domingo, 25 de dezembro de 2011

Pinheiro de Natal

O pai pregava a base do pinheiro de Natal no assoalho da sala com dois pregos grandes. O pinheiro ficava firme e depois a mãe coordenava a arrumação da árvore: os enfeites feitos de bolas coloridas, as luzes e até pedaços de algodão para imitar a neve.
Mas ela implicava com a ênfase que o pai dava à montagem da árvore (um pinheiro artificial) e a centralidade que isto passava a ter na comemoração natalina. Para ela, tinha que prevalecer a tradição católica – e portuguesa, ela enfatizava – do presépio e da celebração do nascimento do Menino.
Apesar de se dedicar com afinco à compra dos presentes para a noite de 24, ela lembrava que no tempo dela não existia nada disso. Havia o presépio, a Missa do Galo e pronto. Presentes, as crianças só recebiam no Dia de Reis (6 de janeiro), quando ela e o irmão se acordavam e iam ver o que os Reis Magos haviam deixado dentro dos sapatinhos.
Esta tradição ibérica ela reproduzia entre nós e todas as véspera de Reis lá íamos nós colocar os sapatos na janela. No outro dia de manhã, sempre os encontrávamos cheios de balas, chocolates e histórias em quadrinhos. Um dia meu irmão mais velho insinuou que não eram os Reis Magos que davam os presentes, mas não acreditei nele.
O pai e a mãe, no entanto, divergiam em algumas coisas nessa época do ano – e isto eu percebia. O pai, exageradamente pró pinheiro de Natal e Papai Noel; a mãe, defensora da prioridade do presépio e da centralidade do Menino.
Essa pequena divergência se reproduziu anos a fio e certa vez, quando eu andava com 19 ou 20 anos, o pai e eu conversamos a respeito. Estávamos na mesa, terminando o almoço – bebendo os últimos goles de vinho, enquanto a mãe retirava os pratos – e ele disse que no seu tempo de guri não havia comemoração natalina.
– Na minha casa não tinha nada disso – ele falava.
E fiquei com a impressão de que o Natal devia ser um dia como outro qualquer, na casa dele. Seus pais, imigrantes italianos endurecidos pela vida, talvez achassem as festas natalinas coisa de gente rica ou de barões.
– A tua mãe é que mudou isso tudo – ele completou, indicando que fora a doçura da mãe que possibilitara que ele pregasse o pinheiro de Natal no assoalho da sala e combinasse com um tio para ele se fantasiar de Papai Noel.
– Foi aí que aprendi o que era Natal – ele disse.
E só então descobri que era ele quem mais se divertia com a montagem da árvore. Muito mais do que os seus três filhos, que o olhavam encantados bater com o martelo.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Sob a mira de uma metralhadora

Em abril de 1964, logo após o golpe militar, havia um nicho de metralhadora instalado no alto de uma das casas que circundam a Praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas. Sacos de areia protegiam dois soldados em torno de uma metralhadora. Eu andava com meu pai pela rua e perguntei a ele o que era aquilo. Mas não lembro o que ele respondeu. Apenas recordo que o cano da arma estava voltado para nós.
O pai não costumava falar de política. Talvez o desaparecimento de um dos irmãos, logo após o golpe, tenha contribuído para esse silêncio. O tio morava em Porto Alegre, era petebista ligado ao Brizola e sumira nos primeiros dias da “Revolução”. Ninguém sabia o seu paradeiro e apenas sussurrava-se sobre o assunto. Um dia veio a notícia de que ele estava num quartel de Pelotas e uma das suas irmãs resolveu visitá-lo. Alguém tinha que acompanhar a tia e eu fui escalado para companhia. Essa tia era uma anãzinha decidida (muito engraçada e querida pelos sobrinhos) e lá fomos nós, levar cigarros e frutas para o tio.
Um soldado nos recebeu no portão quartel e nos conduziu a um prédio de madeira. Lá dentro, num quarto ensolarado, estava o tio, barba por fazer, magro, a nos receber com um sorriso triste.
Imagem inesquecível para o menino de oito anos que eu era. O tio aparecera, depois de preso pelos militares, sem que fosse dada nenhuma notícia à família. Era comunista, não era? O que tio era? Sobre isso ninguém falava e anos depois ouvi o tio contar que ele estivera numa prisão muito úmida do Rio de Janeiro, da qual avistava o mar por uma janela, e depois o trouxeram para o Sul. Foi solto logo depois sem maiores explicações.
O pai não comentava o caso. Talvez por ter combinado isto com a mãe. Afinal, o único irmão dela era oficial do Exército (provavelmente capitão, na época do golpe) e sobre isto não se dizia palavra. Não se comentava sobre o irmão do pai que era brizolista – depois eu soube, o pecado do tio era ser brizolista –, não se dizia coisa alguma sobre o irmão da mãe, militar do tipo Caxias e apoiador das Forças Armadas desde a primeira hora.
Uma rede de silêncio se tecera no meu ambiente familiar. O vô falava de Gaspar Silveira Martins, o grande tribuno do Império, comentava as façanhas do Zeca Neto, mas não falava do Brizola. E quando meu pai e eu andávamos pela Praça Coronel Pedro Osório, sob a mira de uma metralhadora, ele não respondia às dúvidas do filho. Ele comentava sobre o filme que acabara de assistir no Cine-Teatro Guarany, no qual os nazistas haviam tomado Paris.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A ermida do Padre Pio

