sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Clubes de brancos e negros

 

As lembranças dos outros às vezes nos fazem rever a própria trajetória. Isso acontece seguido comigo. Semanas atrás uma amiga (Eliana Sturza) postou uma crônica no seu blog (Lili inventa o mundo), a respeito da sua meninice (Os bailes na vida de uma adolescente) e o gatilho da minha memória disparou.

Minha amiga escreveu a respeito da sua vida de menina na década de 1980, em São Vicente do Sul, e eu recordei minha vida de guri em Pelotas, na década de 1960. Lili (a personagem da minha amiga, projeção da sua infância) descobriu os bailes de clubes aos 13 anos e, ao mesmo tempo, a separação entre brancos e negros, cada qual com as suas entidades recreativas e associações. Brancos não frequentavam os clubes de “morenos” e estes não entravam nos clubes de brancos. Lili pensou em ir ao Clube União (de negros) e logo lhe disseram que não, pois era espaço “dos morenos”.

Na minha experiência de guri pelotense não vivi essa situação. Bailes eram realidades distantes do meu cotidiano. No Carnaval frequentava os bailes infantis dos clubes Comercial e Diamantinos (ambos, entidades de brancos de classe média e alta) e isso já era suficiente para mim. Bailes não me entusiasmavam, mas eu não desgostava dessas festas. Recordo meus pais muito contentes (vestindo roupas claras), bonitos e vibrantes, dos foliões empolgados, a banda “vigorosa nos metais” (como dizia meu avô) e, especialmente, a suntuosidade do Clube Comercial (hoje em ruínas).

Meus irmãos e eu no carnaval do Clube Comercial.

Mas gostava de ouvir as histórias de meu pai e sabia da existência de clubes exclusivamente de negros, em especial de associações carnavalescas, como a Escola de Samba General Telles (uma das mais famosas naquele tempo). A Telles encerrava o desfile das escolas de samba na Rua XV de Novembro e o modo como contagiava o público era um espetáculo à parte. Quando ela passava pela frente do Café Nacional (local onde costumávamos assistir aos desfiles, em cadeiras alugadas colocadas na calçada), havia empurra-empurra, o público se levantava das cadeiras e alguns corriam para dentro do café.

 Um espetáculo que causava risos, prazer, alegria e também apreensão e susto. Meu pai vibrava, minha mãe dizia que era selvagem, mas também gostava. Uma vez tivemos uma empregada doméstica que integrava essa escola e, naquele ano, esperamos o desfile com uma atenção redobrada. Quando a General Telles passou na frente do Café Nacional (hoje, Café Aquários), tive dificuldade em reconhece-la sambando dentro de um vestido multicolorido, um penteado alto na cabeça, com um sorriso deslumbrante. Só sei que era ela porque meus pais disseram:

– É a Valesca, olha, é ela mesma. Como ela está feliz!

Valesca trabalhava e dormia na nossa casa, tinha crises de choro, e diversas vezes minha mãe teve que consola-la em algumas madrugadas.

Lendo a crônica de minha amiga e a sua descoberta de um clube de “morenos” que não podia frequentar, lembrei que as associações recreativas negras eram uma realidade distante na minha infância. Eu mal sabia. Circulava num ambiente de brancos e via de longe as associações negras. Enxergava apenas os belos espetáculos que elas proporcionavam, como no caso da General Telles, cujo samba fazia o público pelotense dos anos 60 se assustar e vibrar de alegria e prazer.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Índios charruas

 

Na década de 1960, fui a cidade de Rio Grande com meu pai e nos hospedamos no Hotel Charrua, em frente a Praça Xavier Ferreira, a duas quadras do porto. Acho que foi para alguma festa familiar. Ao longo da viagem, ouvi alguém falar a respeito dos bravos e altivos charruas, exímios cavaleiros, e fiquei fascinado. Acho que existiam algumas gravuras desses índios enfeitando as paredes do hotel e um parente me falou a respeito.

Eu era um guri de 10 anos de idade e, mais de 50 anos depois, revivo esse fascínio lendo Uruguaiana: Terra Charrua, do historiador uruguaianense Dagoberto Clos. Pequeno livro (66 págs.) que sintetiza as características e trajetória da nação charrua no pampa, sua resistência em relação aos invasores europeus e sua dissolução enquanto grupo organizado. Décadas atrás a FUNAI deu a etnia como extinta, mas em 2007 voltou a reconhece-la e hoje calcula que existam cerca de 6 mil charruas na Argentina, Uruguai e Brasil. Uma história difícil de contar.

O primeiro contato dos europeus com charruas se deu no final do século XVI, por meio da expedição de Juan de Zarate, e o capelão registrou como suas principais características “a velocidade, a pontaria com lança e boleadeira e a coragem”. No final do século XVIII, um militar espanhol (Felix de Azara) os descreveu como “altivos, soberbos e ferozes”.

Os charruas não se submeteram ao projeto jesuítico (não aceitaram a catequese nem, muito menos, deixaram o seu estilo de vida nômade para viverem em reduções), mas assistiram fascinados a chegada dos cavalos trazidos pelos padres e cedo se tornaram exímios cavaleiros. Como resistiam ao avanço das missões jesuíticas (braço religioso do colonialismo da Espanha), foram utilizados pelos portugueses da Colônia de Sacramento em seu enfrentamento com o Império espanhol. Mais tarde, participaram do exército de Artigas e, depois deste ser derrotado, foram alvo de um projeto de extermínio do primeiro presidente do Uruguai, Frutuoso Rivera, em 1830.

Quando os luso-brasileiros chegaram na Campanha (a partir da guerra de conquista de 1801), não melhorou a sorte dos charruas. No processo de formação das estâncias não tiveram lugar especial, isto é, condições de manter seu estilo de vida, nem no Uruguai e Argentina, nem no Rio Grande do Sul. Participaram das guerras das novas nações em formação, mas pouco ganharam com isso além do prazer de pelear. Dissolveram-se enquanto nação indígena e se miscigenaram com os povos invasores.

