Se eu tivesse que escolher um lugar como cenário privilegiado da minha infância, elegeria um cais abandonado nas margens do Canal São Gonçalo, em Pelotas, não muito distante do porto. Ou melhor, um local que era abandonado na década de 1960, quando eu frequentava com o pai, o avô materno e o irmão mais velho, para manhãs de pescarias.
Jogávamos as chumbadas no canal (que chamávamos de
rio) e de lá retirávamos irrequietos bagres e outros peixes que não recordo o
nome. Os bagres tinham esporões terríveis junto a cabeça que exigiam muito
habilidade do pescador para livrá-los do anzol. Habilidade que eu aprendia
lentamente.
Visitei o local em outubro (enquanto participava da
Feira do Livro da cidade) e me surpreendi com o fato de hoje ser um cais muito
frequentado. Muitas embarcações ancoradas, diversas construções ao redor, desde
residências e bares até associações culturais. Principalmente bares, me
disseram, pois tornou-se um ponto de encontros e festas até altas horas da
noite. Local perigoso também.
Alertado quanto aos riscos do “novo cais”, estive lá num final de manhã e só encontrei calmaria. Os encontros, as festas, as beberagens começam a partir do final da tarde, me falaram.
Não ia ao local desde 1966 e caminhei de uma ponta
a outra, buscando vestígios desse período. Provavelmente as mesmas pedras, os
mesmos frades de metal para as cordas dos navios, mas nada mais. Olhei para a
direita e avistei as pontes (a ferroviária e as outras duas, para automóveis e
caminhões, uma delas desativada), depois virei para o outro lado e fiquei
observando o porto.
O porto era a minha paisagem preferida. Gostava de
identificar os navios, imaginar o dia em que eu subiria num deles e sairia mundo
afora. E nessa lembrança encontrei o menino que eu fui: o guri que queria
cruzar oceanos.
Uma aventura que não realizei. Isto é, não atravessei
o Atlântico de navio. Cumpri esse percurso de avião, acompanhando na tela a
reprodução da rota da aeronave, partindo de São Paulo em direção a Lisboa,
horas e horas cruzando o mar. Depois, na margem do Tejo, caminhei pra cima e
pra baixo, lembrando do Canal São Gonçalo.
Se tivesse que escolher um local para sintetizar a infância, escolheria esse cais na margem do São Gonçalo. Abandonado na década de 1960, local de pescarias e fantasias.