Padre Pio é um santo novo da Igreja Católica. Viveu na Itália entre 1887 e 1968, foi beatificado em 99 e santificado em 2002. Em 2004, no alto de um cerro do município de Faxinal do Soturno, construíram uma ermida em sua homenagem. Há dois domingos atrás houve festa no local e lá fomos nós, um amigo fotógrafo e eu, participar da romaria.
Não subimos o cerro a pé – como manda a boa regra dos peregrinos. Fomos de carro – que é o modo como a maioria dos romeiros sobe até a ermida. Uns poucos encaram a caminhada (com cajados distribuídos pela associação mantenedora da ermida) e foram estes que meu amigo registrou com a sua câmara.
Belas fotos ele tirou! Ficamos sentados na beira da estrada e pedimos permissão aos romeiros. Nenhum deles disse não. Tentamos convencer uma menina que vinha com o pai, mas não houve jeito. Foi a única romeira que não quis ser registrada. Uma lástima! Homens e mulheres subiam compenetrados e sorriam para nós. Mesmo aquelas senhoras que estavam exaustas com o esforço desprendido. Senhoras que depois, lá no alto, quase se arrependiam da longa caminhada. Mas a graça obtida pelo Santo, me disse uma delas, valia bem o sacrifício.
Por sinal, foi isto mesmo que nos falou um dos organizadores do evento. Disse que o pessoal que vem até a ermida é muito grato pelas graças recebidas. Expressam isso nas cartas que deixam na capela e também nas doações em dinheiro. O vice-presidente nos falou muito orgulhoso, indicando a capela belissimamente construída, decorada e limpa, apontando o caminhão com lona e aparelho de som que servia para a missa campal, e mostrando os mil e duzentos quilos de carne que estavam sendo assados.
Tenho a impressão que se trata de uma festa religiosa diferente das que tenho acompanhado. Diferente da romaria da Medianeira, que ocorre nas ruas de Santa Maria; da festa de Santo Antão, no bairro do Campestre (igualmente em Santa Maria); e da romaria de N.S. de Lourdes, em torno de uma gruta no Vale Vêneto. Procuro uma distinção entre elas – quem sabe a composição social dos romeiros (predominantemente de classe média), quem sabe a ausência de uma procissão com todos os romeiros juntos – e acabo achando que é o cenário bucólico.
Um bando de andorinhas voa e canta ao redor da ermida e fico convencido de que alguma coisa impregna o lugar. Alguma coisa estranhamente fugidia como aquela menina que subia o cerro e não quis ser fotografada. Ela queria apenas caminhar de mãos dadas com o pai, alheia a tudo mais.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Rio Grande Profundo