Até das tropas farroupilhas os charruas participaram, afirma o autor, que não encontrou bibliografia a respeito da trajetória charrua a partir de então. Isto é, o livro não contempla a história dessa etnia da segunda metade do século XIX em diante e o autor encerra sua abordagem comentando os escassos registros sobre descendentes charruas em Uruguaiana. Especialmente, o autor relata suas entrevistas com indígenas que ainda vivem – como Marinildomar de Barros Costa, 64 anos, “que ainda mantém certos usos, costumes e tradições dos Charrua”.

Nada fácil historiar uma nação indígena que foi massacrada e que, mesmo assim, subsiste nos usos e costumes do homem do campo, especialmente na Campanha (em Uruguaiana, como enfatiza o autor, onde a charrua Marinildomar continua receitando plantas medicinais de uso indígena para quem a procura). Um povo nativo do pampa que se transformou numa entidade mítica, importante na nossa fabulação a respeito de um Rio Grande heroico.



[i] Artigas talvez tenha sido o único general a prometer alguma coisa aos charruas. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

O legado dos jesuítas em Uruguaiana

 

Estive em Uruguaiana no último final de semana, junto com outros escritores de Santa Maria, para sessão de autógrafos dos livros da Editora Memorabilia na Feira do Livro local. A sessão de autógrafos foi fraca e nem se comparou com a que fizemos em Santa Maria, neste ano de 2022. Mesmo assim foi bom ir até essa cidade da fronteira e conviver com os escritores locais – entre eles, o patrono da Feira, o historiador Dagoberto Clos. Uma conversa ótima, numa das alamedas da Praça Barão do Rio Branco (onde aconteceu a Feira), a respeito dos indígenas da Campanha e das ações jesuíticas na região durante os séculos XVII e XVIII.

Dagoberto Clos tem pesquisado e escrito a respeito da história local e um dos resultados é o livro A mão dos jesuítas: a herança jesuítica no Município de Uruguaiana (2012, 88 p.). Denso trabalho enfocando a atuação da Companhia de Jesus junto aos indígenas e o que restou dessa experiência histórica.

Em 1626, os jesuítas fundaram a Redução de N. Sra. dos Três Reis Magos de Japeju, na margem ocidental do Rio Uruguai (na atual Argentina), próximo à foz do Rio Ibicuí, de frente para o atual estado do Rio Grande do Sul. Anos mais tarde, em 1657, os padres criaram a Estância Santiago no lado oriental, em terras que hoje pertencem ao município de Uruguaiana. Nessa oportunidade, dois padres e vários índios atravessaram mil cabeças de gado por meio de um baixio que existe na região (hoje chamado de Passo do Aferidor) e introduziram a pecuária no sudoeste do Rio Grande do Sul.

Ignorante que sou da geografia local e das práticas campeiras, fiquei espantado com a empreitada dos padres, isto é, cruzar uma “gadaria” (termo da época) por um rio de grande largura como é o caso do Rio Uruguai. O autor acentua o número reduzido de padres nesse empreendimento (eram dois ou três por redução) e a enorme capacidade desses religiosos em coordenar os índios em atividades até então distantes do seu horizonte cultural. Os guaranis (principal grupo indígena catequisado pelos jesuítas) conheciam e praticavam a agricultura, mas só tiveram contato com a pecuária por meio dos padres. E logo se habilitaram a exercer com competência as lides de vaqueano.

A partir dessa Estância Santiago a pecuária se consolidou no sudoeste rio-grandense e, junto com ela, foram erguidas várias construções de pedra (de capelas, currais e poços de água). A pecuária missioneira se expandiu em outras estâncias e postos de pastoreio e, no final do século XVII, se formou a Estância Japeju, com 65 quilômetros quadrados e mais de 80 mil cabeças de gado, a maior das estâncias da “Nação Jesuítica” (grande parte dela nas terras do atual município de Uruguaiana).

Estância Japeju. Fonte: Wikipédia.

Em 1768 os jesuítas foram expulsos da América Espanhola (por determinação do rei) e a Estância Japeju passou para a administração militar. Em 1801 ocorreu a conquista portuguesa da região (por Borges do Canto e outros) e a área começou a ser dividida em sesmarias e entregue a militares, padres e tropeiros luso-brasileiros.

O autor identificou as ruínas das construções jesuíticas – sistemas construtivos sofisticados, com paredes de pedra, arcos e abóbadas – e quais estâncias luso-brasileiras passaram a ocupar esses locais. Uma herança que assombrou e em grande parte foi destruída (inclusive por caçadores do lendário “tesouro dos jesuítas”) ao longo dos séculos XIX e XX, mas que ainda pode ser reconstituída e até aproveitada do ponto de vista turístico.

Restou pouca coisa do legado material jesuítico, conclui o autor. Seja como for, a Estância Japeju foi um empreendimento exitoso e deitou raízes no território hoje ocupado pelo município de Uruguaiana. No entendimento do autor, é a partir dessa estância que a história local deve ser contada e não da criação do Porto de Santana pelo Governo Farroupilha, em 1838. Uma provocação boa: quando estabelecer o marco fundador de uma cidade da Campanha rio-grandense? Na ação de jesuítas espanhóis e índios guaranis ou nas forças militares farroupilhas?

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O bolsonarista convicto

 

“Esquerda nunca mais, a população brasileira quer liberdade”, me disse um bolsonarista convicto, antes da vitória do Lula. Um bolsonarista que entende a coligação “Brasil pela Esperança” como expressão de uma plataforma de governo contrária às liberdades políticas e às do mercado – a quem eu escutei sem contestar, um pouco por educação, outro tanto para conhecer o bolsonarismo da classe média alta. Um fenômeno e tanto. Dizendo-se bem informado, o meu interlocutor acrescentou que o modelo de governar de Lula segue os exemplos de Fidel e de Chávez.

Quando eu lecionava História da América Latina, indicava o deputado Jair Bolsonaro como representação patética de uma direita nostálgica da ditadura militar e da tortura como arma de combate. Uma direita que eu entendia jamais voltaria a ter grande expressão política no Brasil e na América Latina em geral.

