sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Clubes de brancos e negros

 

As lembranças dos outros às vezes nos fazem rever a própria trajetória. Isso acontece seguido comigo. Semanas atrás uma amiga (Eliana Sturza) postou uma crônica no seu blog (Lili inventa o mundo), a respeito da sua meninice (Os bailes na vida de uma adolescente) e o gatilho da minha memória disparou.

Minha amiga escreveu a respeito da sua vida de menina na década de 1980, em São Vicente do Sul, e eu recordei minha vida de guri em Pelotas, na década de 1960. Lili (a personagem da minha amiga, projeção da sua infância) descobriu os bailes de clubes aos 13 anos e, ao mesmo tempo, a separação entre brancos e negros, cada qual com as suas entidades recreativas e associações. Brancos não frequentavam os clubes de “morenos” e estes não entravam nos clubes de brancos. Lili pensou em ir ao Clube União (de negros) e logo lhe disseram que não, pois era espaço “dos morenos”.

Na minha experiência de guri pelotense não vivi essa situação. Bailes eram realidades distantes do meu cotidiano. No Carnaval frequentava os bailes infantis dos clubes Comercial e Diamantinos (ambos, entidades de brancos de classe média e alta) e isso já era suficiente para mim. Bailes não me entusiasmavam, mas eu não desgostava dessas festas. Recordo meus pais muito contentes (vestindo roupas claras), bonitos e vibrantes, dos foliões empolgados, a banda “vigorosa nos metais” (como dizia meu avô) e, especialmente, a suntuosidade do Clube Comercial (hoje em ruínas).

Meus irmãos e eu no carnaval do Clube Comercial.

Mas gostava de ouvir as histórias de meu pai e sabia da existência de clubes exclusivamente de negros, em especial de associações carnavalescas, como a Escola de Samba General Telles (uma das mais famosas naquele tempo). A Telles encerrava o desfile das escolas de samba na Rua XV de Novembro e o modo como contagiava o público era um espetáculo à parte. Quando ela passava pela frente do Café Nacional (local onde costumávamos assistir aos desfiles, em cadeiras alugadas colocadas na calçada), havia empurra-empurra, o público se levantava das cadeiras e alguns corriam para dentro do café.

 Um espetáculo que causava risos, prazer, alegria e também apreensão e susto. Meu pai vibrava, minha mãe dizia que era selvagem, mas também gostava. Uma vez tivemos uma empregada doméstica que integrava essa escola e, naquele ano, esperamos o desfile com uma atenção redobrada. Quando a General Telles passou na frente do Café Nacional (hoje, Café Aquários), tive dificuldade em reconhece-la sambando dentro de um vestido multicolorido, um penteado alto na cabeça, com um sorriso deslumbrante. Só sei que era ela porque meus pais disseram:

– É a Valesca, olha, é ela mesma. Como ela está feliz!

Valesca trabalhava e dormia na nossa casa, tinha crises de choro, e diversas vezes minha mãe teve que consola-la em algumas madrugadas.

Lendo a crônica de minha amiga e a sua descoberta de um clube de “morenos” que não podia frequentar, lembrei que as associações recreativas negras eram uma realidade distante na minha infância. Eu mal sabia. Circulava num ambiente de brancos e via de longe as associações negras. Enxergava apenas os belos espetáculos que elas proporcionavam, como no caso da General Telles, cujo samba fazia o público pelotense dos anos 60 se assustar e vibrar de alegria e prazer.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Índios charruas

 

Na década de 1960, fui a cidade de Rio Grande com meu pai e nos hospedamos no Hotel Charrua, em frente a Praça Xavier Ferreira, a duas quadras do porto. Acho que foi para alguma festa familiar. Ao longo da viagem, ouvi alguém falar a respeito dos bravos e altivos charruas, exímios cavaleiros, e fiquei fascinado. Acho que existiam algumas gravuras desses índios enfeitando as paredes do hotel e um parente me falou a respeito.

Eu era um guri de 10 anos de idade e, mais de 50 anos depois, revivo esse fascínio lendo Uruguaiana: Terra Charrua, do historiador uruguaianense Dagoberto Clos. Pequeno livro (66 págs.) que sintetiza as características e trajetória da nação charrua no pampa, sua resistência em relação aos invasores europeus e sua dissolução enquanto grupo organizado. Décadas atrás a FUNAI deu a etnia como extinta, mas em 2007 voltou a reconhece-la e hoje calcula que existam cerca de 6 mil charruas na Argentina, Uruguai e Brasil. Uma história difícil de contar.

O primeiro contato dos europeus com charruas se deu no final do século XVI, por meio da expedição de Juan de Zarate, e o capelão registrou como suas principais características “a velocidade, a pontaria com lança e boleadeira e a coragem”. No final do século XVIII, um militar espanhol (Felix de Azara) os descreveu como “altivos, soberbos e ferozes”.

Os charruas não se submeteram ao projeto jesuítico (não aceitaram a catequese nem, muito menos, deixaram o seu estilo de vida nômade para viverem em reduções), mas assistiram fascinados a chegada dos cavalos trazidos pelos padres e cedo se tornaram exímios cavaleiros. Como resistiam ao avanço das missões jesuíticas (braço religioso do colonialismo da Espanha), foram utilizados pelos portugueses da Colônia de Sacramento em seu enfrentamento com o Império espanhol. Mais tarde, participaram do exército de Artigas e, depois deste ser derrotado, foram alvo de um projeto de extermínio do primeiro presidente do Uruguai, Frutuoso Rivera, em 1830.