         As histórias contadas pelo vô Octaviano (meu avô materno) me colocaram em sintonia com as revoluções rio-grandenses: a Revolução Federalista, a Revolução de 1923, a Revolução de 30 e todo o ciclo de Vargas. O Vargas caudilho que tomou o Governo Federal em 1930, o Vargas ditador do Estado Novo e, principalmente, o Vargas que se tornou Pai dos Pobres, o Velhinho que volta ao poder em 1951 e peita os poderosos.
Claro que as histórias do vô não apontavam toda a cronologia e detalhes indicados acima. Isto eu aprendi depois, no Curso de História e quando me tornei professor. O que o vô fazia era simplesmente aproximar a criança que eu era da longa tradição guerreira e até revolucionária do Rio Grande do Sul – o Rio Grande histórico e também lendário.
Mais tarde, quando comecei a lecionar (em Alvorada e Canoas, no final dos anos 70 e início dos 80), os alunos me traziam a imagem de Vargas no mesmo diapasão das histórias do vô Octaviano. Os pais desses alunos lhes transmitiam a imagem do Vargas Pai dos Pobres, o estadista preocupado com o povo, e a gurizada não entendia o modo como eu tratava o ex-presidente. Afinal, como bom aluno da UFRGS e versado na sociologia paulista, eu enquadrava Vargas no conceito de populista e desmontava a figura do Pai dos Pobres. Vargas se tornava um líder que manipulava a classe trabalhadora e a impedia de agir de forma autônoma. A tal legislação trabalhista passava a ser vista como forma de controle da classe trabalhadora e lá se ia a imagem positiva do Doutor Getúlio. Ideias desenvolvidas por Octávio Ianni e Francisco Weffort, figuras emblemáticas da escola de sociologia paulista (USP) e até pouco tempo dominantes no mundo acadêmico.
E recordo que havia momentos, na sala de aula, em que eu me calava e ouvia os alunos falarem do Vargas que seus familiares desenhavam para eles. Nessas horas, era meu avô que eu escutava também.
Terminada a aula, eu saia a caminhar pela estrada de chão batido que passava na frente da escola e me sentia conectado com o glorioso ciclo das revoluções rio-grandenses. Um ciclo que precisava ser revisto, patati-patatá – mas isso não vem ao caso, agora. Meu avô morreu por aquela época (1982) e eu parecia regressar a um tempo primitivo escutando a fala dos alunos: as conversas meu avô sobre Vargas e uma plêiade de heróis rio-grandenses, do chamado Rio Grande Profundo.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Zona do Porto

Em Pelotas, morei na chamada zona do porto. Não propriamente junto ao porto, mas nas imediações. Se o leitor conhece a cidade, morei a duas quadras da Igreja do Sagrado Coração de Jesus (também conhecida como Igreja do Porto). Meu avô materno (nascido em 1897), este sim viveu a poucas quadras do cais. E, quando criança, ia com ele numa barbearia que ficava nessa zona, na Rua Benjamin Constant, próximo à ex-Cervejaria Rio-Grandense. Naquela época, completamente desativada.
Eu me sentava na porta da barbearia e ficava olhando aquele enorme conjunto de prédios, impressionado com o fato de que aquilo tudo um dia funcionara...
A cervejaria fazia parte do cenário da infância e juventude do meu avô, e lhe trazia boas recordações. Uma empresa pujante, que começara a funcionar em 1889, expandira-se na década de 1910 e ganhara aquelas dimensões arquitetônicas que eu via e admirava, na década de 1930. Segundo um levantamento atual, “um conjunto arquitetônico com volumetria bastante diversificada (...) toda ela marcada por uma heterogeneidade estilística”. Em 1944, foi comprada pela Cervejaria Brahma e fechada logo depois. Na década de 60, quando eu a conheci, estava rigorosamente transformada em ruínas.
A Brahma comprara a fábrica para calar a concorrência que ela fazia na região, ouvi contar. E nunca soube se alguma vez a Brahma a utilizou para produzir cerveja. Meu avô e os amigos – todos eles na faixa dos 60 anos – olhavam a imensidão das paredes da fábrica e apenas recordavam... Lembravam de quando eram jovens, a cidade parecia mais dinâmica, e eles iam a bailes e namoravam.
Quanto fui a Pelotas neste ano (para um congresso na UFPel), me dei conta de que o evento estava acontecendo num antigo estabelecimento industrial reformado, que fazia esquina com a Benjamin Constant. Não era a ex-Cervejaria Rio-Grandense, mas provavelmente um prédio remanescente daqueles tempos – daquele conjunto de prédios industriais que funcionaram na zona do porto na primeira metade do século XX.  
Então fiquei sentado na sala, escutando as comunicações acadêmicas e, súbito, tive a impressão de ouvir meu avô e os amigos. Eles falavam e riam, e imaginei que eles falassem das melindrosas, que todos namoraram com o devido respeito.
         Quando terminou o evento, era noite e dei uma breve olhada na Rua Benjamin Constant. Mas não avistei a ex-Cervejaria. Que sei continua existindo – eternamente em ruínas, conforme li numa reportagem sobre a cidade.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Nelson Rodrigues