Não preciso dizer que me enganei. Bolsonaro escancarou o seu protofascismo – a sua homenagem ao coronel Ustra na votação do impedimento da Presidente Dilma foi emblemático nesse sentido – e isso não incomodou a direita brasileira. Pelo contrário, serviu como uma luva para a direita tradicional (conservadora) e a direita neoliberal (adepta de pautas libertárias) barrarem a moderada esquerda petista.  

A direita brasileira não teve nenhum escrúpulo em relação aos disparates autoritários do Capitão e, como bem expressou meu interlocutor bolsonarista, o revestiu de uma aura de defensor das liberdades “frente ao totalitarismo”.

Coisas da reformulação da direita mundial que eu não soube compreender. Uma nova direita que rejeita o Iluminismo, desconfia do Estado burguês como ele está construído e propõe uma reformulação selvagem do Estado, da economia e da sociedade.

Escutando meu interlocutor bolsonarista convicto, me distraí separando as espinhas do peixe que almoçávamos (nas margens de um lago) e as colocando na beira do prato. Um esforço para não me engasgar com as espinhas e nem com o que escutava.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Lupicínio Rodrigues em Santa Maria

 

Lembrei dos meus amigos (Orlando Fonseca, Antônio Cândido, Raul Maxwell e Tex Júnior) ao ler a biografia de Lupicínio Rodrigues, escrita por Mário Goulart, numa antiga coleção da Editora Tchê![i] Em nossas reuniões semanais do bar da Lurdinha, volta e meia eles comentam a passagem de Lupicínio Rodrigues por Santa Maria e o fato dele ter composto “Felicidade” quando morava aqui. Conversa de bar sem a precisão de uma referência bibliográfica e que me deixava curioso quanto aos detalhes dessa passagem.


          Pois agora tenho algumas informações mais precisas, colhidas no pequeno livro de Mário Goulart: quando o compositor servia no Exército, ele foi enviado para cá. O rapaz (nascido no bairro da Ilhota, em Porto Alegre, em setembro de 1914) não era dado ao estudo nem ao serviço. O pai, Francisco Rodrigues (porteiro da Escola de Comércio), matriculou o filho na Escola Técnica Parobé, com a esperança de fazê-lo um mecânico, mas não deu certo. Nem a escola nem o estágio de aprendiz na Companhia Carris Porto-Alegrense serviram para dar um rumo ao guri. Então seu Francisco decidiu colocar o rapaz como “voluntário” no Exército brasileiro (7º Batalhão de Caçadores) e Lupicínio ficou nessa função por uns cinco anos.

Antes de completar 16 anos (antes da Revolução de 1930, então) o rapaz é promovido a cabo e transferido para Santa Maria. Fica na cidade até 1935, quando volta a viver em Porto Alegre.

Nesses cinco anos santa-marienses, ele conhece Inah, o seu primeiro amor, que lhe inspira “Zé Ponte”: “Uma cabocla / que trabalha ali defronte / carregando água da fonte / (...). / E cada vez / que ela carrega um balde d’água / leva junto a minha mágoa / pendurada em sua mão.”

Lupicínio engata um noivado com a moça, mas o casamento não se realiza (o rapaz não larga a boemia) e Inah se casa com outro. Anos depois, em Porto Alegre, Lupicínio a encontra numa festa de N. Sra. dos Navegantes de braço com o marido e a situação lhe inspira uma de suas obras-primas, “Nervos de aço”: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor / ter loucuras por uma mulher / e depois encontrar esse amor, meu senhor / nos braços de um outro qualquer?”

Em Santa Maria ele também conhece aquela que será a sua segunda esposa, Cerenita Quevedo, então com 2 anos de idade. Lupicínio casa-se com ela 18 anos depois (em 1949) – ela com 20; ele, com 35 anos.

Também em Santa Maria Lupicínio compõe “Felicidade”, gravada pela primeira vez em 1947, pelo quarteto Quitandinha Serenaders e, mais tarde, em 1974, por Caetano Veloso. Nessa composição, o poeta se refere a uma felicidade que se foi embora e de uma saudade “lá de fora”, onde “a falsidade não vigora”. Falsidade que impera na triste cidade em que ele vive...

           Apesar de ter afirmado que foi em Santa Maria que seu coração despertou, certamente o poeta teve experiências tristes por aqui.


[i] GOULART, Mário. Lupicínio Rodrigues: o poeta da dor-de-cotovelo, seus amores, o boêmio e sua obra genial. P. Alegre: Tchê! / RBS, 1984. 102 p. Coleção Esses Gaúchos.

sábado, 17 de setembro de 2022

Monumento às Mães

 

Nunca participei de uma escavação arqueológica. Nunca trabalhei num desses buracos que os arqueólogos fazem e meticulosamente examinam centímetro por centímetro, recolhendo material. Mas já tive em mãos cacos de cerâmica guarani, pedras afiadas de machados e de raspadores indígenas, assim como pedaços de louça inglesa, de garrafas de vidro (do século XIX) e botões de fardamento militar (dos mortos na Batalha do Passo do Rosário, em 1828), material recolhido por arqueólogos em suas escavações, a maioria deles do LEPA (Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas, da UFSM).

Era meu roteiro, por sinal, visitar as instalações desse laboratório (quando localizado nos fundos da Antiga Reitoria) e ouvir o professor Saul Milder ou seus alunos falarem a respeito das peças. Um dia, acompanhei uma das turmas do Saul até às ruínas de São Miguel das Missões e visitei um local de antiga escavação na área onde se localizavam as oficinas criadas e dirigidas pelos jesuítas. O prof. Saul havia participado do projeto e explicou como fora o trabalho. Foi o mais perto que cheguei de um poço de escavação.

Mas, de certa maneira, me considero um arqueólogo. Ao meu modo, escavo profundos poços no lado esquerdo do peito e furungo em busca de vestígios do passado. Às vezes encontro algo que valha à pena, nem sempre um objeto bem configurado, mas algo difuso que vou elaborando por dias e dias (limpando, limpando) até que a “peça” ganha uma forma.

