segunda-feira, 25 de maio de 2020

Histórias de família (16)

É na teia de um conglomerado empresarial militar que vejo o destino de meu pai sendo selado. Meu pai enredado nessa teia. Atormentado. E dando um desfecho dramático a isso tudo. Colocando um ponto final na história com um tiro na cabeça.
Visto na perspectiva do tempo, ganha sentido um comentário de meu primo (Joaquim Luiz), que conhecia as entranhas do mundo financeiro porto-alegrense.
Estávamos num encontro familiar e comentávamos sobre os acontecimentos de 78, as mortes do pai dele, do meu pai, falávamos do ambiente da época. As tensões existentes. As atividades profissionais daqueles dois homens e o quanto o envolvimento deles num projeto mirabolante (as pensões de coronéis para as viúvas do país inteiro – matriz do projeto do MFM) contribuiu para as suas aflições. Para os seus tormentos. Especialmente no caso do meu pai.
– Que vendaval aquilo tudo! – eu disse.
– Era o final de uma época. – Meu primo fala, bebericando num copo de uísque. – Naquele momento, todo o complexo empresarial já tinha ido pro saco.
O complexo empresarial criado por um conjunto de coronéis do Exército, no início dos anos 60, e que ganha fôlego ao longo do Regime Militar. Em 70, absorve o Banco da Província, em 72 cria o Banco SulBrasileiro (a menina dos olhos da organização) e daí se expande numa miríade empresas, investimentos, envolvendo uma ampla gama de atividades. E numa dessas empresas, como simples contador, o meu pai como funcionário.
Eu olho para o Joaquim Luiz e não entendo. Ele sabe de coisas que não sei. Esteve no interior do monstro. Eu não conheço a dinâmica do mundo econômico, muito menos o do financeiro. Sou um simples professor de História e só sei generalidades a respeito da formação social sul-rio-grandense.
Uma prima passa por nós, me vê de testa franzida, e comenta:
– Que cara é essa, Vitinho? Vai lá dar uma atenção pra tia Lêda. Ela está um pouco chorosa.
Eu faço sinal para o meu primo e vou ver minha mãe. Nunca mais retomo a conversa com ele. Por sinal, pouco conversamos a partir daí.
Visto dos dias de hoje, com o acúmulo de informações que estão disponíveis – as matérias de jornal publicadas a partir de 1985 (data da intervenção do Banco Central no SulBrasileiro e posterior liquidação judicial) –, é possível dizer que no final dos 70 o projeto mirabolante do MFM se escancarou como inviável. Os diretores sabiam disso. A troca de diretoria que ocorreu no início de 79 é emblemática da crise, aponta o jornalista econômico Delmar Marques.[i]
O que isso tudo poderia afetar e tumultuar a vida de um simples funcionário (um contador) desse conglomerado? Não sei. Contadores não decidem nada. Eles cumprem ordens. Muitas vezes são os operadores de maquiagens contábeis determinadas por diretores.
Conversando com o pai na mesa da copa – onde, aos domingos, muitas vezes ele aprontava algum balancete para uma empresa ou outra –, um dia ele me explica o quanto era obrigado a ocultar gastos, despesas e investimentos fracassados das empresas para as quais prestava serviço. E como tudo isso (os balancetes) ficava plausível, lógico, redondo.
Teria sido essa a função do pai, na teia do conglomerado? Maquiar alguma operação destrambelhada, alguma incompetência ou mesmo maracutaia? Não sei. Alguma coisa o atormentou, o afligiu e o levou ao desfecho trágico que deu fim a sua vida.
Minha mãe sabia que suas aflições (ou parte delas) tinham sua matriz no ambiente de trabalho. Ela pediu que ele resolvesse isso. No último dia de sua vida, ele saiu de casa dizendo que iria na empresa resolver esses problemas.
Depois soubemos que ele não foi. Passou o dia caminhando pela cidade.
Naquela festa familiar em que meu primo falou a respeito da debacle do conglomerado (que só se escancarou anos depois) eu terminei fazendo companhia pra mãe.
Durante anos ela e eu reviramos ao avesso o que sabíamos a respeito do vendaval de 78, que mudou definitivamente nossas vidas.
Da minha parte, não sei se entendi grande coisa. Mas senti que o vendaval passou. Calaram-se os raios, cessou a chuva, abriu o tempo e veio o Sol. De uma alguma maneira se fez a bonança, como ocorre na Sinfonia Pastoral, de Beethoven, que aprendi a escutar na eletrola de nossa casa em Pelotas.
O pai colocava o disco e comentava os movimentos da sinfonia. O quarto movimento, “A tempestade”, sempre causava apreensão. Mas o quinto movimento, “O hino de ação de graças dos pastores”, restabelecia a tranquilidade que a natureza também sabe comportar. Nem tudo é agonia.




[i] MARQUES, Delmar. Caso MFM / SulBrasileiro – ascensão e queda dos coronéis. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

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