terça-feira, 31 de outubro de 2017

Velha Roma Legionária

Quando criança, fui fisgado pela História de Roma: Rômulo e Remo, os irmãos salvos e amamentados pela loba; os irmãos Horácio, guerreiros implacáveis contra os campeões de Alba Longa; o general Cincinato, que não queria cargo nem fortuna, apenas servir a sua cidade. Fui pego por essas tramas heroicas, que aprendi lendo histórias em quadrinhos, assistindo filmes na matiné e ouvindo meu pai confirmá-las, dar detalhes, e me conduzir a leitura de enciclopédias.
Um tema que não tem fim, que até hoje me atrai. Um tanto porque remete ao meu imaginário juvenil, outro tanto porque constitui um dos lastros da Civilização Ocidental. A bibliografia a respeito é extensa e outro dia catei na estante Grandeza e decadência dos Romanos, de Montesquieu (Editora Paumape, 1995, 164 p.). Outras edições brasileiras traduzem o título de forma literal – Considerações sobre as causas da grandeza dos Romanos e da sua decadência – e, dessa maneira, indicam melhor o tipo de livro que é. O autor não faz um livro de História convencional, mas utiliza as histórias narradas por Tito Lívio, Políbio, Plutarco e outros como matéria-prima para as suas reflexões a respeito da dinâmica das sociedades e de seus governos. Um livro que pressupõe alguma intimidade com a vida política e militar de Roma, desde a sua fundação até “as misérias” do Império Romano do Oriente. E, aspecto curioso para um leitor contemporâneo, uma reflexão que aborda o mundo romano como se fosse semelhante à sociedade europeia do tempo do autor.



Quando publicou esse livro (1734), o barão de Montesquieu era um intelectual de 45 anos que procurava entender como “um governo livre” podia se sustentar. Para ele, a Roma Republicana era bem um modelo para isso, pois “sua constituição se mostr[ava] tal, pelo espírito do povo, a força do Senado ou a autoridade de alguns magistrados, que todo poder sempre pod[ia] ser corrigido”. Preocupado com o exercício do poder, temeroso dos excessos de autoridade e dos desequilíbrios da ordem, Montesquieu estava atento às condições de uma sociedade manter o seu rumo, alterar suas leis (quando necessário) e corrigir os costumes.
Nesse sentido, apostava na aristocracia como elemento fundamental para manutenção da ordem (os “sagazes aristocratas” com assento no Senado), reconhecia a função do povo (para aclamar ou não as autoridades, mas não muito mais do que isso) assim como o papel dos magistrados (com destaque para os censores) continuamente substituídos nos cargos. Mas, principalmente, valorizava “o espírito geral” da sociedade – no caso dos romanos, centrado na disciplina e na austeridade, e muito distante de outros povos “amolentados por riquezas e luxos”.
  Os romanos dos primeiros séculos (até o estabelecimento do Império, com Augusto) eram “apaixonados” pela guerra e não esmoreciam na formação dos seus soldados. Para exemplificar essa disciplina militar, o autor se refere por duas vezes a um episódio emblemático do mundo romano (daqueles exaltados por Tito Lívio), ocorrido na guerra contra os samnitas (no século IV a.C.). Nessa guerra, o general Mânlio Torquato proibiu os legionários de deixarem suas fileiras para combates individuais com os adversários. O filho do general, no entanto, desobedeceu a ordem (deixou as fileiras para uma luta singular) e, quando regressou vitorioso, o comandante (seu pai) mandou estrangulá-lo. Sem dó nem piedade, o general exerceu a autoridade necessária para a manutenção da “robusta” disciplina, elemento essencial da expansão territorial, da manutenção das fronteiras e da grandeza de Roma.
Como se vê, são virtudes masculinas as que estão no eixo da construção civilizatória, as quais se perderam quando a sociedade e o Estado se expandiram além da medida, isto é, dos limites da cidade-estado antiga. Nenhuma referência ao mundo feminino, a não ser como algo a ser evitado pelos homens quando no trato da guerra, da política e da administração. Vários nomes de senadores, magistrados e generais são citados (geralmente de forma elogiosa) e apenas duas mulheres: Cleópatra e Teodora. Cleópatra, que “fugiu [na batalha de Ácio] e arrastou Antônio consigo”, e a imperatriz Teodora (esposa de Justiniano), que se insinuava nos negócios do marido com as “paixões e fantasias de seu sexo”.
Reflexões que deitaram raízes no entendimento que temos do mundo romano – mesmo que a historiografia contemporânea não endosse mais as conclusões ali formuladas. Reflexões que estão entranhadas no modo como a Civilização Ocidental se construiu: exaltação dos valores guerreiros, dos costumes austeros, da obediência aos “melhores” (a aristocracia), assim como desconfiança em relação ao povo, constantemente oscilante “entre os extremos do ímpeto e os extremos da fraqueza”.
Velha Roma Legionária, na qual era passível de admiração os “generais condenar[em] à morte seus próprios filhos”, quando eles agiam sem levar em conta as ordens superiores.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Os Beatles e o comunismo internacional