Dessa vez o que encontrei foi “a voz da minha mãe”. Isto mesmo, a voz, pois me deparei com a lembrança dos seus comentários a respeito do “Monumento às Mães”, uma escultura de Antônio Caringi, colocada na Praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas, no final da década de 1960. A escultura causou um impacto muito grande e recordo de tê-la visto na época (num daqueles passeios de família que meu pai e minha mãe gostavam de fazer com os filhos). A mãe conhecera a modelo (Noemi Caringi, esposa do escultor) e fora sua aluna no Conservatório de Música.

Na cena lembrada, a mãe recorda as qualidades da modelo (mulher elegante, poetisa e professora de música), relembra os tempos de estudante do Conservatório e diz:

– Eu era uma péssima aluna, sem aptidão nenhuma para a música. Estudava piano e não tocava nada. Teu tio, sim, tinha talento. Sem nunca ter estudado, sentava ao piano e tocava de ouvido.

Minha mãe dizia isso rindo, aparentemente se desqualificando. Mas ela tinha talentos e sabia disso. Numa das placas que havia na base do monumento estava escrito a seguinte frase: “São as mãos das mães que sustentam o futuro do mundo.” E essas mãos – firmes e delicadas (como evidenciam a escultura) – ela sabia que tinha.

– Sempre quis ser mãe de cinco rapazes – ela falava. – Tive três e foi bom assim.

Ouvi isso várias vezes. “Três filhos únicos”, brincavam as sobrinhas e noras. Eu a relembro falar a respeito da escultura do Caringi e me emociono. É como se eu estivesse no fundo de poço de escavação arqueológica e encontrasse uma preciosidade: um pote de cerâmica guarani ricamente decorado pelas mãos de uma índia que não vejo, apenas sinto e escuto a voz.

Monumento às Mães. Foto da Wikipédia, estranhamente sem
a segunda placa, com a frase relativas às mães.


quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Viagem de ônibus

 

Uma viagem de ônibus entre Santa Maria e Pelotas, no interior do Rio Grande do Sul, revela um Brasil que é pouco conhecido por sujeitos de classe média como eu, que vivem em cidades de porte médio para cima e circulam em espaços de boa e ótima infraestrutura. Já fiz esse mesmo percurso de automóvel e garanto que a experiência é diferente.

Os carros da Planalto (a empresa que controla o trajeto) são confortáveis e, nesse quesito, o passageiro habituado a viajar de ônibus (ao menos no Rio Grande do Sul) não tem do que se queixar. O ônibus faz paradas nas rodoviárias de São Sepé, Caçapava, Santana da Boa Vista, Canguçu e só isso já possibilita o vislumbre de outro mundo.

Às vezes o ônibus para na estrada também e as pessoas que entram são inusitados, isto é, se o vivente acha inusitado um homem velho, de aparência rude, vestindo bombacha e sem pressa nenhuma de pagar a passagem. Homem calejado na lida no campo, com jeito de quem continua na ativa e que bem poderia me olhar e perguntar: “Mas da onde saiu esse bacana?”

 As rodoviárias dessas cidades são um mundo à parte e causa espanto as instalações precárias dos banheiros e o estilo das lancherias (com as prateleiras com produtos mal arranjados e os alimentos expostos em vitrines de vidro nos balcões), diferente do que encontramos em Santa Maria e Porto Alegre.

Em Santana da Boa Vista há uma parada de 10 minutos para lanche (nas outras rodoviárias são apenas para descer e subir passageiros) e comi um pastel com água mineral, pois não tinha refrigerante diet. Dei uma mordida no pastel, era delicioso e disse isso para a senhora que me atendeu. Ela abriu um sorriso largo e me explicou o tempero.

Rodoviária de Santana da Boa Vista. Foto do sítio da rodoviária.

Segui comendo de pé, olhando um cachorro dormindo no chão, um motorista de uniforme enchendo a sua xícara de café preto com demasiada quantidade de açúcar e uma senhora raspando lentamente o fundo da sua xícara de café com leite. Gente sem preocupação com a glicose, imaginei – que talvez não se preocupe também com o sal (como certa vez constatei num almoço bem temperado num restaurante de estrada em Novo Cabrais).

Quando eu terminava o pastel, o cachorro se levantou e saímos juntos da lancheria da rodoviária. Fiquei pela plataforma de embarque olhando o povo, a igreja (de fronte à praça) e vi chegar um homem com um celular, procurando uma loja de consertos e explicando que o “aparelho não toca, não fala coisa nenhuma”.

Pequeno quadro de um Brasil que os bacanas de classe média como eu não estão mais habituados. Cenas de um “Brasil profundo”, tenho vontade de dizer, mas é exagero. Apenas cenas que estão distantes do universo social dessa classe a que pertenço.

Afinal, o que eu sei do mundo onde circula a maioria da população, do Brasil que fica além do meu bairro e que também é pouco representado nos livros e filmes que eu leio e assisto? Pouco, muito pouco.

Escuto um passageiro comentar com o motorista a respeito de um sapateiro de Caçapava que faz botas muito boas e conversa prossegue dissecando as qualidades da botas de campo e de baile que a sapataria apronta. Calçados sob medida, trabalho artesanal, muito distante do mundo industrializado por onde circulo.

domingo, 11 de setembro de 2022

O Castelo do Major

 

Em Pelotas, na Rua XV de Novembro, esquina com a Conde de Porto Alegre, há uma construção imponente, de três pavimentos, com um torreão de 12 janelas estreitas, que ganhou o título de “Castelo do Major”. Pra castelo medieval está muito longe, mas é desse modo que é conhecida.

Na década de 1960, no caminho para o grupo escolar (na Rua XV de Novembro) eu avistava o torreão do Castelo e o associava aos contos de cavalaria que me empolgavam. Em 1966, um amigo foi morar próximo ao Castelo e passei a avistá-lo regularmente. Diversas vezes parei na calçada para admirar a construção e sondar os seus mistérios.

