terça-feira, 23 de outubro de 2012


Guerra do Contestado

Completaram-se cem anos do início da Guerra do Contestado (1912-1916). Um conflito ocorrido em Santa Catarina, numa região então contestada pelo Paraná. Uma área de disputa entre governos estaduais, de conflitos de terra entre coronéis e sertanistas, e também da construção de uma estrada de ferro (ligando Rio Grande do Sul a São Paulo), a qual expulsava posseiros de terras devolutas. No cerne dessa confusão se organizam grupos religiosos autônomos, inspirados no catolicismo rústico de monges peregrinos, e geralmente se narra o conflito a partir da atuação dessas organizações.
Os grupos de religiosos e sertanejos (posseiros, ervateiros, trabalhadores desalojados de suas terras por coronéis ou pela estrada de ferro) passam a peregrinar pelo interior de Santa Catarina e assustam as autoridades locais. Tropas estaduais e federais são chamadas a combatê-los e assim inicia a guerra, em outubro de 1912 (Batalha do Irani). Um ano depois, os sertanejos se reorganizam, dessa vez com maior disciplina, com a formação de “cidades santas” e também de grupos de combatentes – os “Doze Pares de França”, inspirados nas histórias de Carlos Magno. Os Pares de França reuniam sertanejos hábeis no uso de facões e também com conhecimento da doutrina ensinada pelos monges. A luta tem prosseguimento e o Exército envia efetivo de seis mil homens para combater os religiosos.
Em sete meses os principais núcleos rebeldes e suas lideranças são derrotados pelos soldados do Exército. O restante dos combates (até janeiro de 1916) é promovido por coronéis locais, que realizam algumas barbaridades. Calcula-se em dez mil o número de mortos (entre combatentes e mortos por doença) e até hoje sobrevive na região a memória da religiosidade rústica daqueles camponeses e também a lembrança de atrocidades.
Para quem se interessa pelo mundo religioso (suas funções, usos e abusos), a Guerra do Contestado é um prato cheio. No caso, a religiosidade popular, capaz de reunir a população sofrida e lhe dar um norte de resistência e até de luta, de enfrentamento aos adversários.
Nesse mês, a Revista de História da Biblioteca Nacional publica um dossiê sobre essa guerra, com artigos esclarecedores. Entre eles, um sobre o monge Giovanni Agostini, provavelmente o pioneiro dos monges peregrinos que articularam a religiosidade que impulsionou os sertanejos de Santa Catarina. O artigo é de autoria de Alexandre Karsburg e é resultado de pesquisa minuciosa a respeito da trajetória do monge Agostini. Este religioso (sem formação oficial) nasceu na Itália (1801) e veio para a América do Sul em 1838. Passou pelo Brasil (1843 a 52) e seguiu pelos países andinos até a América Central e do Norte. Morreu nos Estados Unidos, em 1869.
Na sua passagem pelo Brasil, esteve em Santa Catarina e também no Rio Grande do Sul (deu origem à devoção de Santo Antão, nos arredores de Santa Maria). Sua pregação pelo interior de Santa Catarina é considerada a matriz da religiosidade dos rebeldes de Contestado. Uma evidência de que nem sempre a religião serve apenas para nos conscientizarmos na nossa “finitude e insignificância”, mas também para preparar as armas para enfrentar os inimigos. No caso de Contestado, para afiar e manejar os facões e combater os jagunços dos coronéis e também os soldados da Polícia e do Exército.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012


