Histórias de família se perdem. Muitas vezes se
desorganizam, se embaralham e vão para o ralo. Minha mãe e eu gastamos horas revirando
pequenos episódios familiares e tentando ordená-los. O resultado é cheio de
lacunas e imprecisões, mas é o que tenho.
Vô Vittorio cruzou o Atlântico no final do século XIX
e até sabemos o ano. Da vó Santa, porém, ignoramos tudo. Deve ter emigrado da
Itália na mesma época, chegado na mesma fazenda paulista onde trabalhava o avô
e pronto.
– Sair de um país para o outro, ir de um continente
para outro – vô Lêdinha ponderava – deve ser muito difícil. – Eu sofri muito
quando deixei Pelotas, deixei meus pais e vim morar em Porto Alegre.
E disso eu sou capaz de lembrar. Era menino de 11 anos
e ainda vejo a mãe sentada na beira da minha cama, ou na cama de algum dos meus
dois irmãos, explicando que iriamos nos mudar para a Porto Alegre, que a nossa
vida seria melhor, mas que ela sentia muito. Chorosa, ela explicava que não era
para nós nos preocuparmos, que essa tristeza era uma coisa dela. Ela sentia
muito deixar de viver próximos aos pais (morávamos no mesmo quarteirão), mas
isso ia passar.
O pai, por sua vez, andava garboso pela casa, tomando
as decisões da mudança. A mãe não continha o choro e se debulhava em lágrimas pela
rua – a ponto de dar origem a um boato curioso.
– O Rubens está traindo a Lêda – passaram a dizer na
cidade. – Por isso as lágrimas.
– Lágrimas copiosas – me disse a tia Evany, rindo,
anos mais tarde. Tia do lado materno, esposa do tio Joaquim (o único irmão da
mãe).
Tia Evany foi ao Rio de Janeiro, visitou alguns
parentes e lhe falaram do caso: a traição do Rubens, as lágrimas da Lêda. E então
a tia esclareceu o motivo do choro da minha mãe: deixar Pelotas, deixar os
pais, para vir morar em Porto Alegre.
Naquela época, na zona do porto em Pelotas (local da
cidade onde morávamos), um homem casado mantivera um longo relacionamento com a
cunhada, sua vizinha, e a esposa descobriu. As casas eram coladas uma na outra,
os pátios não tinham muro, se interligavam, e a mulher enganada caiu em
profunda tristeza, chorava pela rua. A história ganhou asas, viajou ao Rio de
Janeiro e a mulher traída e chorosa se transformou na minha mãe.
Ela própria me contou diversas vezes o caso. Acho que
ela sabia quem eram os personagens reais do drama.
– Pois tu vês como são as coisas – ela dizia. – Eu chorava
inconsolável, teu pai não sabia mais o que fazer, e eu virei uma mulher traída
para os parentes do Rio.
E como assunto puxa assunto, nós voltávamos para e
emigração dos Biasoli, a partida da Itália, o que eles deixaram por lá, o que
ela deixou em Pelotas... Nem de longe as duas situações se comparam – processos
migratórios completamente diferentes, o professor de História que eu era
afirmava – mas em nossas conversas havia algo em comum ligando as duas
experiências: a viagem, a travessia, a mudança de moradia e novos horizontes de
trabalho e sociabilidade surgindo.
Quando chegamos de mudança em Porto Alegre, em
fevereiro de 1967, um apartamento já estava montado (no Bairro Floresta). O pai
tinha assegurado um emprego num escritório de importação de máquinas de costura industrial
(Pfaff) e a mãe já acertara a sua transferência para uma outra escola estadual
(no Passo d'Areia).
Não houve viagem transoceânica nem passagem por uma
hospedaria de imigrantes. Dois processos migratórios diferentes, mas com algo
essencial em comum: a travessia. O lugar desconhecido. E um inventário de
perdas e ganhos.
No caso da minha mãe, a perda da cidade onde nasceu, da
proximidade com os pais. A perda de muitas amizades e rotinas e hábitos
conhecidos.
– Eu não aguentaria o que os teus avós fizeram – a mãe
comentava.
E lembrava os seus bisavôs maternos, que vieram da
Alemanha, e principalmente o avô paterno, Joaquim, que veio da Ilha da Madeira.
Muitos fios se cruzando na sua memória e imaginação. Fios difíceis de
deslindar.
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