segunda-feira, 27 de abril de 2020

Histórias de família (6)

No final dos anos 90 estive na Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, e havia terminais de computador para se digitar o nome dos antepassados e se obter informações a respeito dos mesmos. Quando chegaram, com que idade, qual profissão e até o nome do navio.
Eu digitei o nome do avô – Vittorio Biasoli – e não encontrei coisa alguma. Fiz várias tentativas, mudei um pouco a grafia e nada.
Anos depois um sobrinho – Rubens Ernesto – conseguiu encontrar o registro, não sei como. O nome da família tinha sido abrasileirado (alguns preferem dizer “adulterado”), meu sobrinho descobriu isso e achou o registro na hospedaria. O sobrenome que a família do vô trazia, quando aportou no Brasil, era Biasioli.
Como se deu a mudança? Não sei. Na certidão de casamento ainda está o nome original. Na certidão de óbito não, o nome já está alterado.
A hipótese mais provável é de que tal mudança se deu em função da naturalização do avô, durante o Estado Novo. Pressionado pela política de nacionalização de Vargas, talvez incomodado com a suspeita de ser um quinta-coluna (durante a Segunda Guerra Mundial), seu Vittorio mudou de nacionalidade, abrasileirou-se.
Conversando com meu pai na década de 70, eu soube desse processo de naturalização do avô. Mas não fazia ideia de que ele alterara a grafia do nome.
Nós conversávamos sobre o período da guerra e o pai contava que seu Vittorio sempre teve simpatia por Mussolini. Era um fascista? Provavelmente não. Era um homem autoritário na família, no trabalho, e um conservador nos costumes. No campo político, o que é certo é que não possuía nenhuma simpatia pelo anarquismo e socialismo. O que o pai e o tio Victor acentuavam era a simpatia por Mussolini, não propriamente pela ideologia fascista. Pela figura do líder que reergueu a Itália. Estranhamente, as tias nunca comentavam isso.
O fascismo agradou muita gente quando surgiu na década de 1920 e se consolidou nos anos 30. Mussolini se fez primeiro-ministro e passou a mandar mais do que o rei. Barrou o avanço da esquerda, reorganizou a economia e a sociedade italianas e também ensaiou uma política colonialista na África. Com essas ações granjeou entusiasmos na Itália – inclusive na Igreja Católica – e no mundo inteiro.
Perón se empolgou com o fascismo. Vargas, mais discreto, também. Até Churchill fez referências elogiosas a Mussolini em determinado momento – Churchill, que nunca se enganou em relação a Hitler. O campo conservador, de modo geral, viu com bons olhos aquele que hoje temos a imagem de bufão.
O que dizer então de velhos italianos pelo mundo afora, que um dia se viram obrigados a abandonar a terra natal e buscar oportunidades na América? Oportunidades que sua terra de origem foi incapaz de lhes proporcionar e que depois, com Mussolini, parecia capaz.
No Brasil, foram muitos os simpatizantes de Mussolini entre os imigrantes e seus descendentes. Muitos deles sem muito entendimento da ideologia. Empolgavam-se com a terra natal se destacando no cenário internacional, crescendo economicamente, disputando com as potências europeias territórios da África como a Líbia e a Abissínia.
O vô Vittorio talvez se enquadrasse nesse perfil. Tio Victor contava que ele sintonizava o rádio na emissora oficial do Duce e ouvia as notícias do governo da Itália. Durante a guerra, como o Brasil era adversário de Mussolini, o vô ligava o rádio com o volume bem baixo para os vizinhos não escutarem.
Tio Victor, por sua vez, sintonizava na BBC, colocava o volume bem alto para escutar as notícias dos Aliados e sabia que ele não reclamaria.
– O Velho se calava, engolia – o tio comentava, rindo.
E fiquei com a impressão de que nenhum dos quatro filhos homens acompanhou o pai na simpatia ao Duce. Todos eles penderam para o campo dos Aliados. Tio Cléo esteve a ponto de embarcar como integrante da FEB... Essa última informação surgiu numa conversa entre meu pai e tio Henrique (nos anos 70, P. Alegre, apartamento da Rua Sete de Abril), mas ficou vaga. Nenhum dos dois tinha certeza. Só recordo o tio Henrique afirmando:
– A guerra é uma coisa terrível.
E contou que participou de um batalhão gaúcho na guerra contra São Paulo (Revolução Constitucionalista de 1932), que sua tropa ficou vagando sem alimentação no território paulista, que eles só tinham laranjas para comer, e não disse mais nada. Da sua experiência de militar, só falou isso.
Na verdade, nem garantiu que foi na Revolução Constitucionalista que ele combateu. Eu sugeri esse episódio e ele disse que sim, talvez.
– A guerra é uma coisa terrível – ele só tinha certeza disso.
Quando voltei a Hospedaria dos Imigrantes, em 2016, não encontrei os terminais de computador. Nem tive acesso aos arquivos com os registros dos imigrantes. O setor de arquivos estava fechado naquele dia.
Dormitórios. Hospedaria do Imigrante.
A hospedaria estava reformada e entre as novidades havia um espaço que recriava os antigos dormitórios. Várias camas beliches uma ao lado da outra, lençóis brancos, levando o visitante a imaginar o que os imigrantes tinham pensado ou sonhado, quando deitados naquelas camas... Quantas angústias, sonhos, e expectativas.

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