa conversa não era animada. Meus dois irmãos haviam casado e só ela e eu vivíamos no apartamento onde vivemos nós cinco.
A mãe, uma mulher decidida, forte, com escrúpulos exacerbados, superprotetora em relação aos filhos, vibrante em relação a vida – figura marcante na minha vida – estava cansada. Os seus pais haviam voltado para Pelotas e parte do seu coração estava com eles, longe.
Ela bebia o chá, falava coisas a respeito da minha vida e senti seu manto protetor se fechar em torno de mim. Temi. Não tinha namorada, era um professor em início de carreira, com um livro de poemas na gaveta esperando publicação e temi. Nem sei explicar esse temor. Mas no início do ano seguinte saí de casa.
Seja como for, era um guri. Com uma visão romântica da vida. Uma recusa da modernidade capitalista e o entendimento das coisas que misturava devaneios ripongas com esquerdismo estudantil. Nem sei explicar. Nem sei como meu pai e eu conversávamos.
Na virada de 77 para 78, bebendo vinho com ele na mesa da copa (nunca usamos a expressão “sala de jantar”), ele falou na possibilidade de me presentear com um carro. Tinha esperanças quanto aos negócios em que se metera – a compra de dois caminhões em sociedade, o investimento numa pedreira – e me perguntou o que eu queria.
Então divagamos. Contei que gostaria de cruzar aquele trecho do litoral norte, entre o farol de Mostardas e São José do Norte, e um jeep seria bom. Muito bom também para ir para Fortaleza dos Aparados da Serra.
Talvez tenha sido uma das últimas conversas antes do vendaval que nos abateu: a doença do tio Joaquim, a depressão e suicídio do pai. 

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