terça-feira, 18 de julho de 2017

Colônia Cecília

Entre 1890 e 1894, funcionou uma colônia anarquista no município de Palmeira, no Paraná, a cem quilômetros de Curitiba. Aparentemente, era uma colônia como tantas outras, criada por emigrantes europeus, que atravessavam o Atlântico subsidiados pelo Governo brasileiro para substituir a mão-de-obra escrava ou ocupar as regiões consideradas despovoadas.
As colônias de imigrantes europeus tinham como base a propriedade privada e a organização familiar, mas essa – batizada Colônia Cecília – norteava-se por outros princípios: a propriedade coletiva e a família comunal. Uma sociedade anárquico-comunista, criada com a pretensão de desconstruir “toda forma doméstica de relações sexuais”, estabelecer o amor livre, visto que a família era considerada “o principal sustentáculo do regime capitalista” (do egoísmo e da apropriação privada de riquezas) e “incompatível com a vida socialista”.
Seguramente um caso único entre as colônias criadas no Brasil, na época da Grande Imigração Europeia. Um belo e fracassado empreendimento experimental, que durou quase quatro anos. Chegou a comportar 300 colonos, mas a debandada era constante e geral. Poucos aguentavam. A situação material era precária, a produção coletiva não dava conta do recado, as assembleias deliberativas eram constantes e, ao que tudo indica, havia necessidade de muito apego ao ideário anarquista para aguentar o rojão.
O projeto de família comunal não se concretizou e, em 1893, num relatório a respeito da vida na colônia, apenas dois casos de amor livre foram registrados – os dois devidamente apresentados e discutidos em assembleia. Um deles – entre Giovanni, Eleda e Aníbal – apresentado minuciosamente num instigante texto intitulado “Uma história de amor na Colônia Cecília”, de autoria de um dos participantes do caso, Giovanni Rossi (por sinal, o principal líder e ideólogo da colônia). Texto instigante, ao menos, para aqueles que acham (santa ingenuidade, dirão alguns) que é possível transformar as relações amorosas, consolidadas pela tradição e pelas características psicológicas dominantes de homens e mulheres.
Encontrei o texto, nesse último final de semana, bem guardado em uma das minhas estantes – bem guardado para uma leitura num dia que nem sabia qual. O texto faz parte de um conjunto de quatro opúsculos escritos por Giovanni Rossi, traduzidos e organizados por Mariza Vicentini e Miguel Sanches Neto, publicados pela Imprensa Oficial do Paraná, em 2000. Miguel Sanches Neto, por sinal, em 2005, lançou um fabuloso romance chamado “Um amor anarquista”, baseado nesse episódio.
Elucidativos e instigantes os textos de Giovanni Rossi, em especial o que enfoca a sua história amorosa com Eleda (do qual extraí os trechos colocados entre aspas apresentados nesta crônica). Giovanni narra seu caso amoroso com objetividade e o vê também como um experimento científico. Para ele, a revolução social provocaria a emancipação econômica e, obrigatoriamente, a emancipação afetiva. A colônia anárco-comunista propiciaria essa emancipação e, dessa maneira, o “problema do amor” se encaminhava para “uma solução espontânea, lógica e necessária”.
Um otimista (e talvez um simplista em relação à natureza humana), esse Giovanni Rossi, agrônomo e militante anarquista. Viveu a experiência da Colônia Cecília até 1894 (quando esta se enquadrou ao padrão normal das colônias) e depois passou a exercer carreira de agrônomo no Rio Grande do Sul (em Taquari) e Santa Catarina. Voltou para a Itália em 1907, junto com Eleda e duas filhas, e talvez tenha continuado apostando na possibilidade do socialismo democrático, do amor livre, da família comunal, e de outros delírios do gênero. Morreu em 1943, aos 86 anos de idade, e não consegui informações sobre essa fase final da sua vida.

Após publicar o comentário acima, um leitor me indicou o esclarecedor artigo de Isabelle Felice, "A verdadeira história da Colônia Cecília de Giovanni Rossi" (1998), facilmente encontrável no Google. Entre outras coisas, fica-se sabendo que no triângulo amoroso Giovanni, Eleda & Anibal havia uma quarta pessoa, o jovem Jean Géléac, pai do primeiro filho de Eleda - e que o anarquista Giovanni, após voltar a Itália, jamais comentava com os filhos o ousado empreendimento que tentara no Brasil.