Cursei o ginásio em colégio católico, no final dos anos 60. Vivia em Porto Alegre naquele tempo. Um dia, o Irmão José, nosso professor de inglês, viu meus colegas e eu com um disco dos Beatles – o “Sgt. Pepper’s” – e veio nos fazer uma preleção a respeito das “mensagens subliminares” daquelas canções. Estávamos no pátio da escola, aguardando o sino tocar para o início das aulas, e o professor nos deixou de queixo caído.

Segundo ele, os rapazes de Liverpool tinham intenções subversivas em relação aos valores da Civilização Ocidental e, do ponto de vista católico, não eram recomendáveis. O professor não iria confiscar o disco, mas era melhor recolher o material e só nos entregar no final das aulas.
Eu ganhara o disco no último Natal, presente do pai (acho que aquele long-play era o meu, não recordo direito), e não entendera aquela conversa quanto aos Beatles estarem mancomunados com o comunismo internacional e favorecerem a dissolução dos valores cristãos, em especial aqueles relativos à ordem familiar: a autoridade paterna, a castidade dos jovens e coisas assim.
Foi uma conversa que nos deixou de cabelos em pé, a nós, ginasianos que “amavam os Beatles e os Rolling Stones”, mas que não deixavam de ir à missa aos domingos. Nós nos dividíamos quanto a opinião em relação ao “Sgt. Pepper’s”, diferente de tudo quanto escutáramos dos Beatles até então, mas estávamos gostando. Ainda não usávamos a expressão “baita som”, mas devia ser mais ou menos isso que falávamos.
Lembrei disso outro dia, folheando um livro num sebo de Porto Alegre, no qual havia referência a uma publicação norte-americana, de 1964, intitulada Comunismo, hipnotismo e Os Beatles, do pastor David Nobel. Talvez o Irmão José tivesse lido o livro.
Segundo o pastor David Nobel, as canções dos rapazes de Liverpool continham “mensagens subliminares” e eles tinham sido treinados em Moscou com técnicas de hipnotismo... Se a conversa do Irmão José não era essa, era parecida: os Beatles como prováveis agentes do comunismo internacional, atuando no sentido de entorpecer a mente dos jovens e dissuadi-los do bom caminho.
Hoje, isso me parece absurdo, mas era comum naquele final dos anos 60 ver subversão e/ou intenções malévolas no campo das artes. Pais e professores costumavam divagar com essas coisas, mas a maioria de nós (os jovens) nem sempre caímos na conversa.
Coisas daqueles tempos, insisto em afirmar. Mas a atual discussão sobre o que acontece no mundo das artes – a exposição queer no Santander Cultural, a performance com nudez no Museu de Arte Moderna paulista – me indicam que provavelmente estou enganado.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Lisboa turística (2)