Tinha 10 anos de idade, tempo bom para se deixar impressionar por histórias fabulosas e hoje (quase 60 anos depois) as resumo dessa maneira: o Castelo era muito antigo e fora construído por um homem atormentado tanto por sonhos de grandeza quanto por terríveis pesadelos. Uma noite, discutiu com um empregado e o matou. Transtornado, abandonou o Castelo e foi viver muito longe. Abandonada, a casa terminou invadida por pessoas estranhas, tão atormentadas quanto o antigo morador. Verdade isso? Não sei.

Lembrei do Castelo um dia desses (durante uma sessão de psicoterapia) e resolvi conferir. Consultei o Google, encontrei o blog Pelotas Cultural, de Francisco Antônio Vidal, e obtive as seguintes informações: o prédio foi mandado construir pelo major Antônio Duarte da Costa Vidal, por volta de 1930. Mais precisamente em 1936, segundo o historiador Mário Osório. O major Vidal lutou na Campanha de Canudos e, ao ser reformado, estabeleceu-se em Pelotas e mandou construir a imponente moradia. Nenhuma informação a respeito do assassinato.

Pois fui a Pelotas dias atrás, fotografei o castelo da calçada (em completo estado de ruínas e cercado por tapumes), avistei dois homens no local do telhado e tive a impressão de que o local se encontra em restauração. Confere? Provavelmente.  


Castelo do Major. Setembro de 2022.

Na Livraria Mundial, encontrei um livro de Zênia de León sobre os casarões pelotenses e mais informações sobre o Castelo (mas muitas interrogações também).[1] Para a autora, o major “sofria de problemas traumáticos” ocasionado pela guerra no sertão baiano. Era homem culto, musicista, com “considerável biblioteca” e “dado a serenatas”. No Castelo, promovia reuniões festivas nas quais as netas tocavam piano (duas netas de um único filho). Mas depois a família se retirou para outra moradia, pois não conseguia se adaptar “aos cômodos da casa, divididos em três andares, com peças muito deslocadas”. Anos depois o major voltou a sua terra de origem (Itaqui) e morou numa casa também com ares de castelo, o “Chalé dos Vidal”.

Quanto ao assassinato, Zênia registra o episódio como lenda: o major chega em casa, encontra um empregado na sua banheira privada, se incomoda com o abuso e o afoga. Um episódio sem nenhum registro documental, diz a autora.

Parado na calçada em frente ao Castelo, lembrei do meu amigo que morava ali perto. Um dia andávamos pela calçada, ele apontou para uma das estreitas janelas do torreão e avisou:

– Olha lá, aquela mulher nos olhando. Tem jeito de bruxa!

Sim, era uma mulher de cabelos desgrenhados, com aparência de louca, os olhos cravados em nós e dizendo coisas incompreensíveis.

Ri da lembrança, mas não sei se o episódio é verdadeiro. Talvez fosse uma fantasia do meu amigo. Afinal, costumávamos brincar de cavaleiros medievais e bruxas e princesas não estavam longe do nosso imaginário. Aquela era mais uma, ora. A Moura Torta? Sei lá. Sei que nos escafedemos pra dentro de casa.



[1] LÉON, Zênia. Pelotas: casarões contam sua história – vol. 2. Pelotas: Ed. Livraria Mundial, 2013. P. 42-53.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Praça Saldanha Marinho

           Cruzo de noite a praça central de Santa Maria – Praça Saldanha Marinho – e a encontro mais escura que o habitual e completamente vazia. Então recordo a primeira vez que a conheci, trinta anos atrás, e passa um filme na minha cabeça.

Praça Saldanha Marinho. Foto de 2022.

Naquela noite, eu viera assistir a um show erótico no Cine Independência e saíra um pouco enojado do espetáculo. Tinha muita curiosidade em relação a esses espetáculos de sexo explícito, mas fora demais para mim. Difícil classificar: excitante por um lado, mas degradante também.

No final, duas mulheres de quatro, cada uma cima de uma cadeira com as bundas viradas para a plateia, encharcam as “partes” com vaselina e logo entram dois homens com as “ferramentas armadas”. É a cena do anal para finalizar a noite e um grupo de rapazes na primeira fila (com corte de cabelo cadete, provavelmente militares) bate palmas e incentiva os atores a irem fundo. Difícil descrever. Não dava para saber se a cena era erótica ou cômica. Acho que as duas coisas. Pornografia mistura tudo.

Viera com um colega professor assistir ao show e recordo que, depois do espetáculo, atravessamos a praça escura e ele foi fazer uma ligação interestadual de uma cabine telefônica. Eu me sentei num banco da praça e depois ele me contou, rindo, que uma prostituta viera falar comigo:

– Ela tava querendo fazer um programa e tu nem deu bola.

– Não notei – eu falei.

– Ela caminhava ao redor do banco e tu ali, parado, olhando pro chão. Deve ter te achado bêbado ou veado.

Foi essa a minha estreia na praça e me dou conta que já faz um bom tempo que não avisto prostitutas nessa área. Desde sempre cruzo a praça de noite e acho que fizeram uma “limpeza” no local. Às vezes, quando vou ao Teatro Treze de Maio, gosto de ficar pelas imediações depois do espetáculo terminar, vendo o movimento. As pessoas saem aos poucos, formam grupos na frente do teatro, conversam, riem, e vão se dispersando aos poucos. A praça tem vários públicos e ritmos, dá pra dizer.

Trinta anos atrás eu chegava na cidade, deixava o Magistério Estadual depois de treze longos anos lecionando em Alvorada, Canoas e Porto Alegre (desgostoso com o salário baixo) e apostava minhas fichas na Universidade Federal. Valeu a pena.