Comecei a ler Nelson Rodrigues no extinto jornal Folha da Tarde (da Cia. Caldas Júnior), quando era adolescente. Tinha 14 anos de idade (era 1969) e não entendia coisa alguma de política. O cronista pegava pesado contra as esquerdas da época e eu apenas me divertia com os tipos que ele criava: o “padre de passeata”, a “viúva espiritual de Guevara”, a “estagiária da PUC” e por aí afora. Me fascinava o estilo vigoroso, plástico e dramático de sua escrita. Não me incomodava a crítica político-ideológica.
Pois semanas atrás passei na biblioteca da Universidade e encontrei A Cabra Vadia: novas confissões, livro organizado por Ruy Castro (Cia. das Letras, 1995, 296 p.). Livraço! Crônicas escritas em 1968, de forte caráter político. Toda a verve do autor contra o movimento estudantil (“o poder jovem”), a nova Igreja (que estava se redefinindo em torno do que veio a ser a Teologia da Libertação), os novos costumes (especialmente o uso do biquíni), o engajamento das classes médias na luta revolucionária e mais outras novidades.
Mesmo não fechando com o ideário de Nelson (me tornei um leitor diferente daquele guri de 14 anos), ainda acho fabulosas as suas crônicas. O olhar de um homem de 55/56 anos, sintonizado com o Brasil de cartola e espartilho (o Brasil da República Velha), a respeito daqueles tempos de violentos embates políticos entre esquerda e direita. Um conservador contrafeito com a semi-nudez de moça de biquíni na beira da praia – a moça de biquíni comprando Grapete do crioulo da carrocinha (para citar uma das suas cenas exemplares). .
Do conjunto das crônicas de A Cabra Vadia, “Os dráculas” me parece um texto emblemático. O autor ironiza as mudanças que a nova Igreja introduz no ritual da missa e, principalmente, se espanta com o apoio que a esquerda católica está dando à guerrilha, “achando a guerrilha uma atividade nobilíssima”. A luta armada ganhava estudantes e intelectuais, e Nelson apontava, com perplexidade, a sede de sangue das esquerdas, expressa em “violência justificada”. Breve a esquerda vai querer “beber sangue como groselha”, ele previa.
          Claro que o autor não via a truculência do Regime Militar (que já estava abrigando a OBAN e o uso sistemático da tortura para a eliminação dos inimigos do Estado). Mas isto não tira o seu mérito de cronista: registrar com estilo a difusão do projeto revolucionário pela via das armas, entre as classes médias brasileiras. Um fenômeno latino-americano, que vinha crescendo desde os anos 50, quando as elites intelectuais e políticas passaram a entender que somente a violência poderia transformar a ordem econômica e social.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Gaspar Silveira Martins

Minha infância foi marcada pelas histórias de alguns personagens da política sul-rio-grandense. Sentado numa cadeira preguiçosa, na calçada em frente de casa, meu avô materno costumava falar de Gaspar Silveira Martins.
– Idéias não são metais que se fundem – ele dizia. E deixava a frase no ar, para os ouvintes meditarem ou rirem. Uma frase do grande tribuno do Partido Liberal, no Império, destituído do poder pela jovem República, e um bravo opositor do Castilhismo.
Era mais ou menos assim que meu avô falava de Silveira Martins: com as palavras “grande” e “bravo”. O vô, que lembrava o ruído dos cascos dos cavalos dos homens de Zeca Neto (ao tomarem Pelotas em 1923), tinha simpatia pelos opositores ao governo. No caso, aos governantes do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR).

Mas meu avô não era um homem de defesas apaixonadas de qualquer ideologia política. Era um homem simples. Cursara até o quinto ano primário e depois fora comerciário a vida inteira. Ao falar sobre figuras da política para o neto criança (nos anos 60), tenho a impressão de que ele recordava sua vida de menino, ouvindo o pai discutir política com os amigos no balcão do armazém da família. Entre sacos de milho e feijão, os homens comentavam as disputas pelo poder, perdiam-se em elogios e ataques a algumas personalidades, e meu avô devia ficar fascinado por aquelas conversas. Tal qual eu ficava, com nove ou dez anos de idade.
Mais tarde, já estudante universitário, ouvi a professora contar que Silveira Martins morrera em Montevidéu, num cabaré, nos braços de uma adolescente. O grande tribuno não se entregava, a professora explicava, mas a sua idade não permitia mais o desempenho de antes, tanto na política quanto na cama.
Nunca comentei com meu avô essa nova informação sobre Silveira Martins. Entre nós, apenas os dados tradicionais dos livros de História e a fala elogiosa sobre o “grande homem público”. Além disso, um rapaz de 20 anos não comentava com o avô a vida sexual de quem quer que seja. Entre nós, até o fim da sua vida, apenas falávamos com sobriedade a respeito do Grande Tribuno (com maiúsculas), que não fundira suas ideias diante da República Castilhista.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A noite roxa