sábado, 15 de julho de 2017

O ronco do búgio

No início dos anos 70, acampei diversas vezes na Praia do Tigre – uma pequena praia no atual Parque Estadual de Itapuã, na beira da Lagoa dos Patos. Naquela época, o parque não existia. Era um projeto. Na Praia Grande, apenas uma casa. Um bar. E o dono prevendo grandes oportunidades. Era o lugar onde comprávamos cachaça.
Depois da Praia Grande, entrávamos mato a dentro e caminhávamos um tempão até chegarmos à Praia do Tigre. Um lugar só acessível a mochileiros. Ou, pelo menos, era assim quando fui lá pela última vez (no verão de 1976). Deve ter mudado muito de lá para cá.
No alto dos morros de Itapuã, havia acampamentos de guarani e os índios não eram de muita conversa. Um dia nos perdemos no mato, pedimos auxílio a eles e o preço foi muito alto: todas as nossas facas e mais alguma coisa. Achamos caro demais e fomos buscar ajuda nos pescadores da Praia do Sítio – que prontamente nos levaram até o nosso acampamento. Não lembro o que cobraram em troca. Lembro que sentaram conosco, em torno do fogo, e beberam, conversaram e depois foram embora.
Como se vê, lugar de muita aventura para a garotada urbana que éramos. Às vezes os bugios faziam um barulhão danado no mato, saíamos para encontrá-los e eles fugiam. Animais ariscos, nos contaram. Os índios costumavam caçá-los. Os bugios sentiam de longe o cheiro dos humanos (índios e outros) e escapuliam.
No último final de semana, matei a vontade de ver os bugios em estado selvagem (ou próximo disso), no Parque Witeck, no município de Novo Cabrais (perto de Cachoeira do Sul). O parque é conhecido pela sua riqueza vegetal e, realmente, é magnífico. Mas os bugios roubaram a cena. Me conquistaram. Faziam uma barulheira tão grande que cheguei a pensar que fossem ruído de máquinas trabalhando. Não eram. Os bugios roncavam intensamente em cima das árvores e pude fotografá-los. Uma realização.


Eram animais habituados aos humanos. O cheiro de gente não os assustava, pois, diferente dos guarani que habitavam os morros de Itapuã, os humanos do Parque Witeck não os caçam para comer. Eles são parte da belíssima paisagem, reconstruída e ajardinada pelos proprietários. Os bugios podem roncar à vontade – para demarcar território, me explicaram – e não se importam que um fotógrafo amador prepare o zum de sua máquina para captá-los.
Levei mais de quarenta anos para fazer a foto de um bugio.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Histórias de viajantes e de peregrinos

Histórias de viagem tem me fascinado. Histórias de peregrinos também.
Outro dia, navegando na Internet, li o relato de uma viajante que achou admirável o guia turístico falar horas à fio pelas estradas da Escócia. Não entendi, porém, se a admiração era algo elogioso ou não. Afinal, um guia de viagem falando sem parar, comentando a paisagem, os costumes locais, fazendo piadas, é insuportável. Já vivi isso e não gostei. Felizmente era depois do almoço e dormi. Nem ouvi metade da chatíssima conversa, explanação e anedotário que durou entre Cáceres e Sevilha, no sul da Espanha.
Estávamos numa caminhonete de três bancos, não passávamos de oito turistas e durante o almoço combináramos que não deixaríamos o homem falar. Mas, na hora em que a viagem recomeçou, as duas argentinas que estavam no primeiro banco junto ao guia (que também era o motorista) não mantiveram o trato e deram trela ao homem. Foi uma desgraça. Minha mulher chegou zonza em Sevilha e, por intervenção dela junto à agência de viagem, dois dias depois seguimos nosso percurso pela Andaluzia com um guia mais educado, comedido nas informações e comentários.
Quanto aos peregrinos, admirei (positivamente) a criatividade de Alexandre Pires, que decidiu refazer os caminhos de São Francisco de Assis, entre as cidades de Dovadola e Assis, de skate, dois anos atrás. Um modo original de peregrinação. Claro que ele não fez todo o caminho de skate, mas, quando dava, lá estava ele em cima do seu “aparelho esportivo” deslizando pelas estradas italianas. Um percurso de quase 300 quilômetros, como ele registra no livro 18.4, o caminho: nos passos de São Francisco de Assis (Porto Alegre, BesouroBox, 2015), junto com excelentes fotos. Uma viagem com objetivos de reflexão espiritual e também de captação de recursos financeiros para fins caritativos – no caso, para a Casa de Acolhimento FASC, em Porto Alegre.
Alexandre Pires conta que viveu uma crise profunda a partir dos 35 anos, decorrente de excesso de trabalho e descuido com a vida conjugal, e que um livro sobre São Francisco o ajudou a encontrar rumos mais humanitário para sua vida. Decidiu, então, que no dia do seu aniversário de 40 anos (o 18.04 do título do livro) ele o comemoraria nas trilhas de São Francisco. Com a experiência de empresário que era, contatou jornalistas e fotógrafos, utilizou de marketing nas redes sociais e criou um projeto compartilhado com milhares de pessoas. Sua peregrinação não era para ser solitária e contou com fotos e filmagens de profissionais da área. Na primavera europeia de 2015 ele concretizou o seu projeto, dividindo-o com seus apoiadores. Segundo ele, o resultado foi a conquista de “certo equilíbrio”, além de ganhos financeiros para a Casa de Acolhimento FASC e palestras sobre o fomento turístico na região central da Itália.
Uma peregrinação original, essa de Alexandre Pires – que, segundo ele, provocou uma “transformação única” em sua vida. Não sei se a maioria dos peregrinos conseguem isso.