Na penteadeira da minha mãe, na primeira gaveta à
direita, havia uma pequena caixa da Joalheria Silva, do tempo em que ela vivia
em Pelotas. Uma caixinha preta, de papelão, com menos de 10 cm de diâmetro. Nos
últimos tempos, já estava se desmanchando e a mãe não se desfazia.
Fecho os olhos e vejo a cena: a mãe e eu estamos na
sala (na Rua Portugal) e ela diz para eu buscar uma tesourinha na penteadeira. Eu
sei o lugar. Vou até o quarto, abro a gaveta indicada, dividida em quatro repartições, tudo muito organizado, encontro a tesoura e
vejo a tal caixinha. Volto à sala e pergunto:
– Mãe, aquela caixinha preta, por que tu guardas? Tá muito
velha.
Os olhos da mãe ficam marejados, percebo a emoção e trato
de mudar de assunto.
Tenho a impressão de que nunca deixei ela contar a
história completa dessa embalagem. Mas sempre soube que era um objeto de
significado especial. Provavelmente referente a joalheria onde ela e o pai, no
final da década de 40, escolheram e compraram as alianças. Ela e toda a sua
geração de jovens professoras, formadas pela Escola Complementar Assis Brasil.
Escola Complementar e não Escola Normal, fique bem
claro. Um dia tive o azar de dizer que ela fora uma “normalista” e fui prontamente
corrigido.
– Nunca fui normalista. A Escola Normal foi criada depois. Quando me formei, isso não existia. Me formei na Escola
Complementar.[i]
Corta e volta para os anos 70, no apartamento da Rua
Sete de Abril. O pai entra em casa num final de manhã, com um pequeno pacote, e
me diz:
– Presente pra tua mãe. Guarda no fundo da minha gaveta,
na mesinha de cabeceira, antes que ela veja.
Eu guardo e um dia ele me explica que vinha caminhando
pela Rua da Praia, encontra um amigo que lhe deve por um serviço prestado (um balancete), o
homem diz que está disposto a pagar e o pai aponta a Joalheria Masson logo adiante.
– Podes comprar uma joia para minha mulher – o pai
diz.
Eles entram na joalheira e o pagamento é feito dessa
forma: um broche, um anel ou qualquer coisa vistosa e bonita para
encantar os olhos de uma mulher.
Essa história é verdadeira? A minha memória está me
pregando uma peça? Não sei.
Corta para uma outra cena, em junho de 1978, logo após
o suicídio do pai. Meu primo (Joaquim Luís) junto com meu irmão mais velho (Rubinho) reviram as gavetas da pequena cômoda-escrivaninha onde ele guardava documentos.
O Joaquim Luís encontra umas notas relativas à compra de joias, estende ao meu
irmão e pergunta se ele as identifica.
Rubinho, minuciosamente (e um pouco a contragosto),
examina uma por uma e diz que foram presentes para a mãe.
O Joaquim Luís sorri e diz que o Velho está limpeza. Ninguém
sabe porque o pai se matou. Meu primo chega a supor história com amante, eu observo de longe, acompanho o exame da papelada e não consigo me envolver.
Eles não encontram coisa alguma que comprometa o pai. Nenhum
sinal de amante, negócio escuso, dinheiro sem procedência legal, essas coisas.
Anos depois, escuto minha mãe falar a respeito de cada
uma das joias que ela ganhou e sinto não ter prestado a devido atenção. Eu gostava
de um broche de ouro, com algumas pedras preciosas incrustadas (diamantes?). Gostava de um
pedantife de ouro, com a imagem de Nossa Senhora, que um assaltante arrancou do seu
pescoço no centro
de Porto Alegre, por volta de 1980.
Nunca soube o que aquela caixinha da Joalheria Silva
guardava e até hoje me pego vasculhando na memória o que ela me disse quando eu
perguntei...
Não sei. Era uma história de Pelotas, de juventude,
dela e do pai, e só lembro seus olhos lacrimenjantes, e ela me olhando, calada.
[i] Em
1940, a Escola Complementar de Pelotas (fundada em 1929) passou a se chamar
Escola Complementar Assis Brasil: em 1943, Escola Normal Assis Brasil.
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