“A noite roxa” é o título de uma novela de Urbano Tavares Rodrigues. Na narrativa, um jovem português relembra o curto namoro com uma jovem florentina e se desespera. Ele está em Paris e aguarda notícias da moça, que voltou para Florença. O personagem vive no tempo das cartas – a novela é ambientada na década de 1950 – e não chega nenhuma carta. O desespero aumenta, os olhos do personagem enchem-se de “lágrimas de fraqueza” durante uma madrugada (a noite roxa do título) e o rapaz resolve se suicidar. Dilui Gardenal num copo de água, prepara-se para beber, mas sente que está “ainda verde” para aquele gesto. Que “mesmo suja, conspurcada, essa vida, tinha de a cumprir. (...) Tinha de aceitar-se, com humildade, e continuar...” E decide continuar.
O texto faz parte do volume A noite roxa, junto com mais quatro novelas. Meu exemplar é da Editora Europa-América, 1972, e tem um autógrafo do autor, datado de 1998, quando ele esteve em Santa Maria para uma palestra no Curso de Letras da UFSM. O volume ficou na minha prateleira durante anos – imagino que o adquiri na década de 70 – e só esta semana fui lê-lo. Me tocou a densidade da narrativa e a clareza como é desenhada a fraqueza do personagem, seu desespero, e a súbita resolução de sustar o gesto suicida.
Humildemente, o personagem se aceita e decide viver. A vida, mesmo suja e conspurcada, precisava ser vivida até o fim. “Se a morte viesse, a morte limpa, na lâmina duma espada, no clarão dum tiro (...) seria diferente”, conclui o rapaz.
Entendo que o suicídio é uma perspectiva possível diante do horror, do absurdo ou do vazio que a vida é capaz de assumir. E que, nesses casos, continuar vivendo é um gesto de coragem. De humilde coragem. De aceitação da insignificância de nossas vidas e de recusa de soluções extremas – que às vezes parecem razoáveis. E então, feito Jó (o personagem bíblico do Livro de Jó) da  fazer “penitência no pó e na cinza” e recomeçar.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Romaria da Medianeira

No último domingo, saí cedo de casa para conferir a movimentação provocada pela romaria à N.S. Medianeira, a padroeira do Rio Grande do Sul. Provavelmente, o maior evento religioso da cidade de Santa Maria.
Comecei a acompanhar a romaria há mais de dez anos, quando passei a estudar história da Igreja. A coisa evoluiu, virou tese de doutorado (defendida na USP, em 2005) e também livro, publicado pela Editora UFSM, em 2010.
Dito isto, o leitor poderá concluir que fui à romaria como estudioso, realizar pesquisa de campo ou algo assim. Errado. Fui conquistado pelo mundo religioso – especialmente pela devoção mariana – e saí pela cidade para viver a festa católica. Há qualquer coisa de fascinante na demonstração de fé dos romeiros acompanhando a Santa. Qualquer coisa de invejável também.
Como milhares de pessoas, andei pelo centro da cidade, tomei café ao lado dos romeiros (no balcão de uma lancheria) e por fim me coloquei na frente da Catedral, para assistir ao início da procissão. Homens e mulheres tiravam os calçados, para seguirem descalços a romaria, enquanto outros preparavam enormes velas. Ao meu lado, chegou um rapaz com uma senhora e ele disse: “Vó, aqui é a Catedral”. A senhora agradecia, apoiada no braço do neto.
Cada vez que vou à romaria, elejo uma cena que acredito capaz de sintetizar a festa. Dessa vez, escolhi a cena provocada por uma jovem avó e uma mãe adolescente vestindo um bebê com vestes de anjo. Colocando uma camisola branca e as respectivas asas. Não sei se pagavam alguma promessa – provavelmente sim –, mas o que posso afirmar é que elas, a avó e a mãe, faziam tudo com alegria. Elas vestiam a criança e depois saiam vitoriosas, em direção à procissão. Os olhos da jovem mãe brilhavam e quero acreditar que a Santa lhe proporcionara alguma graça.
Segui com os olhos aquelas mulheres se perderem na multidão e fiquei ali, na calçada, assistindo ao “povo caminhante” se preparar para a procissão. Quando a imagem da Santa saiu da Catedral e todos bateram palmas, bati palmas também, emocionado. Estranhamente comovido, mais uma vez, com o enorme espetáculo de fé que esta cidade é capaz de proporcionar. Um espetáculo que tem diversas matrizes – entre elas, os gestos simples dessas mulheres que vestem crianças de anjo e saem entre os romeiros, com os rostos constritos de emoção.

