segunda-feira, 30 de julho de 2018

Copacabana e seus roteiros


Copacabana fascina e provavelmente me engana. Nem sei que Copacabana eu conheço. Passei alguns dias hospedado num hotel desse bairro, na última semana, e constatei isso mais uma vez. É um espaço privilegiado, que provoca e seduz. Cada vez que visito o lugar tenho uma impressão diferente. Conheci Copacabana primeiramente através da literatura e do cinema, e é com essas informações que ainda vejo o lugar.

Assim, antes de viajar, procurei na estante de casa alguma coisa do que João Antônio escreveu sobre o bairro – “Ô Copacabana” (1978), por exemplo – e não encontrei. Mas achei um livro de Rubem Mauro Machado com três histórias policiais ambientadas no Rio de Janeiro, que li ao longo da viagem. Em uma dessas histórias – “Assassinato em Copacabana” –, um policial frequenta um boteco na Avenida Prado Júnior (Boteco do Aristeu) e ali encontra o escritor João Antônio “de bermudas, camiseta e chinelo de dedos, um tanto barrigudo, escondido atrás de um bigode mexicano”. O escritor convida o policial para uma partida de sinuca e ele recusa. João Antônio era bom jogador e o policial não quis ser encarar.

Caminhando pelas ruas de Copacabana, eram esses autores e suas histórias que conduziam o meu olhar. João Antônio deixou São Paulo para viver no entorno da praça Serzedelo Corrêa e produziu textos excelentes sobre a população do bairro, especialmente os tipos marginais. Em 1996 foi encontrado morto em seu apartamento. Tinha 59 anos e tornara-se um homem amargurado. Sua visão a respeito do bairro não é das mais agradáveis – mas nem por isso menos fascinante.



Mas nem tudo é literatura e muito menos literatura sobre os excluídos. Num fim de tarde, minha companheira me convidou para irmos ao bar do Copacabana Palace e lá fui eu conhecer esse território da elite. Seguramente um espaço desconhecido pelos personagens de João Antônio, mas cenário, isso sim, de algumas crônicas e memórias de Danuza Leão, cronista do mundo elegante.

Então, como se fosse um bacana, me instalei com minha mulher numa mesa próxima a piscina do famoso hotel. Pedi vinho branco e ela me falou sobre algumas figuras que frequentam o local, artistas globais e socialites que conheço de ver na TV ou de nome. O garçom que nos atendeu tinha sotaque castelhano e perguntei de qual cidade ele vinha. “Salta”, ele disse. Minha companheira comentou a respeito das múmias de crianças incas que estão expostas no museu de Salta e ele contou que estudou arqueologia. Foi aluno dos pesquisadores que descobriram as meninas incas, sacrificadas há 500 anos. As "múmias" mais bem preservadas do planeta.

Na véspera, na filial da Confeitaria Colombo (dentro do Forte de Copacabana), a garçonete que nos atendeu contou que era moradora da Rocinha. Falou com tranquilidade a respeito da vida que leva nesse bairro,  criando um filho pequeno, e disse que às vezes não podia sair de casa por causa dos tiroteios. Mas não falou isso de modo dramático, ao contrário.

Copacabana me parece que é isso: um espaço que se abre em várias possibilidades, todas elas devidamente tematizadas por boa literatura e bom cinema. O território dos marginais de João Antônio e o da elite perfumada que circula no Copacabana Palace. E seus habitantes, vindos dos mais variados recantos – de Salta, na Argentina, ou da Rocinha –, ampliam e reinventam as histórias do bairro.

Nem sei que Copacabana conheço. Leio o que os literatos escrevem, o que os cineastas filmam (revi “Copacabana me engana”, dias atrás), e vou criando um universo a partir disso. A literatura e o cinema são meus roteiros para esse bairro fascinante. E, sentado num banco da Avenida Atlântica, olhando o mar, observando o movimento dos banhistas num início de manhã, constato que o local bem merece a mitologia que se criou a seu respeito. Uma mitologia para todos os gostos.


