quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Mares desconhecidos e tenebrosos

            – Assim tu não vais ser feliz – disse a moça ao celular, no corredor do shopping, e não ouvi a continuação da conversa. Com uma mão ela segurava o aparelho junto ao ouvido, com a outra ela gesticulava, andando a passos lentos junto às vitrines das lojas. Nós cruzamos um pelo outro e aquela frase ficou ecoando dentro de mim.

O que será que o seu interlocutor fazia que não colaborava na construção da felicidade?, pensei. Mas quem entende dessas coisas? Ontem de noite eu atravessei a praça central da cidade, praticamente vazia, e de repente vi passar um catador puxando o seu carrinho e uma criança ao lado, pulando e gritando. Uma criança feliz, me pareceu.

Praça Saldanha Marinho.

Recordei a faxineira do meu prédio me contando a respeito da sua infância, na década de 1980, quando ajudava a mãe a catar ferro velho e ossos nas ruas da cidade. Elas catavam ossos no lixo e nem imaginava que isso pudesse ter alguma utilidade...

Será que entendi direito? Ossos? Mas tive vergonha de perguntar à faxineira e fiquei calado no corredor do prédio, escutando.

– E graças a Deus nós conseguíamos nos manter – ela acrescentava.

         Ontem de noite atravessei a praça central da cidade, vindo do bar – onde me encontrei com os amigos, bebi vinho e falei de literatura, dos autores que andamos lendo: Peter Handke, Josué Guimarães, Luiz Vilela, Andrea Camilleri – e aqueles catadores (pai e filho, provavelmente) me indicaram um mundo desconhecido.

A moça que ainda pouco cruzou comigo no shopping estava destrinchando algum manual de felicidade e também me pareceu distante. Seus passos eram lentos, toda a sua atenção estava no celular e senti alguma gravidade naquela conversa.

Eu tomei um café com croissant numa lanchonete, folhei meu roteiro de viagem pela Turquia (para onde embarco daqui a uma semana) e li sobre dois castelos construídos nas margens do Estreito de Bósforo por turcos otomanos, quando eles se preparavam para conquistar Constantinopla. Construções dos sultões Yildrim Beyazit e Mehmet II.

No final da década de 1970 comecei a lecionar no Ensino de 1º Grau e todos os anos eu falava a respeito da queda de Constantinopla (1453), as mudanças que isso causou no comércio europeu e o quanto essa nova conjuntura motivou os portugueses a buscarem um novo caminho para as Índias. Eu dependurava um mapa-múndi na frente do quadro verde e apontava os locais desse mundo distante: Constantinopla, Lisboa, Calcutá. Os olhos dos alunos brilhavam e os do professor também. Acho que juntos desvendávamos aquele universo.

        Um mundo desconhecido que, nos últimos anos, vem se revelando de outra maneira para mim. Já estive em Lisboa, breve estarei em Istambul. Se felicidade é tornar o mundo mais conhecido, talvez eu esteja fazendo alguma. Mesmo assim, ainda tenho a impressão de que cruzo por mares tenebrosos e desconhecidos. Mares que me desafiam e às vezes atormentam.

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