quarta-feira, 20 de maio de 2020

Histórias de família (13)

Histórias de família se perdem. Muitas vezes se desorganizam, se embaralham e vão para o ralo. Minha mãe e eu gastamos horas revirando pequenos episódios familiares e tentando ordená-los. O resultado é cheio de lacunas e imprecisões, mas é o que tenho.
Vô Vittorio cruzou o Atlântico no final do século XIX e até sabemos o ano. Da vó Santa, porém, ignoramos tudo. Deve ter emigrado da Itália na mesma época, chegado na mesma fazenda paulista onde trabalhava o avô e pronto.
– Sair de um país para o outro, ir de um continente para outro – vô Lêdinha ponderava – deve ser muito difícil. – Eu sofri muito quando deixei Pelotas, deixei meus pais e vim morar em Porto Alegre.
E disso eu sou capaz de lembrar. Era menino de 11 anos e ainda vejo a mãe sentada na beira da minha cama, ou na cama de algum dos meus dois irmãos, explicando que iriamos nos mudar para a Porto Alegre, que a nossa vida seria melhor, mas que ela sentia muito. Chorosa, ela explicava que não era para nós nos preocuparmos, que essa tristeza era uma coisa dela. Ela sentia muito deixar de viver próximos aos pais (morávamos no mesmo quarteirão), mas isso ia passar.
O pai, por sua vez, andava garboso pela casa, tomando as decisões da mudança. A mãe não continha o choro e se debulhava em lágrimas pela rua – a ponto de dar origem a um boato curioso.
– O Rubens está traindo a Lêda – passaram a dizer na cidade. – Por isso as lágrimas.
– Lágrimas copiosas – me disse a tia Evany, rindo, anos mais tarde. Tia do lado materno, esposa do tio Joaquim (o único irmão da mãe).
Tia Evany foi ao Rio de Janeiro, visitou alguns parentes e lhe falaram do caso: a traição do Rubens, as lágrimas da Lêda. E então a tia esclareceu o motivo do choro da minha mãe: deixar Pelotas, deixar os pais, para vir morar em Porto Alegre.
Naquela época, na zona do porto em Pelotas (local da cidade onde morávamos), um homem casado mantivera um longo relacionamento com a cunhada, sua vizinha, e a esposa descobriu. As casas eram coladas uma na outra, os pátios não tinham muro, se interligavam, e a mulher enganada caiu em profunda tristeza, chorava pela rua. A história ganhou asas, viajou ao Rio de Janeiro e a mulher traída e chorosa se transformou na minha mãe.
Ela própria me contou diversas vezes o caso. Acho que ela sabia quem eram os personagens reais do drama.
– Pois tu vês como são as coisas – ela dizia. – Eu chorava inconsolável, teu pai não sabia mais o que fazer, e eu virei uma mulher traída para os parentes do Rio.
E como assunto puxa assunto, nós voltávamos para e emigração dos Biasoli, a partida da Itália, o que eles deixaram por lá, o que ela deixou em Pelotas... Nem de longe as duas situações se comparam – processos migratórios completamente diferentes, o professor de História que eu era afirmava – mas em nossas conversas havia algo em comum ligando as duas experiências: a viagem, a travessia, a mudança de moradia e novos horizontes de trabalho e sociabilidade surgindo.
Quando chegamos de mudança em Porto Alegre, em fevereiro de 1967, um apartamento já estava montado (no Bairro Floresta). O pai tinha assegurado um emprego num escritório de importação de máquinas de costura industrial (Pfaff) e a mãe já acertara a sua transferência para uma outra escola estadual (no Passo d'Areia).
Não houve viagem transoceânica nem passagem por uma hospedaria de imigrantes. Dois processos migratórios diferentes, mas com algo essencial em comum: a travessia. O lugar desconhecido. E um inventário de perdas e ganhos.
No caso da minha mãe, a perda da cidade onde nasceu, da proximidade com os pais. A perda de muitas amizades e rotinas e hábitos conhecidos.
– Eu não aguentaria o que os teus avós fizeram – a mãe comentava.
E lembrava os seus bisavôs maternos, que vieram da Alemanha, e principalmente o avô paterno, Joaquim, que veio da Ilha da Madeira. Muitos fios se cruzando na sua memória e imaginação. Fios difíceis de deslindar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário