No final dos anos 90 estive na Hospedaria dos
Imigrantes, em São Paulo, e havia terminais de computador para se digitar o
nome dos antepassados e se obter informações a respeito dos mesmos. Quando
chegaram, com que idade, qual profissão e até o nome do navio.
Eu digitei o nome do avô – Vittorio Biasoli – e não
encontrei coisa alguma. Fiz várias tentativas, mudei um pouco a grafia e nada.
Anos depois um sobrinho – Rubens Ernesto – conseguiu encontrar
o registro, não sei como. O nome da família tinha sido abrasileirado (alguns
preferem dizer “adulterado”), meu sobrinho descobriu isso e achou o registro na
hospedaria. O sobrenome que a família do vô trazia, quando aportou no Brasil, era
Biasioli.
Como se deu a mudança? Não sei. Na certidão de
casamento ainda está o nome original. Na certidão de óbito não, o nome já está
alterado.
A hipótese mais provável é de que tal mudança se deu
em função da naturalização do avô, durante o Estado Novo. Pressionado pela
política de nacionalização de Vargas, talvez incomodado com a suspeita de ser
um quinta-coluna (durante a Segunda Guerra Mundial), seu Vittorio mudou de
nacionalidade, abrasileirou-se.
Conversando com meu pai na década de 70, eu soube desse processo de naturalização do avô. Mas não fazia ideia de que ele alterara a grafia
do nome.
Nós conversávamos sobre o período da guerra e o pai contava
que seu Vittorio sempre teve simpatia por Mussolini. Era um fascista? Provavelmente
não. Era um homem autoritário na família, no trabalho, e um conservador nos costumes. No campo político, o que é certo é que não possuía nenhuma simpatia pelo anarquismo e socialismo. O que o pai e o tio Victor acentuavam era a simpatia por
Mussolini, não propriamente pela ideologia fascista. Pela figura do líder que reergueu a Itália. Estranhamente, as
tias nunca comentavam isso.
O fascismo agradou muita gente quando surgiu na
década de 1920 e se consolidou nos anos 30. Mussolini se fez primeiro-ministro e
passou a mandar mais do que o rei. Barrou o avanço da esquerda, reorganizou a
economia e a sociedade italianas e também ensaiou uma política colonialista na
África. Com essas ações granjeou entusiasmos na Itália – inclusive na Igreja Católica –
e no mundo inteiro.
Perón se empolgou com o fascismo. Vargas, mais
discreto, também. Até Churchill fez referências elogiosas a Mussolini em
determinado momento – Churchill, que nunca se enganou em relação a Hitler. O campo
conservador, de modo geral, viu com bons olhos aquele que hoje temos a imagem
de bufão.
O que dizer então de velhos italianos pelo mundo
afora, que um dia se viram obrigados a abandonar a terra natal e buscar oportunidades na
América? Oportunidades que sua terra de origem foi incapaz de lhes proporcionar
e que depois, com Mussolini, parecia capaz.
No Brasil, foram muitos os simpatizantes de Mussolini entre
os imigrantes e seus descendentes. Muitos deles sem muito entendimento da ideologia.
Empolgavam-se com a terra natal se destacando no cenário internacional,
crescendo economicamente, disputando com as potências europeias territórios da
África como a Líbia e a Abissínia.
O vô Vittorio talvez se enquadrasse nesse perfil. Tio Victor
contava que ele sintonizava o rádio na emissora oficial do Duce e ouvia as
notícias do governo da Itália. Durante a guerra, como o Brasil era adversário de Mussolini,
o vô ligava o rádio com o volume bem baixo para os vizinhos não escutarem.
Tio Victor, por sua vez, sintonizava na BBC, colocava
o volume bem alto para escutar as notícias dos Aliados e sabia que ele não
reclamaria.
– O Velho se calava, engolia – o tio comentava, rindo.
E fiquei com a impressão de que nenhum dos quatro
filhos homens acompanhou o pai na simpatia ao Duce. Todos eles penderam para o
campo dos Aliados. Tio Cléo esteve a ponto de embarcar como
integrante da FEB... Essa última informação surgiu numa conversa entre meu pai e tio Henrique (nos anos 70, P. Alegre, apartamento da Rua Sete de Abril), mas ficou vaga. Nenhum dos dois tinha certeza. Só recordo o tio Henrique afirmando:
– A guerra é uma coisa terrível.
E contou que participou de um batalhão gaúcho na
guerra contra São Paulo (Revolução Constitucionalista de 1932), que sua tropa
ficou vagando sem alimentação no território paulista, que eles só tinham
laranjas para comer, e não disse mais nada. Da sua experiência de militar, só falou
isso.
Na verdade, nem garantiu que foi na Revolução
Constitucionalista que ele combateu. Eu sugeri esse episódio e ele disse
que sim, talvez.
– A guerra é uma coisa terrível – ele só tinha certeza disso.
Quando voltei a Hospedaria dos Imigrantes, em 2016,
não encontrei os terminais de computador. Nem tive acesso aos arquivos com os
registros dos imigrantes. O setor de arquivos estava fechado naquele dia.
Dormitórios. Hospedaria do Imigrante. |
A hospedaria estava reformada e entre as
novidades havia um espaço que recriava os antigos dormitórios. Várias camas beliches
uma ao lado da outra, lençóis brancos, levando o visitante a imaginar o que os imigrantes
tinham pensado ou sonhado, quando deitados naquelas camas... Quantas angústias,
sonhos, e expectativas.
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