domingo, 26 de fevereiro de 2012

No Santuário de Fátima

Quando fui cursar o doutorado, na USP, me hospedei num dos apartamentos do CRUSP (Centro Residencial da Universidade de São Paulo). O apartamento tinha três quartos, para três estudantes, e meus colegas eram um mestrando em História e um doutorando em Física. Com o rapaz da História eu tinha longas conversas – nós dois interessados em História da Igreja – que o estudante de Física achava muito chatas e nem se interessava em acompanhar.
Para dizer a verdade, o doutorando em Física estava noutra. Conhecera uma moça, se apaixonara, e decidira desistir do mundo acadêmico (do curso, da bolsa de estudos, do CRUSP) e ir morar com ela. Coisa que ele fez no final de março e nunca mais tivemos notícias dele.
Com meu colega da História, no entanto, estabeleci uma sólida amizade, que se mantém até hoje. O nosso dia começava cedo, preparando o café da manhã, e já naquela hora entabulávamos longas conversas sobre Teologia da Libertação, CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e a documentação encontrada no DOPS a respeito dos “religiosos subversivos”. A conversa se estendia mais de hora e tínhamos que interrompê-la, caso contrário não cumpriríamos nossas tarefas.
Um dia, meu colega me contou suas viagens ao Santuário de N.S. Aparecida e fiquei fascinado. Planejei um passeio a Aparecida do Norte, a pouco mais de uma hora da cidade de São Paulo, mas terminei não indo. Uma lástima! Até hoje não fui.
No início de fevereiro estive no Santuário de Fátima, em Portugal, e lembrei do meu amigo – que também foi a Fátima e se emocionou. Ele diz que não consegue explicar o que acontece no lugar, que a emoção é grande e sou obrigado a concordar com ele. Pesquisador do campo do sagrado (dos embates do mundo do sagrado com a política), meu amigo afirma que, no Santuário de Fátima, apenas se ajoelhou e rezou. Rezou muito.
Eu não cheguei a tanto, mas entrei no Santuário com minha mulher, os dois como turistas, dispostos apenas a conhecer o lugar, e súbito estávamos assistindo missa e visitando os túmulos dos pastores Lúcia, Jacinta e Francisco. Seguimos para as casas dos pastorzinhos (preservadas e transformadas em locais de peregrinação) e cumprimos até o fim o roteiro dos peregrinos.
Visitando o quarto onde Francisco morreu (aos onze anos de idade), me dei conta que cresci com as histórias das revelações de Fátima (inclusive aquela contra o comunismo). No quarto onde Francisco morreu, revivi meu sentimento de menino diante do sagrado e lembrei de minhas longas conversas sobre história da Igreja. Então pensei em perguntar ao meu antigo colega de CRUSP: “Qual o valor de nossas dissertações e teses diante da maravilha do sagrado?” E imaginei que, se conversássemos sobre isso andando pelas ruas da antiga aldeia dos pastores, na certa ele concordaria comigo de que pouco ou nada significam... Mas nem por isso deixaríamos de conversar horas a fio e inventar nossas dissertações e teses.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Santa Luzia