          O Cine Independência fechou (em 1995) e o local hoje abriga o chamado Shopping Popular (com os camelôs que antes ocupavam o canteiro central da Avenida Rio Branco) e nem sei se ainda existe uma casa que apresente espetáculos de sexo ao vivo. Deve existir, claro. Nunca mais fui. Mas tenho vontade de sentar num banco da praça e esperar o meu amigo terminar a sua ligação telefônica e depois sairmos andando pelo centro da cidade. Talvez na direção do Augusto, saudoso restaurante que fechou suas portas e onde “batíamos o cartão” seguidamente.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Mares desconhecidos e tenebrosos

            – Assim tu não vais ser feliz – disse a moça ao celular, no corredor do shopping, e não ouvi a continuação da conversa. Com uma mão ela segurava o aparelho junto ao ouvido, com a outra ela gesticulava, andando a passos lentos junto às vitrines das lojas. Nós cruzamos um pelo outro e aquela frase ficou ecoando dentro de mim.

O que será que o seu interlocutor fazia que não colaborava na construção da felicidade?, pensei. Mas quem entende dessas coisas? Ontem de noite eu atravessei a praça central da cidade, praticamente vazia, e de repente vi passar um catador puxando o seu carrinho e uma criança ao lado, pulando e gritando. Uma criança feliz, me pareceu.

Praça Saldanha Marinho.

Recordei a faxineira do meu prédio me contando a respeito da sua infância, na década de 1980, quando ajudava a mãe a catar ferro velho e ossos nas ruas da cidade. Elas catavam ossos no lixo e nem imaginava que isso pudesse ter alguma utilidade...

Será que entendi direito? Ossos? Mas tive vergonha de perguntar à faxineira e fiquei calado no corredor do prédio, escutando.

– E graças a Deus nós conseguíamos nos manter – ela acrescentava.

         Ontem de noite atravessei a praça central da cidade, vindo do bar – onde me encontrei com os amigos, bebi vinho e falei de literatura, dos autores que andamos lendo: Peter Handke, Josué Guimarães, Luiz Vilela, Andrea Camilleri – e aqueles catadores (pai e filho, provavelmente) me indicaram um mundo desconhecido.

A moça que ainda pouco cruzou comigo no shopping estava destrinchando algum manual de felicidade e também me pareceu distante. Seus passos eram lentos, toda a sua atenção estava no celular e senti alguma gravidade naquela conversa.

Eu tomei um café com croissant numa lanchonete, folhei meu roteiro de viagem pela Turquia (para onde embarco daqui a uma semana) e li sobre dois castelos construídos nas margens do Estreito de Bósforo por turcos otomanos, quando eles se preparavam para conquistar Constantinopla. Construções dos sultões Yildrim Beyazit e Mehmet II.

No final da década de 1970 comecei a lecionar no Ensino de 1º Grau e todos os anos eu falava a respeito da queda de Constantinopla (1453), as mudanças que isso causou no comércio europeu e o quanto essa nova conjuntura motivou os portugueses a buscarem um novo caminho para as Índias. Eu dependurava um mapa-múndi na frente do quadro verde e apontava os locais desse mundo distante: Constantinopla, Lisboa, Calcutá. Os olhos dos alunos brilhavam e os do professor também. Acho que juntos desvendávamos aquele universo.

        Um mundo desconhecido que, nos últimos anos, vem se revelando de outra maneira para mim. Já estive em Lisboa, breve estarei em Istambul. Se felicidade é tornar o mundo mais conhecido, talvez eu esteja fazendo alguma. Mesmo assim, ainda tenho a impressão de que cruzo por mares tenebrosos e desconhecidos. Mares que me desafiam e às vezes atormentam.

domingo, 4 de setembro de 2022

Conversa sobre o mundo acadêmico

Décadas atrás, bastava o título de graduação para o sujeito se tornar professor universitário. Cursos de pós-graduação e títulos de mestre e doutor vinham com o andar da carruagem, isto é, caso o professor tivesse alguma ideia original e condições para desenvolvê-la. Caso contrário, era possível fazer carreira nas universidades federais sem investir na qualificação acadêmica.

Ao longo da década de 1980, no entanto, isso mudou. A partir de então, a pós-graduação passou a ser uma exigência para inscrição em concurso e, para os professores já efetivados, uma espécie de pressão. Se o sujeito almejasse ascender na carreira e ter salário melhor, a qualificação acadêmica era indispensável.

Creio que vivi essa mudança.

No concurso que prestei para o Departamento de História da UFSM, em 1989, não constava a exigência de título de pós-graduação e isso já não era comum na época. Foi o que possibilitou a minha inscrição. Um amigo (Ricardo Napoli) leu o edital do concurso na Zero Hora, lembrou da minha penúria no Magistério Estadual e me ligou. Eu fui na mesma hora comprar o jornal e comecei a estudar naquela noite. Animação total.

Prestei concurso, fiquei em quarto lugar e soube que, apesar do edital ser apenas para duas vagas, os terceiro, quarto e quinto candidatos aprovados seriam aproveitados. Três professores do departamento estavam aguardando aposentadoria e entraríamos nas suas vagas. Fernando Collor, no entanto, tomou posse como Presidente da República no ano seguinte (1990), embaralhou a vida dos funcionários federais e os três professores suspenderam as aposentadorias. Esperaram mais um ano e, por pouco, o concurso não dançou.

Concursos em universidades federais têm validade de um ano e, se não são renovados, caducam. Isso só não aconteceu porque um professor (Teófilo Torronteguy) encaminhou pedido de renovação do concurso. Um “detalhe” que eu sequer soube na época.

Lembrei dessas histórias nessa semana, quando fui convidado para palestrar uma faculdade local (FAPAS) a respeito do tema de minha tese de doutorado: O Catolicismo Ultramontano e a conquista de Santa Maria. Entre tantas coisas, recordei que já tive planos de me tornar um andarilho como alguns personagens de Hermann Hesse. Um andarilho como Goldmund, do romance Narciso e Goldmund, ambientado na Europa medieval. Goldumund não se adequa ao ambiente do mosteiro, o lugar do conhecimento naquele tempo, e sai a andar pelo mundo em busca de saberes, da arte inclusive e também do amor.

Uma fantasia juvenil, claro, que felizmente não realizei. Me diplomei, encarei o Magistério Estadual e me submeti ao regramento do mundo – buscar o conhecimento nos marcos da academia, no caso. Quando tive oportunidade, prestei concurso para lecionar em universidade e fiz o que manda o figurino. Deu certo.