Li no Lisboa em Pessoa: guia turístico e literário da capital portuguesa, de João Correia Filho, que na Torre de Belém se encontra uma cabeça de rinoceronte esculpida. Ela é visível numa das salas da Torre, a Sala do Governador. É a cabeça do rinoceronte que serviu de modelo para a famosa gravura de Albert Dürer, segundo o autor. O animal foi um presente que Afonso de Albuquerque ganhou de um sultão do Oriente e que chegou a Lisboa em 1515. Um alemão que estava em Portugal viu o animal, desenhou o bicho e enviou a ilustração a um amigo de Dürer. Foi a partir disso que o artista realizou a sua gravura.


Eu conhecia outra versão, com elementos mais rocambolescos. O rinoceronte foi enviado pelo rei Dom Manuel para o papa, em Roma. O navio que levava o animal naufragou, o bicho morreu e seus restos chegaram até a praia. Dürer estava na Itália, viu a carcaça do animal e, a partir daí, recriou o bicho. Tenho lembrança de ter lido isso num livro de John dos Passos sobre as navegações portuguesas, com longas transcrições dos cronistas da época, mas não tenho certeza.[i] Só espero não estar inventando.
Dei uma olhada no Google e constatei que ao menos as informações a respeito do rei de Portugal enviar o rinoceronte ao papa, o navio naufragar e o rinoceronte morrer afogado são verdadeiras. O resto, quando ao modo como Albert Dürer tomou conhecimento do animal, há controvérsias. Seja como for, em nenhuma das versões Dürer bateu os olhos no rinoceronte vivo. Coisas que a gente não soluciona com guias turísticos, mas se diverte mesmo assim.
Quando estive na Torre de Belém, não visitei a Sala do Governador. Havia um grupo de adolescentes portugueses visitando o local, eles faziam uma bagunça enorme nas estreitas escadarias da Torre e me restringi ao terraço. Depois desci ao calabouço, que estava praticamente vazio, e fiquei por lá. São muito bonitas as aberturas para os canhões e a maravilhosa vista do Tejo. Fiquei me imaginando um vigia do tempo das caravelas...

Neste dia, quando sai da Torre, havia muitas crianças de escola, todas muito disciplinadas, esperando a hora da visitação.
Crianças, por sinal, são muito interessantes de serem observadas nesses locais – especialmente quando ficam quietinhas escutando as explicações da professora. No Museu Calouste Gulbenkian (também em Lisboa) acompanhei um conjunto de crianças bem pequenas, sentadas ao redor de uma escultura chamada “São Martinho a cavalo partilhando a capa com um mendigo”, do século XVI. Elas ouviam com atenção a professora e eu aprendi junto com elas a respeito desse bispo francês, São Martinho, e seu espírito caritativo.
João Correio Filho indica o Calouste Gulbenkan como visita obrigatória e destaca um quadro de Rembrandt (Retrato de um velho – ou Figura de velho, conforme catálogo do museu) e as jóias de René Lalique como pontos altos. O local não existia no tempo de Pessoa e só foi inaugurado no final dos anos 60. Entre o acervo, eu destacaria também a coleção de obras orientais (da Pérsia, Armênia, Índia) e o mobiliário francês do século XVIII, que me impressionaram bastante. Mas tem muito mais.[ii]
Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian.
Na primeira vez que visitei o museu, andava lendo sobre Giacomo Casanova (Eu, Casanova, confesso - romance de Flávio Braga) e fiquei admirado com a sensualidade da arte decorativa francesa (principalmente com os quadros, muito explícitos). Cenário adequado para as aventuras de Casanova, que treinava e vendia moças educadas para os nobres da corte de Luís XV, que as usufruíam durante alguns meses e depois as descartavam. Coisas da alta cultura francesa. Coisas que a gente aprende nos museus - e se diverte.


[i] O livro de John dos Passos talvez seja Portugal: três séculos de expansão e descobrimento (Ed. Íbis, 1970), um relato historiográfico e não um romance. John dos Passos era originário de família das Ilhas dos Açores e admirava as realizações lusitanas do período das Grandes Navegações.
[ii] Calouste Gulbenkian foi um magnata armênio da área petrolífera e grande colecionador de arte. Durante a Segunda Guerra refugiou-se em Portugal e, ao morrer (1955) “legou seus bens aos portugueses”, dando origem à Fundação que leva seu nome.

domingo, 8 de outubro de 2017

Lisboa turística

Estou lendo Lisboa em Pessoa, um roteiro turístico inspirado num texto de Fernando Pessoa e escrito por João Correia Filho (Editora Leya, 2011, 376 p.). Pessoa era um lisboeta entusiasmado por sua cidade e no início da década de 1920 preparou uma sugestão de passeio pela capital portuguesa: Lisboa: o que o turista deve ver. Com base nesse texto (que permaneceu inédito até a década de 1990), o jornalista e fotógrafo brasileiro João Correia Filho preparou este Lisboa em Pessoa, com diversas sugestões de roteiros para bater pernas e se encantar com o mundo lisboeta. Vai ser meu guia na próxima viagem.

Já estive em Lisboa mais de uma vez e confesso que não conheço nem um terço do que “o turista deve ver”. Uma vez jantei no Teatro São Carlos, no Chiado, e tinha a vaga noção de que Fernando Pessoa nascera numa casa das proximidades. Planejara que depois do jantar caminharia no entorno do teatro, procurando a tal casa, mas um doido tentou vender um quadro para minha mulher, ficou nos esperando na porta do restaurante, e tivemos que sair apressados. O garçom nos ajudou a despistar o pintor e fomos quase correndo em direção a Rua Almeida Garret para pegarmos um táxi. A casa do poeta ficou para outra oportunidade.
Voltei ao Chiado outras vezes, mas nunca mais fiz a caminhada em torno do Teatro São Carlos, procurando a casa de Pessoa – a qual, segundo Correia Filho, tem apenas uma pequena placa anunciando que ali nasceu o poeta. A Casa Fernando Pessoa, um centro cultural dedicado ao mestre de “Tabacaria”, fica mais adiante (no bairro Estrela) e dessa vez pretendo visitá-la (Rua Coelho da Rocha, nº. 16).
No itinerário que contempla a visita a Casa Fernando Pessoa, Correia Filho propõe uma longa caminhada, iniciando no Parque Eduardo VII (na frente do qual me hospedei na primeira vez que estive em Lisboa), passando pelo Aqueduto das Águas Livres e chegando até a Basílica Estrela. Uma caminhada e tanto que, ao menos agora, estou disposto a cumprir. No entanto me conheço, sou daqueles turistas que não seguem os roteiros à risca. Às vezes paro num parque e fico fotografando (o que pode acontecer no Parque Eduardo VII ou no Jardim Estrela, outro local do itinerário). Ou então entro numa igreja e divido meu olhar entre as imagens sacras, os frequentadores devotos e as pacientes faxineiras esfregando o chão ou tirando o pó dos altares. Os santos portugueses são belíssimos, muito expressivos, as Nossas Senhoras, encantadoras, que não há como não parar e se esquecer do mundo.

Anoitei o passeio na agenda – Parque Eduardo VII até a Casa Fernando Pessoa –, mas sei que posso me perder no caminho. Se não chegar antes da Casa Fernando Pessoa fechar as portas (às 18 horas), direi a mim mesmo os versos de um de seus famosos heterônimos (Álvaro de Campos): “Nada me prende a nada. / Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo. / [...] / [E] vivo num sonhar irrequieto” (Lisboa revisited, 1926) – e estarei perdoado, quem sabe.