Um dia um primo contou que o filho dele foi a Adria
visitar a terra do nosso avô. Queria se encontrar com os Biasoli – na verdade,
Biasioli, a grafia italiana do nosso nome, que foi alterada com o tempo – e ninguém
quis falar com ele. Conversou com um padre e esse foi categórico:
– Aqui ninguém quer contato com os parentes da
América.
Depois eu soube que isso é comum. Alguns italianos que
emigraram, foram para a Argentina, Brasil, Estados Unidos, voltaram (ou
voltaram seus descendentes) e questionaram a forma como seu deu a herança. Quiseram
saber com quem ficou a propriedade rural, a casa de pedra, o açougue, coisas
assim.
Os que emigravam saiam apressados das suas aldeias,
fazendo festa, em cortejo acompanhado por banda de música – como descreve Pozenato,
no romance A Cocanha - e na certa não se preocupavam com detalhes. Ora, a herança!
“Eles vão para a América e pensam estar agora livres
dos senhores e da polícia, dos contratos não cumpridos, da miséria e da fome.”
Depois, na hora do embarque, em Gênova, novo alvoroço, “alarido de choro,
gritos e risadas”. Addio Italia, addio per sempre, gritavam. Addio fame,
addio miséria.[i]
Anos depois, com a cabeça fria, esses italianos e
descendentes lembravam dos parentes que ficaram na Itália, faziam o
levantamento dos bens deixados para trás e talvez se incomodassem. Muitos
voltaram, questionaram a partilha dos bens familiares... e deixaram
ressentimentos. Mas isso não aconteceu com meus avós.
Mais de uma vez conversei com minha mãe (vó Lêdinha) a
respeito disso e nunca soube nada a respeito de Vincenzo e Oliva (os pais de
Vittorio, os meus bisavós). Muito menos dos que ficaram na Itália. Vó Lêdinha
conheceu seu Vittorio, dona Santa (esse era o nome da vó, Santa Marcon, nome de
solteira) e eles não falavam dos parentes.
– Deve ter acontecido alguma coisa – a mãe contava. E
especulava: – Teu avô foi um homem difícil, talvez tenha brigado com Deus e o
mundo. Quando eu casei com teu pai, em 1950, ele tinha amansado. Era muito bom
comigo. Tua vó morreu um tempo depois, ele ficou doente e ajudei a cuidar dele.
O vô e a vó começaram a vida de casados em Tietê, em
1895, e nesse período não eram mais colonos de fazenda. O vô trabalhava numa
companhia de navegação fluvial, enquanto a vó, ao que tudo indica, era exclusivamente
dona de casa.
O vô viajava pelo Rio Tietê, pegava o Rio Paraná, ia
até o Mato Grosso e fez essa viagem várias vezes. Até que pegou
malária, contraiu a doença mais de uma vez e sofreu por conta disso. Dores horríveis.
– Ouvia teu avô gritar, Vitinho. Eu era criança –
contava a tia Irani – e ficava assustada. Todo mundo corria pela casa para
atender o Papai. Ele pegou malária uma, duas, três vezes, até que o médico disse
que não podia mais reincidir.
Não sei se alguém pode pegar malária mais de uma vez –
mas é assim que eu lembro a tia contar. Na sala do apartamento dela, em Porto
Alegre (num prédio na Avenida Ramiro Barcelos, na frente do Hospital de Clínicas),
a tia me servindo doce e perguntando.
– Queres mais doce de abóbora?
– Quero sim – e eu repetia uma, duas vezes as
conservas feitas por ela, uma de abóbora, outra de pêssego, só para provar. A
tia era uma cozinheira de mão cheia. E ela falando que o vô gritava durante a
noite, sofria, tinha convulsões.
– Aí o médico chamou a Mamãe e falou que ele precisava
viver num lugar onde a malária não existisse. Se ele fosse infectado novamente,
morreria.
– Foi um desespero – ela continuava. – Mamãe perdeu o
tino. Chorava.
É assim que eu lembro. A tia Alice e a tia Landa confirmaram
a doença, sem maiores detalhes. Era malária mesmo? Não sei.
Quando contei para a mãe, ela falou que era uma doença
tropical, dessas que acometem os povos do centro do País, na Floresta Amazônica.
– Naquele tempo não era comum um diagnóstico preciso –
a mãe ponderava. – Mas foi por motivo de saúde que ele deixou São Paulo e veio para
o Rio Grande do Sul. Um clima melhor ou diferente. Novos ares.
E as tias me garantiram:
– Foram os patrões do teu avô que acertaram a vinda dele
para a Viação Férrea, no Rio Grande do Sul. Os chefes de uma e de outra tinham
ligações. Eram empresas de capital estrangeiro e o acerto se deu dessa maneira.
Calculo que isso ocorreu no final da década de 1910.
(Cálculo que refaço todas as vezes que conto essa história.) Os belgas já tinham
perdido o controle acionário da Ferrovia, no Rio Grande do Sul, e passado para
os norte-americanos – vinculados a uma holding de Percival
Farquhal, que tinha investimentos nas ferrovias paulistas, que controlava a
companhia que construía a estrada de ferro entre São Paulo e Rio Grande do Sul,
entre as cidades de Itararé e Santa Maria.
Nesta época (década de 1910) o vô talvez já deixara a navegação
e atuava em alguma ferrovia paulista. Quem sabe trabalhasse na Sorocabana, vinculada aos
investimentos de Farquhal, não sei. Divagações de um professor de História...
Seja como for, vale o relato das tias. História familiar
se reconstrói na base de relatos orais – sempre questionáveis pela
historiografia acadêmica. Mas história familiar é isso: memória, narrativa
emocional, beirando o relato mítico. No caso de uma família de imigrantes, a
aproximação me parece com os mitos de travessia, de viagem marítima. Ulisses
buscando sua casa depois da Guerra de Tróia. E nós, os descendentes, forjados na tradição de Telêmaco (o filho de Ulisses), buscando reconstruir a trajetória do Patriarca.
Assim, se o vô desembarcou no porto de Santos com uma
mão na frente e outra atrás, com 14 anos de idade – viagem subsidiada, mão-de-obra barata para a cafeicultura –,
não foi dessa maneira que desceu para o Sul. Com mais de 40 anos, tornara-se um
trabalhador qualificado. Ingressou na Viação Férrea e alcançou a posição de
engenheiro prático.
Meu pai se orgulhava disso:
– Teu avô não fez faculdade. Aprendeu trabalhando. Se tornou
engenheiro dessa maneira.
Um imigrante que ascendeu social e economicamente.
Sustentou uma família de 14 filhos. E nunca voltou a Itália. Não reivindicou
parte da pequena propriedade rural que talvez seus avós tivessem. Não sei. Tenho
a impressão de que meu pai sabia. Sabia que seu pai, Vittorio, desdenhou o
passado rural de seus antepassados e que sua trajetória de lavrador a
engenheiro prático foi a sua grande conquista. A sua travessia.
E talvez isso os Biasioli da Itália sequer desconfiem.
Provavelmente nem se interessem.
[i] POZENATO,
José Clemente. A Cocanha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2000. 1º vol. da
trilogia sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul.
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