quinta-feira, 21 de junho de 2018

Tiro de Guerra




A foto acima é um recuerdo familiar: meu avô materno com sua turma do Tiro de Guerra, em Pelotas, no dia 15 de novembro de 1919. Na fileira dos atiradores de pé, ele é o terceiro, da direita para a esquerda. Um rapaz de estatura baixa, 22 anos, filho de imigrante português, muito bonito. Na sua turma do Tiro de Guerra ele aprendeu a manejar o fuzil Mauser (é isso que lembro ele contar), fazer “ordem unida” e se orgulhar disso. Contava que a arma pesava quase cinco quilos (mais precisamente 3,8 kg, se fosse uma Mauser Modelo 1908), muito difícil de apoiar no ombro e fazer a mira. Pelos seus comentários, imagino que teve apenas noções de tiro, mas era reservista e seria convocado pelo Exército em caso de necessidade.

Quando encontrava algum antigo companheiro do Tiro de Guerra, recordo que ele e o amigo riam, lançavam algum olhar nostálgico e sempre falavam de alguma lembrança saborosa desses tempos de “treinamento militar”. Ou, pelo menos, era isso que o neto criança imaginava. Mais tarde, já crescido e interessado em história militar, conversei com ele sobre o assunto, mas ele não contou (ou não lembro) nenhuma história específica. Falava apenas da Mauser pesada no ombro e o orgulho que sentiu pelo fato de poder ser "chamado pela Pátria” quando ela precisasse de homens para defende-la. Mas fazia esse último comentário com um riso maroto, que me fazia pensar que não acreditava muito que sua turma pudesse ter condições de defender a Pátria militarmente.

Com a foto acima nas mãos, minha mãe e eu tentamos várias vezes reconstituir as histórias do avô, mas não fomos muito longe, isto é, não fomos além de recordar a satisfação que ele revelava ao contar que se tornara “reservista do Tiro de Guerra”. Uma foto pequena do avô, com este mesmo fardamento, sem o quepe, minha mãe às vezes trazia na carteira e outras vezes deixava dentro de uma caixinha de joias da Joalheria Pinto Ferreira... Lembranças que se embaralham na minha memória, hoje em dia.

O Tiro de Guerra teve origem numa Sociedade de Tiro criada na cidade de Rio Grande e ganhou impulso após a Grande Guerra. O vô nunca deixou de se referir à 1ª Guerra Mundial como a “Grande Guerra” e parece nunca ter esquecido as notícias de barbaria daquele conflito. Em 1923 (durante a hoje chamada “Revolução de 23”) a tropas rebeldes de Zeca Netto tomaram Pelotas por um dia e esse parece ter sido o acontecimento militar que meu avô mais viveu de perto.

– O Exército convocou vocês para defender a cidade? – eu lembro de ter perguntado.

– Não, isso era coisa entre os rebeldes e o Presidente do Estado (Borges de Medeiros). O Exército nem se meteu nisso – ele deve ter explicado ao menino que eu era.

Minha mãe e eu várias vezes tentamos reconstituir a história desse avô e sempre nos faltou informação. Mas restou essa foto, a foto de um rapaz fardado e orgulhoso, que olha altivo para a câmara, que olha altivo para mim e parece perguntar se tenho alguma noção de arma de fogo para defender a Pátria em caso de necessidade.

– Certamente que não – eu digo mentalmente, imaginando que essa resposta seria motivo para mais conversa entre nós. Afinal, o rio-grandino que criou a sociedade de tiro que deu origem ao Tiro de Guerra, em Rio Grande, no início do século XX, imaginava uma sociedade de civis armados (com fuzis em casa inclusive) prontos a serem chamados para defender a Pátria, como se fossem habitantes da antiga Roma e isso – ter esse preparo militar – nunca foi coisa que tivemos.[i]