Racismo em Monteiro Lobato

Continua a polêmica em torno da existência de racismo na obra de Monteiro Lobato, em especial sobre um dos seus livros, Caçadas de Pedrinho – provavelmente por ser um dos mais lidos nas escolas. Em 25 de setembro, houve reunião entre representantes do MEC e do IARA (Instituto de Advocacia Racial e Ambiental), o encontro não resultou em acordo e o caso seguiu para o STF. Para o MEC, a questão se resolveria com nota explicativa nas novas edições. Para o IARA, é preciso muito mais, inclusive um maior compromisso do MEC com a capacitação de professores para tratar dos temas raciais. Para o MEC, essa capacitação já vem sendo realizada a contento.
A questão, então, me parece não ser apenas o racismo – ou o uso de estereótipos raciais – na literatura de Monteiro Lobato. Isto é pretexto para uma discussão mais ampla: as condições da sociedade em geral – e da escola em particular – em lidar com eficácia os problemas raciais. Uma questão de raízes históricas que Lobato (1882-1948), nascido em família de cafeicultores escravistas do Vale do rio Paraíba, me parece refletir muito bem, tanto em Caçadas de Pedrinho quanto em Negrinha, outro de seus livros questionado. Refletir com as devidas ambiguidades e tensões próprias da boa literatura.
Para mim, que entende que as questões levantadas pelo IARA estão presentes em outros tantos textos literários canônicos – racismo, sexismo, autoritarismo, colonialismo –, esta é uma discussão que faz parte da leitura e da interpretação de textos. Não vejo porque polemizar com o MEC e, muito menos, levar o caso ao STF.
Mas fiquei instigado pela polêmica e fui reler Caçadas de Pedrinho, logo que começou o debate. Para minha alegria, tive o mesmo prazer que tive quando guri. Que maravilha de texto! Imagino que até hoje a meninada se refestele com a leitura. Bati os olhos numa das passagens destacadas pelos críticos do racismo e não me incomodei. Talvez porque eu não seja negro, dirão alguns. Pode ser.
O tal trecho era o da descrição de tia Nastácia, a preta velha do Sítio do Picapau Amarelo, quando as onças invadem a fazendola. Nessa ocasião, todos os bípedes da casa, mais o Marquês de Rabicó (um leitão) se protegem das feras usando pernas de pau – menos Nastácia. Quando a “onçada” aparece, no entanto, “esquecida dos seus numerosos reumatismos, [Nastácia] trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros”. Na sequência, a boneca Emília faz a onças fugirem e Nastácia pode descer do mastro. Ao final, afastado o perigo dos animais selvagens, tia Nastácia está enturmada nas brincadeiras das crianças e diz: “Agora chegou minha vez. Negro também é gente, Sinhá...”
A frase da personagem encerra o romance e bem indica que tia Nastácia é uma preta velha consciente do que é ser negra numa sociedade recém saída da escravidão. Tia Nastácia quer seu lugar nas brincadeiras das crianças. Mesmo que o narrador utilize estratégias descritivas que podem soar pejorativas (para mim, o resultado é cômico), mais adiante ele coloca na boca da personagem a indignação em relação ao contexto sócio-cultural que permitia a produção de estereótipos racistas. A indignação e a determinação de uma mulher negra para se afirmar no mundo dos brancos. Uma mulher que conhece o seu valor e que, quase cem anos depois de criada pela imaginação de Lobato, ainda é capaz de conquistar leitores.
Será preciso discussão jurídica em torno disso? Discussão no plenário do STF? Penso que não. Sisudos como são os ministros desse tribunal, desconfio que irão fazer serviço de empalhadores de passarinhos e tirar toda graça e leveza do texto de Lobato. Um desserviço para a literatura. Penso que nem a causa da luta contra o racismo ganha com isso.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Anos 70