Obs.: O livro de Rubem Mauro Machado citado acima é O executante (Rio de Janeiro: Record, 2000) e o filme – Copacabana me engana (1968) – foi dirigido por Antônio Carlos Fontoura, com Odete Lara e música-tema de Caetano Veloso, “Baby”, interpretada por Gal Costa.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

"Silêncio", de Scorsese

Foi um dos melhores filmes que assisti ultimamente: “Silêncio”, de Martin Scorsese, baseado no romance japonês de mesmo nome, de Shusaku Endo. 
Arrisco dizer que o filme é melhor que o livro. Li o livro com entusiasmo, assisti ao filme pela segunda vez e gostei ainda mais. Uma narrativa contundente. Mas sou suspeito. A temática religiosa tem me pegado: a busca do martírio, o embate com o silêncio de Deus – o “insondável silêncio de Deus”, como diz um dos personagens. Temas caros na história da Cristandade. Grandes santos procuraram o martírio – como São Francisco, Santo Antônio, Santa Teresa de Ávila – e alguns conseguiram. Uma aspiração de muitos católicos, até hoje. E, pairando sobre essas sensibilidades religiosas, sempre a esperança de um sinal divino. Um sinal que nas histórias eclesiásticas geralmente se evidencia, de um jeito ou de outro. Mas nas narrativas realistas, mais humanas – como é o caso do romance de Shusaku Endo e do filme de Scorsese –, é o silêncio que se impõe. E a constatação, como faz o personagem narrador do livro de Endo, que não somos tão fortes como Jó.

O filme inicia em Lisboa, em meados do século XVII, quando dois jovens jesuítas decidem partir para o Japão em busca de notícias sobre seu mestre, o padre Cristóvão Ferreira, que dizem ter renegado o Catolicismo. Os dois jovens não acreditam nisso. Por pior que tenha sido a tortura que infringiram ao mestre, os jovens imaginam que ele resistiu.

Nessa época, o Catolicismo iniciado pelo trabalho missionário de São Francisco Xavier não era mais aceito pelas autoridades japonesas. Os cristãos eram perseguidos e geralmente mortos. A repressão iniciara no final do século XVI, mas o catolicismo apenas refluiu, não desapareceu. A crucificação de 26 católicos, em 1597, em Nagasaki, é um marco dessa perseguição que se prolongou e se sofisticou (em técnicas de repressão e tortura) ao longo do século seguinte.

Cena do filme: os dois jovens missionários que buscam o padre Ferreira.
Ao chegar ao Japão, os jovens jesuítas são constantemente atormentados por essa conjuntura repressiva. Os portugueses não são bem-vindos. E os missionários descobrem que padre Ferreira (interpretado por Liam Neeson) foi confrontado com a tortura – com a possibilidade do martírio – e recuou. Segundo a rígida norma religiosa, ele fracassou. As cenas do padre Ferreira exposto à dor da tortura e da abjuração são um dos pontos altos do filme. Grande interpretação do ator Liam Neeson. Cenas dolorosamente humanas. Narrativa muito distante do tradicional padrão de história religiosa, que costuma representar o martírio como algo glorioso. No filme de Scorsese isso não acontece. Ao contrário.
Nem por isso o filme é menos religioso. A cena final que o diga. Diante do brutal silêncio de Deus – ou insondável, como diz um personagem –, diante da brutalidade dos homens também, se contrapõe a esperança humana. Frágil e tortuosa esperança, no caso. Humana esperança – muito distante daquela corajosa postura do bíblico personagem Jó, que não fraquejou um só momento.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Guerra do Paraguai e literatura de ficção


A Guerra do Paraguai (ou Guerra da Tríplice Aliança) não ocupa muito espaço na nossa literatura de ficção. No gênero romance, conheço apenas “A solidão segundo Solano López” (1980), de Carlos de Oliveira Gomes, “O rastro do Jaguar” (2009), de Murilo Carvalho – ambos com características de romance histórico, isto é, sem ruptura com a discurso historiográfico – e “Avante, soldados: para trás” (1992), de Deonísio da Silva – de caráter satírico, com intenção de subverter o discurso historiográfico. Provavelmente existam outros títulos (tomara que existam), mas fico com os citados, especialmente os dois primeiros por se adequarem ao meu modo de pensar o mundo e a literatura.

Reli “A solidão segundo Solano López” semanas atrás e gostei muito. Tinha uma boa lembrança do livro e confirmei essa impressão. Escrito no final dos anos 70, o romancista faz um prólogo onde explicita o seu alinhamento com o revisionismo histórico da época (que entendia a guerra contra o Paraguai devido às pressões do imperialismo britânico), e se propõe a um quadro geral do conflito militar. A tese da pressão imperialista foi contestada posteriormente (um dos seus principais expoentes, o argentino Leon Pomer, reconheceu o exagero da interpretação), mas a narrativa ficcional de Oliveira Gomes não fica prejudicada por conta disso.

