Meu pai foi um leitor de literatura de ficção e cedo
descobriu que eu era interessado no assunto. Por meio dele descobri autores
como Balzac, Maupassant, Gogol e Conrad. E também Júlio Verne e Mika Waltari.
Dos seus livros, guardo muito poucos. Um deles, O
Aventureiro, de Mika Waltari (Editora Brasileira, 1956, 450 páginas), que li
na semana passada. Um autor finlandês muito famoso nas décadas de 1940 e 50 (e
até hoje editado no Brasil). No caso, uma narrativa ambientada no século XVI,
com o herói (um jovem finlandês) indo estudar na Universidade de Paris,
viajando pela Alemanha (tomando contato com Thomas Müntzer) e se envolvendo nas
guerras entre o Imperador do Sacro Império e o Papa, no território italiano.
Lá pelas tantas, o herói descobre umas cartas que
revelam um complô do Papa contra o Imperador e conclui que pode intervir na
disputa entre os poderosos. Consegue uma entrevista com o Imperador e fica
sabendo que nada do que ele conta é novidade. O Imperador está por dentro da
falsidade de seu adversário e ele, o herói da narrativa, não passa de um
soldadinho das tropas de um condottiere.
Em diversos momentos, ao ler o romance, era como se eu
conhecesse a história. Caminhando pelas ruas de Pelotas, na infância, escutei o
pai falar sobre casos semelhantes (talvez essa história mesma do romance de
Waltari). Almoçando num restaurante no entorno do Lago Negro, em Gramado, conversamos
sobre histórias de Papas e guerras contra o Sacro Império. Percorrendo as
prateleiras da antiga Livraria do Globo, na Rua da Praia, em Porto Alegre,
buscamos livros que esclarecessem a respeito dos conflitos entre Roma, Florença
e Milão, nos séculos XV e XVI.
Quando fui conhecer o auditório do Banco da Província,
em Porto Alegre, e passei a mão no mármore frio e esplendoroso (vindo de Carrara,
na Itália), que decora o ambiente, era o mundo grandioso da Roma dos Papas e de
Michelangelo que eu buscava. Sentir a cor e a textura da mesma pedra que o
artista renascentista usara nas suas esculturas de figuras bíblicas: o Moisés
(para o túmulo do Papa Júlio II), a Virgem Maria (na Pietà).
Diante do conjunto escultórico Moisés, na
igreja San Pietro in Vincoli, em Roma, foram esses fios que juntei e que reúno até
hoje. Fios que passam pela infância e juventude e que me conectam às histórias
do pai, seus desejos e ambições, que me ligam à teia familiar de matriz
imigrante e me aproximam de grandes histórias. Fios (ou correntes) constituídos
por livros e filmes, conversas animadas, caminhadas e almoços.
Calado, em silêncio – atento às figuras do conjunto escultórico
de Michelangelo –, foi isso que vivi na igreja de San Pietro in Vincoli: encontrar a minha
perplexidade de adolescente diante do mundo. Perplexidade que ainda acompanha o
homem velho que me tornei. A perplexidade e a grandeza de estar vivo, mesmo reconhecendo minha insignificância diante do mundo - dos Papas e de suas guerras com o Imperador do Sacro Império (para utilizar a trama romanesca de Mika Waltari).
Túmulo de Júlio II, na igreja de San Pietro in Vincoli. |
Meu pai era um leitor de literatura de ficção, de
romances capa-e-espada inclusive. Um pouco desse gosto eu herdei. E, como ele,
muitas vezes me sinto um reles soldadinho das tropas de um condottiere à serviço do
Imperador. Uma existência insignificante, mas que amplifico com os
artifícios da literatura.
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