[i] Segundo o historiador militar Claudio Moreira Brito, o rio-grandino (Antônio Carlos Lopes) que criou a Sociedade de Propaganda do Tiro de Guerra, em Rio Grande (1902), organização que deu origem ao Tiro de Guerra no país inteiro, se inspirou no sistema de defesa militar da Suíça, no qual homens com formação militar tinham armas em casa e seriam chamados em caso de guerra (como era na antiga Roma antes da profissionalização do exército).

terça-feira, 19 de junho de 2018

Guerras napoleônicas: "O retorno do herói"


O retorno do herói foi um dos filmes selecionados no recente Festival Varilux de Cinema Francês. Uma comédia ambientada no período das guerras napoleônicas, na qual um elegante hussardo francês (integrante da cavalaria) pede a mão de uma jovem aristocrata e no mesmo dia é convocado para a Campanha da Áustria (1809). Ele promete escrever todos os dias para a adorável noivinha, não escreve uma única carta e desaparece. Alguns anos depois, quando regressa, descobre que a irmã da noiva escreveu cartas por ele (para salvar a irmã de terrível depressão) e que ele se tornou um herói para a família da noiva e para a cidade. Sem escrúpulo, encarna o personagem criado pelas cartas imaginárias e narra as suas peripécias heroicas para uma plateia encantada. Em resumo, passa a faturar em cima da sua fama de herói.




Um dia, porém, conta a sua verdadeira história: a de um oficial que participou de uma carga de cavalaria contra as tropas austríacas – durante a batalha de Essling, nos arredores de Viena – e assistiu durante poucos minutos mais de 300 cavalarianos do seu regimento morrerem devido ao bombardeio dos canhões inimigos. É o único momento do filme em que o tom de comédia desaparece. De forma emocionada e pausada, o personagem narra o espetáculo de horror que presenciou para uma plateia em estado de choque. Um clarão de horror numa comédia ligeira e logo o filme volta ao seu tom de humor, por sinal muito bom. Divertimento garantido, como se diz.

Não conto mais a respeito do filme para não tirar a surpresa de um possível espectador. A guerra é sempre um tema empolgante e é muito bom quando o cinema a aborda de forma humorada, indicando as diversas maneiras que os homens têm de lidar com o horror dos combates (um horror que nos constitui, que é parte integrante da nossa civilização). No caso desse filme, a saída do personagem não é nada honrosa do ponto de vista da ética militar – mas, sem dúvida, é uma alternativa muito humana. Afinal salvar a própria pele é sempre algo humano, vergonhosamente humano às vezes.

O filme, ou melhor, a cena em que o personagem narra a sua participação na batalha de Essling me lembrou um conto de Prosper Mérimée que nunca esqueci (e várias vezes citei em sala de aula): “A tomada do reduto”, escrito em 1829. Nesse conto, um oficial francês narra a sua vivência em outra das guerras napoleônicas (a Campanha da Rússia, 1812), na tomada do reduto de Chevardino, próximo a Moscou. O personagem é um oficial de infantaria, ele marcha contra os russos entrincheirados no reduto e assim narra o ataque:

Vibraram todos os fuzis. Fechei os olhos, e ouvi um espantoso fragor, seguido de gritos e gemidos. Abri os olhos, surpreso de ainda me encontrar no mundo. [...] Achava-me cercado de feridos e mortos. Meu capitão jazia estendido a meus pés, com a cabeça estraçalhada por uma bala de canhão, e eu estava coberto de seu cérebro e seu sangue. De toda a minha companhia, só restavam de pé seis homens e eu.

Algo semelhante viveu o personagem do filme O retorno do herói: ele também se viu “cercado de feridos e mortos”. Os dois, o hussardo da batalha de Essling e o infante da tomada de Chevardino, sobreviveram aos massacres que Napoleão Bonaparte protagonizou na Europa do início do século XIX, massacres fundamentais para a constituição da Civilização Européia. Os dois foram sobreviventes e testemunhos do horror napoleônico.
Um bom filme. Saí do cinema pensando que o indicaria para os meus alunos, se ainda fosse professor de História.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

A Revolução de 1932 no Rio Grande do Sul


Em 1932, as lideranças da Frente Única sul-rio-grandense romperam com Getúlio Vargas e comprometeram-se com os paulistas num movimento de rebelião ao Governo Provisório varguista. Entre esses líderes gaúchos estavam Borges de Medeiros e Flores da Cunha, do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), mais Raul Pilla e Batista Luzardo, do Partido Libertador (PL). Flores da Cunha era o interventor no estado (nomeado por Vargas) e o movimento dependia dos recursos que Flores dispunha como chefe de governo (o comando da Brigada Militar) para o sucesso militar da revolta.