Romance vigoroso, a narrativa acompanha a invasão dos exércitos da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai) a partir dos seus comandantes militares (Mitre, Caxias, Osório), enfoca também o lado paraguaio, sob o comando absoluto de Solano López, e o leitor tem uma visão geral do conflito, o passo a passo da guerra. No que diz respeito ao lado paraguaio, a narrativa também enfoca as disputas internas, como o surgimento de uma resistência ao ditador Solano López e o modo como esses opositores são neutralizados – neste último caso, com o auxílio da “terrível” Madame Lynch, esposa do ditador.

Mas o autor não enfoca apenas os ilustres personagens históricos (Mitre, Caxias, Osório, Solano López e Madame Lynch). Cria também um outro eixo narrativo, composto por personagens menores (provavelmente fictícios), e amplia o leque social dos atingidos pela guerra. Nesses personagens menores (homens e mulheres que não conquistaram lugar nos tradicionais livros de História) a guerra escreve de forma mais dolorosa o seu espectro de horrores e parece ser essa a intenção do autor: revelar o sofrimento que grandes interesses econômicos e políticos em confronto são capazes de produzir na população em geral. Presidentes e imperadores, diplomatas e generais movem-se orientados por grandes projetos – de organização da economia internacional, de formação de Estados Nacionais –, arrastam exércitos para a concretização de seus objetivos (às vezes caprichos), e isso se faz com uma soma de sofrimentos incalculáveis, não apenas de soldados, mas da população civil também.

Detalhe de quadro de Cándido López.
Já  em “O rastro do Jaguar”, de Murilo Carvalho, a abordagem é diversa, com outro tom (menos épico) e outra maneira (originalíssima) de enfocar o mesmo conflito militar. Nesse romance, um jornalista europeu (nascido em Portugal, criado na França), na virada do século XIX para o XX, se põe a escrever suas memórias, tendo como foco a trajetória de um amigo que ele acompanhou em viagem pelo Brasil (Bahia, Rio Grande do Sul) e Paraguai. O amigo fora levado criança para a França (pelo viajante Auguste Saint-Hilaire, que o adotara quando passou pelo Rio Grande do Sul, em 1820-21) e criado no continente europeu como se fosse francês. Aos 40 anos esse amigo do narrador descobre sua identidade guarani e decide voltar ao Brasil em busca do seu povo. Esse regresso coincide com a Guerra do Paraguai e tanto o jornalista quanto o índio se veem envolvidos pelo conflito.

Pelo olhar do jornalista (que envia artigos para um jornal parisiense) temos uma visão geral da guerra, enquanto pelo lado do índio ganhamos a perspectiva da grande massa indígena que atende aos apelos de Solano López e luta bravamente sob seu comando. Segundo o personagem narrador, os guarani (que constituíam o exército paraguaio) aguardavam um profeta-guerreiro que viria reerguer a nação indígena e identificaram no ditador essa figura mítica. Daí o engajamento dos índios e seu comprometimento na luta. Equivocadamente os guarani lutaram pelo projeto de Estado Nacional de López entendendo como um projeto que recuperasse também a dignidade indígena.

Como o romance é narrado por um europeu, a nação guarani é comparada aos antigos povos bárbaros que se constituíram em nações organizadas na Europa, posteriormente em Estados, num longo processo histórico que atravessou a Antiguidade, a Idade Média e se consolidou nos séculos XVIII e XIX. Um tempo histórico que os guarani não tiveram para si. Os indígenas foram engolfados por um processo civilizatório no qual eram os sócios menores e, durante a Guerra do Paraguai, estavam envolvidos numa luta de Estados Nacionais em formação, todos de matriz europeia (Paraguai, Brasil, Argentina), e para esse banquete os indígenas não eram convidados – a não ser como bucha de canhão.
Muito melancólico esse romance de Murilo Carvalho e muito atual também, na medida em que as lutas indígenas se renovaram nos últimos vinte anos, tanto no Brasil como na América Latina. Os povos indígenas procuram se recolocar na cena político-cultural e as lutas do século XIX seguramente ainda servem de material para reflexão. A Guerra do Paraguai continua sendo um depositário de grandes histórias – histórias importantes na nossa formação social – e às vezes estranho que poucos ficcionistas se aventurem a revive-la.