Quando os luso-brasileiros chegaram na Campanha (a partir da guerra de conquista de 1801), não melhorou a sorte dos charruas. No processo de formação das estâncias não tiveram lugar especial, isto é, condições de manter seu estilo de vida, nem no Uruguai e Argentina, nem no Rio Grande do Sul. Participaram das guerras das novas nações em formação, mas pouco ganharam com isso além do prazer de pelear. Dissolveram-se enquanto nação indígena e se miscigenaram com os povos invasores.

Até das tropas farroupilhas os charruas participaram, afirma o autor, que não encontrou bibliografia a respeito da trajetória charrua a partir de então. Isto é, o livro não contempla a história dessa etnia da segunda metade do século XIX em diante e o autor encerra sua abordagem comentando os escassos registros sobre descendentes charruas em Uruguaiana. Especialmente, o autor relata suas entrevistas com indígenas que ainda vivem – como Marinildomar de Barros Costa, 64 anos, “que ainda mantém certos usos, costumes e tradições dos Charrua”.

Nada fácil historiar uma nação indígena que foi massacrada e que, mesmo assim, subsiste nos usos e costumes do homem do campo, especialmente na Campanha (em Uruguaiana, como enfatiza o autor, onde a charrua Marinildomar continua receitando plantas medicinais de uso indígena para quem a procura). Um povo nativo do pampa que se transformou numa entidade mítica, importante na nossa fabulação a respeito de um Rio Grande heroico.



[i] Artigas talvez tenha sido o único general a prometer alguma coisa aos charruas. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

O legado dos jesuítas em Uruguaiana

 

Estive em Uruguaiana no último final de semana, junto com outros escritores de Santa Maria, para sessão de autógrafos dos livros da Editora Memorabilia na Feira do Livro local. A sessão de autógrafos foi fraca e nem se comparou com a que fizemos em Santa Maria, neste ano de 2022. Mesmo assim foi bom ir até essa cidade da fronteira e conviver com os escritores locais – entre eles, o patrono da Feira, o historiador Dagoberto Clos. Uma conversa ótima, numa das alamedas da Praça Barão do Rio Branco (onde aconteceu a Feira), a respeito dos indígenas da Campanha e das ações jesuíticas na região durante os séculos XVII e XVIII.

Dagoberto Clos tem pesquisado e escrito a respeito da história local e um dos resultados é o livro A mão dos jesuítas: a herança jesuítica no Município de Uruguaiana (2012, 88 p.). Denso trabalho enfocando a atuação da Companhia de Jesus junto aos indígenas e o que restou dessa experiência histórica.

Em 1626, os jesuítas fundaram a Redução de N. Sra. dos Três Reis Magos de Japeju, na margem ocidental do Rio Uruguai (na atual Argentina), próximo à foz do Rio Ibicuí, de frente para o atual estado do Rio Grande do Sul. Anos mais tarde, em 1657, os padres criaram a Estância Santiago no lado oriental, em terras que hoje pertencem ao município de Uruguaiana. Nessa oportunidade, dois padres e vários índios atravessaram mil cabeças de gado por meio de um baixio que existe na região (hoje chamado de Passo do Aferidor) e introduziram a pecuária no sudoeste do Rio Grande do Sul.

Ignorante que sou da geografia local e das práticas campeiras, fiquei espantado com a empreitada dos padres, isto é, cruzar uma “gadaria” (termo da época) por um rio de grande largura como é o caso do Rio Uruguai. O autor acentua o número reduzido de padres nesse empreendimento (eram dois ou três por redução) e a enorme capacidade desses religiosos em coordenar os índios em atividades até então distantes do seu horizonte cultural. Os guaranis (principal grupo indígena catequisado pelos jesuítas) conheciam e praticavam a agricultura, mas só tiveram contato com a pecuária por meio dos padres. E logo se habilitaram a exercer com competência as lides de vaqueano.

A partir dessa Estância Santiago a pecuária se consolidou no sudoeste rio-grandense e, junto com ela, foram erguidas várias construções de pedra (de capelas, currais e poços de água). A pecuária missioneira se expandiu em outras estâncias e postos de pastoreio e, no final do século XVII, se formou a Estância Japeju, com 65 quilômetros quadrados e mais de 80 mil cabeças de gado, a maior das estâncias da “Nação Jesuítica” (grande parte dela nas terras do atual município de Uruguaiana).

Estância Japeju. Fonte: Wikipédia.

Em 1768 os jesuítas foram expulsos da América Espanhola (por determinação do rei) e a Estância Japeju passou para a administração militar. Em 1801 ocorreu a conquista portuguesa da região (por Borges do Canto e outros) e a área começou a ser dividida em sesmarias e entregue a militares, padres e tropeiros luso-brasileiros.

O autor identificou as ruínas das construções jesuíticas – sistemas construtivos sofisticados, com paredes de pedra, arcos e abóbadas – e quais estâncias luso-brasileiras passaram a ocupar esses locais. Uma herança que assombrou e em grande parte foi destruída (inclusive por caçadores do lendário “tesouro dos jesuítas”) ao longo dos séculos XIX e XX, mas que ainda pode ser reconstituída e até aproveitada do ponto de vista turístico.

Restou pouca coisa do legado material jesuítico, conclui o autor. Seja como for, a Estância Japeju foi um empreendimento exitoso e deitou raízes no território hoje ocupado pelo município de Uruguaiana. No entendimento do autor, é a partir dessa estância que a história local deve ser contada e não da criação do Porto de Santana pelo Governo Farroupilha, em 1838. Uma provocação boa: quando estabelecer o marco fundador de uma cidade da Campanha rio-grandense? Na ação de jesuítas espanhóis e índios guaranis ou nas forças militares farroupilhas?