domingo, 13 de novembro de 2011

O exercício da crônica

Diz uma das regras da crônica que este gênero literário é marcado pela narrativa na primeira pessoa, expressando uma visão pessoal a respeito das coisas, do mundo, da vida. Entendo, então, que um dos riscos que o cronista corre, ao seguir essa norma, é não sair do entorno do próprio umbigo. É o de fechar a narrativa na própria experiência, não alargar o sentido das mesmas, e não permitir que o leitor possa se encontrar dentro dela e fazer pontes, relações, associações com a sua própria trajetória.
Desta maneira, entendo que outra regra essencial do gênero é justamente saber usar as experiências pessoais, a visão subjetiva e as próprias idiossincrasias para permitir um diálogo com o leitor. E esta, me parece, é a grande aventura da crônica. Pretensiosamente, diria que esta é a aventura a que me proponho: a de que o texto que escrevo consiga ir além do próprio umbigo. Uma narrativa em primeira pessoa, sim, mas que possibilite uma leitura que vá além do que está referido.
O cronista, por exemplo, aborda o seu nascimento numa cidade do interior do Rio Grande do Sul, comenta as leituras do verão, uma cerimônia de formatura e espera que tudo isto ganhe um sentido maior do que está sendo explicitamente narrado. Afinal o seu nascimento bem pode ser como o nascimento de outros tantos; as leituras, as de muitos leitores; e as formaturas, aquelas que muitos de nós assistimos.
Este é o projeto do literato. Que pretensão!, dirá o leitor. Mas eu acrescento: é o projeto do poeta. Do sujeito que se constrói a partir da poesia e que entende que é da poesia que tudo irradia. Do sujeito que entende que é preciso estar atento ao ritmo da vida e da linguagem. Atento e distraído. Desperto para perceber o sumo da laranja que escorre nas mãos, quando descasca a fruta. Perceber que o sumo vai além do sumo e que pode ser, conforme o vento que sopra, o sangue das árvores ou passagem para alguma lembrança. Perceber, na atividade sexual, o movimento dos astros e talvez de um cometa cruzando repentinamente a penumbra do quarto no instante do orgasmo. Perceber a vida, a fragilidade da vida, e a face escura (às vezes bisonha) da morte.
Nascimento

Nasci em Pelotas, em 1955, na Santa Casa. A mãe conta que sentiu as primeiras contrações dentro do cinema – no Cine-Teatro Sete de Abril. Disse que ela e o pai não puderam assistir ao filme e saíram no meio da sessão. Voltaram para casa, pegaram a mala que já estava pronta e foram para o hospital. Eu nasci no outro dia de manhã. Parto com cesariana. Pesava uns cinco quilos e tudo já estava planejado.
Vivi a infância em Pelotas e saí de lá em 1967, com onze anos de idade. Mas sempre volto à cidade. Numa dessas viagens, passei pela frente da Santa Casa e fiquei subitamente emocionado. É uma construção antiga, de paredes grossas, com portas enormes de madeira escura. Uma instituição fundada em 1848, com instalações remanescentes do final do século XIX. Tirei fotos do prédio e procurei alguma coisa naquelas grossas paredes que falassem do meu nascimento. Entrei num saguão que é dado aos visitantes circularem e o silêncio foi total. Do meu nascimento naquele local, apenas o registro da memória. Apenas o relato materno, do qual me apossei.
É isso: faço esses passeios nostálgicos e faço cada vez mais, nos últimos anos. Visito a cidade onde nasci e caminho por suas ruas como se procurasse registros de cinqüenta e poucos anos atrás. Na maioria das vezes nem sei o que procuro, mas encontro – sempre encontro algo. As paredes da Santa Casa não acrescentam nenhuma informação, porém nada disso importa. Longe dali, em casa, eu fecho os olhos e tudo volta: a mãe contando que sentiu as contrações dentro do cinema, a mãe e o pai no caminho para o hospital, e meu nascimento no outro dia.
Eu volto a essa história que me pertence e que só conheço por causa da memória dos outros. Regresso a “epigênisis da infância” (Augusto dos Anjos) e quase renasço de novo.