Encontrei várias imagens de Santa Luzia, nas igrejas de Portugal. Fiquei particularmente tocado por uma, na Igreja do Carmo, na cidade do Porto. Uma representação belíssima da santa: Luzia com uma expressão de entrega, Luzia com os olhos postos sobre uma bandeja, estendendo-a aos fiéis.
Li e reli a oração da santa, colocada aos pés da imagem, e talvez tenha rezado. Não sei. Não sou homem de fé, mas me comovo cada vez mais com as coisas do sagrado. E numa igreja do barroco português, do século XVIII, requintadamente luxuosa e sombria, é fácil se emocionar. Afinal, essas igrejas foram planejadas para isto: reduzir o homem a dimensão finita e predispô-lo emocionalmente ao mistério.
“Ó, Santa Luzia, luz dos meus olhos, trazei-me clareza e confiança com o sol de cada manhã.” Este é o trecho inicial da oração à santa, tal como é conhecida no Brasil. No entanto, era diferente a oração colocada aos pés da imagem de Santa Luzia, lá na Igreja do Carmo.
Diferente também a história da santa que o guia contou. Na sua versão, a moça é ameaçada de “perder a pureza” e entrega os olhos para se salvar. Na versão mais difundida, Luzia é uma romana do final do século III, em Siracusa, que enfrenta as perseguições do imperador Diocleciano. Colocada frente ao centurião, ela é acusada de ter passado a sua fortuna para os cristãos. Luzia é questionada sobre isso, não se arrepende do que fez, e, num gesto de despojamento, tira os olhos do rosto e os entrega ao militar. Ela se despoja de tudo em prol da cristandade. Na seqüência, é decapitada pelo centurião.
Devido a isso, tornou-se a protetora das doenças dos olhos, das infecções e da cegueira. Não é por nada que tenho um fraco pela santa. Afinal, desde os 21 anos, tenho periódicas inflamações na íris e me tornei freguês cativo de oftalmologistas. Nada grave, tudo contornável pela medicina – mas a exigir cuidados constantes. Por isso, não seria exagero dizer que minha vida tem sido um esforço contínuo para debelar inflamações nos olhos, evitar seqüelas graves e continuar enxergando bem.
Não seria capaz do despojamento de Luzia e talvez por isso eu não esqueça sua história. Ela foi capaz de entregar os olhos “frementes como peixes recém pescados”. Delicada, ela enfrentou o Império Romano e parece capaz de me acolher... Acolher um homem assustado, que não quer perder a visão.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

No Terreiro do Paço

Saí do metrô e entrei numa praça sem nenhuma árvore e com uma enorme estátua eqüestre no meio. Posicionei a máquina fotográfica para um registro do monumento e avistei, um pouco mais adiante, um majestoso arco triunfal. Era o imponente arco da entrada da Baixa, em Lisboa, cenário de reis, embaixadores e de outras tantas figuras importantes da rica história portuguesa. Por ali funcionou o Palácio Real durante quatro séculos e tudo transpirava imponência.
“Então é isto uma metrópole?”, disse para mim mesmo, no meio da praça – conhecida como Terreiro do Paço, entre os lisboetas. A pergunta não foi adequada (Portugal não é mais uma metrópole), mas foi isso que senti. É este o cenário de uma ex-metrópole colonial, que um dia dominou territórios na América, África e Ásia? São essas as construções grandiosas produzidas para tontear e apequenar um reles colonial que um dia aporta nas terras lusitanas?
Lembrei-me do meu avô materno, filho de imigrante português, do meu avô paterno, imigrante italiano, e me senti o Zé Povinho... Na verdade, um descendente do Zé Povinho, afinal meus bisavôs e avós imigrantes foram desses que ascenderam. Eles escaparam da sopa rala (alimentação habitual da população pobre do século XIX europeu) e engrossaram as refeições com legumes e carne de gado. Senti-me o guri da América (bem alimentado) que chegou à margem do Tejo e recordei meu avô, em Pelotas, me falando das glórias portuguesas...
Era tudo isso que eu imaginava? Era, sim, mas nem por isso a surpresa foi menor. Na manhã desse dia que “descobri” o Terreiro do Paço, minha mulher e eu tínhamos feito o roteiro clássico dos turistas e visitado o bairro de Belém. A Torre de Belém estava fechada e comentamos o que minha mãe diria, quando contássemos que não entramos no interior da Torre, que ficamos na porta da famosa Torre...
Revi a mãe me ajudando a colar uma gravura de D. Manuel, o Venturoso, no meu caderno de aluno do Curso Primário (uma gravura escolar do rei que mandou construir a Torre, em 1515) e parecia que eu voltava ao Grupo Escolar da infância... A mãe, que foi professora nessa escola, ensinava os alunos a respeito das “causas e conseqüências” das navegações portuguesas.
Sim, eu estava em Lisboa, atravessava o Terreiro do Paço, olhava a Torre de Belém, e não saia de Pelotas. Agitavam-se dentro de mim camadas de memória da infância e era desse jeito que me encostava-se aos balcões das confeitarias portuguesas e pedia uma queijadinha, um pastel de Belém ou uma barriga de freira. Mordia cada um desses doces e tinha a certeza de que regressava à matriz do meu sonho, que descia até o galho mais ínfimo da minha Árvore de Jessé, isto é, da minha genealogia profana e plebéia.