Com meu colega Luiz Eugênio Véscio (nós dois aprovados no mesmo concurso), na sala que dividíamos na UFSM, conversávamos a respeito das nossas trajetórias e eu contava que tivera a fantasia de ser andarilho. Luiz Eugênio ria muito. Gargalhava. Juntos, nós concluímos nossas dissertações de mestrado e, na sequência, procuramos ideias que nos possibilitassem ingressar no doutorado.

Antigo Prédio de Apoio da UFSM. Local onde funcionava
o Depto. de História na década de 1990. Foto de 2022.

Não foi um caminho fácil. Luiz Eugênio construiu sua tese a partir da morte de um padre na região de colonização italiana – supostamente agredido por maçons, no ano de 1900.[1] Eu bispei que o filão era rico – a história da Igreja Católica e suas transformações no final do século XIX – e por aí construí o meu projeto de doutorado.[2]

       Estávamos mergulhados na vida acadêmica dos anos 90, sentíamos a pressão para nos qualificarmos e procuramos responder a isso. Lemos muito, batemos ponto em arquivos eclesiásticos, tivemos boas conversas entre nós e também com diversos religiosos – inclusive com D. Ivo Lorscheiter, então bispo de Santa Maria, que me deu carta verde para pesquisar em alguns arquivos. Lembrei disso ao iniciar a palestra.


[1] Padre Antônio Sório foi um dos primeiros sacerdotes a atuar na 4ª Colônia de Imigração Italiana, no RGS. Teve conflitos com os colonos da região, vindo a ser agredido por um grupo e falecendo por conta dos ferimentos. Alguns dizem que os agressores eram maçons contrários à Igreja; outros, que eram familiares de uma moça que perdera a virgindade com o padre.

[2] No século XIX, a Igreja Católica passou por transformações devido à adoção do Ultramontanismo (Concílio Vaticano I, 1869-70). Isso implicou em reformas internas e novas relações com os leigos, inclusive no RGS, na cidade de Santa Maria (foco do meu estudo, no período de 1870 a 1920).

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Oftpred - colírio

           Oftpred é o colírio que me acompanha nos últimos tempos. Um colírio para uso específico: inflamação na íris. Já usei Maxidex, Predfort; agora é este. Tive a primeira inflamação nos olhos em 1977, com 21 anos, e deste então sou um usuário constante desse tipo de medicamento. Afinal tenho essa doença todos os anos, às vezes mais de uma vez – mas felizmente (na maioria das vezes) debelada apenas com colírio.

Já escrevi um poema tematizando as inflamações nos olhos, mas nunca consegui enfocar o colírio, como fez João Cabral Melo Neto com a aspirina. Em 1966, em Educação pela pedra, o poeta publicou “Num monumento a aspirina” e comparou o remédio com “o mais prático dos sóis”, “sol imune às leis da meteorologia”, pois “a toda hora em que se necessita dele, levanta e vem (...) para secar a aniagem da alma.”

Na segunda estrofe do poema, o poeta faz uma analogia da aspirina com a lente, mas com a peculiaridade de ser “de uso interno”, de funcionar “por detrás da retina” e ser capaz de reenfocar “para o corpo inteiro (...) o borroso de ao redor.”

Sempre gostei desse sol cabralino que lava a dureza da alma e dissolve o borroso ao redor. Utilizando as mesmas imagens para o colírio, diria que suas águas de cor leitosa, que podemos dispor a qualquer hora, afogam a dor e desanuviam a visão. A dor e visão nublada que irrompem nos olhos inflamados. desenhando uma coroa vermelha em torno da íris. Pequeno tormento da minha vida inteira a apontar as fragilidades do corpo.

Mas sofrimento capaz de ser contornado e combatido. Quando tive a primeira vez, o oculista (Rivadávia Corrêa Meyer) chegou a pensar que eu ficaria com a visão prejudicada. Recordo que fui atendido de emergência (por insistência da mãe), o médico pingou um colírio para dilatar a pupila, outro para combater a uveíte (outro nome para a inflamação na íris) e me mandou para casa. Voltei horas depois, ele me viu no corredor de espera e veio me examinar. Observou o olho doente, sorriu e disse:

– Reagiu.

Depois, no consultório, me examinando com uma daquelas máquinas de ver o fundo do olho, contou a sua preocupação, isto é, que tivera receio da inflamação (que era extremamente forte e demorara para ser medicada) me deixasse com sequelas irreversíveis: uma visão anuviada e a dificuldade de discernir as cores.

           Lembro de que falei do meu interesse em pintura e ele sorriu novamente. Também respirei aliviado, mas nunca fiz um poema para os colírios Maxidex, Predfort, Oftpred (entre outros), fundamentais para combater essa teia conflituosa que tantas vezes apunhala meus olhos e me deixa com a visão turva e borrosa.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Caio Fernando Abreu

 

Acompanhei a repercussão em torno da demolição da casa onde o escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996) viveu seus últimos anos, no Bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Há anos havia uma pequena mobilização para que a casa fosse preservada e se transformasse em casa-museu ou centro cultural, mas não vingou. A casa nunca foi inventariada como bem cultural ou patrimônio histórico e, quando o novo proprietário decidiu colocá-la abaixo (como ocorreu semanas atrás), não houve como detê-lo.

Mas é bom que se ressalve que o acervo cultural do escritor está preservado e organizado num centro de estudos literários da PUCRS: o Delfos, espaço de documentação e memória cultural. Mais de 500 itens do autor catalogados, junto com os acervos de outros escritores sul-rio-grandenses como Pedro Geraldo Escosteguy, Lila Ripoll e Vera Karam. (Quando escrevia minha dissertação de mestrado, no início dos anos 90, presenciei o início da catalogação do acervo de Pedro Geraldo Escosteguy.)