O ano era 1976 e estávamos numa aula do Curso de História, na UFRGS. Estudávamos a Revolução Industrial na Inglaterra, a formação da classe operária e os movimentos de resistência dos trabalhadores. De repente, a conversa vai parar num movimento de guerrilha que acontecia ou acontecera (ninguém sabia ao certo) no centro do país. Ficamos divagando a respeito e tentando localizar o conflito armado: em Goiás ou Mato Grosso?
– Talvez no Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia – aventou o professor, que lera a respeito de movimentação militar na região central do país.
– Talvez seja um foco guerrilheiro consistente – alguém arriscava.
– Mas quem, nessa altura do campeonato, seria capaz de enfrentar a ditadura militar? – ponderava outro.
– Ora, ora – brincava um terceiro –, vai ver que a aliança operário-estudantil deu certo em algum lugar.
Conjecturas de um pequeno grupo de estudantes, na sala de aula, com um professor camarada. Pouco sabíamos a respeito dos embates militares do Estado brasileiro com a esquerda armada. Éramos universitários, líamos jornais, revistas, livros, íamos ao cinema, ao teatro – e a impressão era de que a realidade nos escapava feito areia entre os dedos. Havia censura nos meios de comunicação e volta e meia encontrávamos nos jornais – no jornal Movimento, p.ex. – páginas sem texto, com a indicação de que a censura passara por ali.
Só no início dos 80, li o livro-reportagem de Fernando Portela, Guerras de guerrilhas no Brasil (Global, 1979), e descobri que o tal movimento guerrilheiro comentado em sala de aula ocorrera, sim, mas no sul do Pará. Fora promovido pelo PCdoB, aniquilado em 75, e nós, reles estudantes, não sabíamos de coisa alguma.
Tempos difíceis aqueles! Para a juventude de classe média, universitária, talvez não fosse dos piores. Visto de longe, no entanto, me parece terrível aquele diálogo que travávamos em sala de aula. Emblemático de um quadro de desinformação que vivíamos naqueles anos. Uma situação comum para a maioria dos brasileiros, que se tornava dramática para os estudantes da área das Ciências Sociais. Dramática, terrível, insuportável!
Detalhe curioso: o texto que líamos a respeito da Revolução Industrial fora escrito por Eric Hobsbawm e fazia parte de uma coletânea de artigos. A primeira edição brasileira de A era das revoluções (Paz e Terra, 1977) só sairia no ano seguinte.  

segunda-feira, 1 de outubro de 2012


Arnaldo Campos

Era 1986 e o cometa Halley voltava a passar próximo ao planeta Terra. Esperava-se um grande espetáculo, mas isso não aconteceu. Milhares de pessoas ficaram na rua, no pátio ou na janela olhando para o céu e a frustração foi geral. A muito custo se identificava o cometa.
Matilde e seu filho André, moradores da Vila Orfeu, em Porto Alegre, também procuraram o cometa e se decepcionaram. Personagens fictícios da novela de Arnaldo Campos, A ceia do Diabo (Editora Mercado Aberto, 1994, 146 p.), eles viviam modestamente e saiam de casa todas as manhãs para trabalhar no centro da cidade. Ela, num escritório de representação comercial no 11º andar da Galeria do Rosário; ele, numa livraria.
Matilde era bisneta de imigrantes italianos e viera da região de Santa Rosa para a Capital. Casara com o pedreiro Silviano e estava viúva há um ano. Tinha 40 anos de idade e um único filho, de 14 anos. O menino passara a dormir na cama da mãe, após a morte do pai, e a abraçava durante a noite. O cuidado e a atenção do filho agradaram a viúva, mas, passado um ano, começaram a incomodar. A mulher se interessou por um vizinho e a atitude possessiva do filho era mais um problema a resolver. Matilde era uma mulher recatada, mãe dedicada, e tinha nas prédicas moralistas do pároco local uma das suas principais interlocuções. O peso da moral sexual católica a impedia de um novo relacionamento, mas felizmente ela tinha uma amiga de postura liberal e uma vizinha curandeira que indicavam a existência de outras possibilidades na vida, além daquelas apontadas pela Igreja.
Novela consistente, esta de Arnaldo Campos – um escritor preocupado com os dramas vividos pelos indivíduos das classes populares. De modo lírico, como bem indicam os editores na contracapa, o escritor enfocou com delicadeza os dramas da viúva Matilde. O desejo sexual que ela sente é percebido como algo diabólico – por isto o título da novela, A ceia do Diabo, referindo-se à intromissão de Satanás (da tentação do pecado) na sua vida familiar –, mas este entendimento tradicional da sexualidade é ultrapassado pela personagem.
Arnaldo Campos era um escritor e livreiro muito presente na cena cultural porto-alegrense. Tinha milhares de amigos entre seus leitores e fregueses de livraria, entre os quais me incluo. Li a sua novela no último domingo - como uma homenagem pela sua morte recente - e percebi que a narrativa transborda humanidade pelo drama de Matilde.
Ao final da novela, a viúva constata que “tão difícil quanto achar o [cometa] Halley seria voltar a viver em paz com o filho”. Matilde passara a namorar o vizinho, coisa que o filho não aceitava. Independente da postura filial, porém, Matilde segue em frente. A perspectiva da narrativa é totalmente favorável à mulher, numa perspectiva afável, impregnada de humanidade, bem como o era o feitio de Arnaldo Campos.