Quando se aproxima a eclosão do movimento, no entanto, Flores retoma os laços de lealdade para com Vargas e deixa os companheiros na mão. As operações militares contra o Governo Provisório iniciam em São Paulo, no mês de julho, as lideranças paulistas contam com o apoio gaúcho, mas as lideranças gaúchas não conseguem se mobilizar. Borges de Medeiros e Batista Luzardo são “presos” em Porto Alegre e os focos de revolta no estado ficam contidos no nascedouro. Flores conhecia os planos dos rebeldes e traz as lideranças do movimento sob estrita vigilância.

Uma vigilância, no entanto, que não implicava em trancafiar os líderes em prisões. Luzardo vivia num hotel da Rua Andrade Neves, Borges na sua residência na Rua Duque de Caxias, e eram apenas vigiados por agentes policiais. Luzardo se disfarça de padre e burla os policiais, Borges também engambela os seus secretas durante um passeio matutino e ambos partem para o interior do Estado com o propósito de estabelecer um “foco revolucionário”.

Forma-se então a Coluna Luzardo e o propósito inicial é tomar Santa Maria (em função do papel estratégico da cidade quanto ao controle da malha ferroviária), mas o projeto não vinga e a coluna, com um efetivo de aproximadamente 200 homens, se encaminha para o sul. Enquanto isso, apenas na região de Soledade um outro foco de luta é criado (pelo general Candoca), porém logo contido.

A Coluna Luzardo marcha pela região da Campanha e no dia 19 de setembro acampa na estância de Cerro Alegre, nas proximidades de Piratini.  No outro dia, 20 de setembro, 700 homens das forças legalistas cercam os rebeldes e os levam à rendição após algumas horas de tiroteio. É o último combate da Revolução de 32 no Rio Grande do Sul. Alguns dizem que é o fim de um ciclo revolucionário que iniciou com a Revolução Farroupilha, mas isso é um exagero. Historiadores mais apegados a ideia de uma tradição revolucionária sul-rio-grandense costumam endossar essa interpretação, no entanto trata-se apenas do esgotamento das revoltas oligárquicas no estado, as quais, no que diz respeito ao quesito “revolucionário” (mudança de estrutura social) são questionáveis.

Seja como for, essa temática histórica (a do ciclo revolucionário) é um filão que alimenta boa parte da nossa literatura de feição memorialística, historiográfica e ficcional, e muitos de nós gastam horas em torno desse assunto. Um tema fascinante, constitutivo da nossa identidade regional. No caso da Revolução de 32 – e em especial do compromisso que os gaúchos assumiram com os paulistas – trata-se de um episódio histórico que muitos de nós ouviram os avós, os pais e os tios comentarem animadamente, xingando-se uns aos outros e também fazendo piadas, rindo. Menino, eu ouvia o pai e meu avô materno tratarem desse assunto, indagarem por que os gaúchos romperam a palavra dada aos paulistas, e me empolgava.



Foi com essa memória de menino que li essa semana o livro Pela palavra empenhada: a Revolução de 1932, de Blau Souza e Zeno Chaves (PoA: AGE, 2012. 184 p.), uma investigação histórica e memorialística sobre o episódio revolucionário de 32 no cenário sul-rio-grandense. Como o próprio título indica, uma investigação que tem como eixo a pergunta a respeito de como as lideranças gaúchas lidaram com a “palavra empenhada” aos paulistas. Uma palavra (compromisso) que a gauchada não manteve.