Pois acompanhei a mobilização em torno da preservação da casa dos pais do escritor, afinal, aluno do Julinho (Colégio Júlio de Castilhos), os livros do Caio estavam entre os que circulavam na minha turma, junto com os de Fernando Sabino, Gabriel Garcia Marques, Dürrenmartt e Clarice Lispector. Foi um colega de aula quem me passou o Limite branco, que fora publicado naquela época (RJ, Ed. Expressão e Cultura, 1971). O personagem central é um rapaz na Porto Alegre do final dos anos 60, com muitos questionamentos a respeito da vida, que bate pernas pela Ponta do Gasômetro, no local onde havia as ruínas de um presídio recém posto abaixo. Um local decadente que fazia parte do roteiro de caminhada de meus colegas e eu.

 Poucos anos depois, em 1975, conheci o Caio no campus da UFRGS (no Parque da Redenção). Ele tentava retomar o Curso de Letras, tínhamos um amigo comum e conversamos diversas vezes no Bar do Antônio (no campus) e também nos bares da Esquina Maldita (esquina da Sarmento Leite com Osvaldo Aranha). Caio e meu amigo Alex Borloz (já falecido) haviam vivido em comunidade hippie, usado drogas alucinógenas, participado de festas orgiásticas e isso, para um jovem careta como eu, era fascinante. Um mundo que eu desconhecia.

O Alex (meu colega no Curso de História) passara por clínica psiquiátrica para desintoxicação e procurava ter uma “vida normal” (assim mesmo, com aspas, tentativa de fugir do modelo contracultural que o encantara). O Caio, por sua vez, mesmo reconhecendo que “o sonho acabou”, mantinha a cabeça nesse universo cultural e seus contos reproduziam isso de forma magnífica. Naquele ano de 75 ele lançava O ovo apunhalado (Editora Globo) e o acompanhamos em alguns eventos – o mais inusitado num show de rock, num cinema na praia de Atlântida. Caio deu um exemplar do livro para o vocalista da banda e, do palco, o rapaz fez o “lançamento da obra”, isto é, jogou-o na direção da plateia.

Motivado por essa comoção em torno da casa onde Caio viveu seus últimos anos de vida (já debilitado pela Aids) fui reler a biografia Caio Fernando Abreu, inventário de um escritor irremediável, de Jeanne Callegari (São Paulo, Ed. Seoman, 2008). Como aponta José Castello no prefácio, um perfil de Caio Abreu que se lê como um romance. A autora encarna a perspectiva do escritor e apresenta a sua trajetória de forma muito viva, enfatizando suas inquietações, ousadias, bom humor, depressões e a serenidade com que enfrentou o final de sua vida.


         No início dos anos 90, ela indica que Caio se apresentava “meio bruxo, meio mago” – o que talvez explique o modo como muitos o encaram atualmente. O escritor Caio Abreu parece ter adquirido um outro significado além do literário – no qual sempre teve reconhecimento, sendo publicado por grandes editoras (Globo, Brasiliense, Cia. das Letras, L&PM), com aval da crítica e instituições literárias (incluído na coleção “Autores Gaúchos”, do Instituto Estadual do Livro, em 1988).

Os novos leitores, no entanto, agregaram outros sentidos a sua literatura, que não alcanço. Tempos atrás, num evento acadêmico na UFSM, soube de uns estudantes que foram acender velas no seu túmulo (no Cemitério João XXIII, em Porto Alegre). Achei muito estranho e uma professora do Curso de Letras me disse: “Não é o Caio que tu conheces, é outro”. Lembrei disso acompanhando as repercussões da demolição da casa do escritor.

 Obs: em 1975, Caio Abreu estava retomando o Curso de Letras na UFRGS. Mas não aguentou, achou o ambiente terrível e fez meu amigo Alex e eu reconhecermos que, para concluir um curso universitário, só sendo um pouco careta também. Deve ter concluído, com a sua voz forte e muitas vezes irreverente, que "isso não é para mim".

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Um catador de lixo na minha rua

 

Fui surpreendido nesta manhã por um homem revirando o lixo. Não é cena rara na minha rua. Mas dessa vez me espantei. Fui na sacada, uma xícara de café na mão, e lá estava o sujeito, inclinado sobre a lixeira de um prédio, conferindo o material. A máquina fotográfica estava à mão e, com algum constrangimento, registrei a cena. Um espetáculo degradante e comum que volta e meia me atinge feito um soco.

Fiquei olhando o homem da sacada e logo o identifiquei. Volta e meia ele passa por aqui. Tem uma bicicleta, com um engradado de plástico preso ao bagageiro, onde vai colocando o que acha que vale à pena. Um catador criterioso. Barbudo e asseado, acho que está na faixa dos 60 anos e nos cumprimentamos quando cruzamos a mesma calçada. Impressionante a naturalidade como ele realiza a sua função de catador.

– Bom dia – ele disse certa vez, quando revirava a lixeira do meu prédio, e precisei fazer um esforço para responder. Parei na calçada, conversamos sobre o tempo e não percebi revolta nem indignação na sua voz. Era um homem pobre buscando o seu sustento numa atividade inusitada para a classe média asseada que represento.

Ele tem sempre vários cachorros ao redor e já ouvi um dos meus vizinhos perguntar como cuida de tantos animais e se não se preocupa com a possibilidade deles serem atropelados por motoristas imprudentes. O catador explicou que são bichos muito bons e que atendem ao seu comando. Nas sinaleiras, por exemplo, ele faz sinais com as mãos os avisando a respeito da hora de parar e de atravessar. Naquela ocasião em que o vizinho perguntou, reproduziu os gestos e nos permitiu ver o modo atento como os cães o acompanham. Uma bicharada que lhe dá muito orgulho, ele disse, e concordamos, ao observar os olhos doces dos cães.

Não sei o nome do catador de lixo que volta e meia cruza a minha rua e apenas assinalo a sua presença. A velha má consciência se ouriça dentro de mim e, mais uma vez, exercito o olhar sobre a pobreza extrema que se apresenta diante de mim com a maior naturalidade. A pobreza que se desnuda da sacada do apartamento, numa manhã fria e ensolarada de agosto.