No período colonial, havia uma
expressão utilizada para designar o processo de desumanização que os negros
africanos sofriam ao se transformarem em escravos e passarem a trabalhar nas
lavouras, nos engenhos e nas minas: descaroçado.
Homens e mulheres tinham os cernes de suas vidas (caroços) extirpados e ficavam
vazios por dentro.
Lembrei dessa expressão um dia
desses, enquanto caminhava pela rua. Estranhamente me senti vazio, como se algo
houvesse sido arrancado de mim. Estava no centro da cidade e parei na calçada. Constatei
as pessoas ao meu redor e tive a impressão de que eram conduzidas por propósitos
muito claros. Iam ao supermercado, voltavam para casa, buscavam os filhos na
escola e isso configurava suas vidas. O mundo tinha sentido, coisas e pessoas possuíam razão de ser, e eu, no entanto, alheio a isso. Descaroçado, pensei, era isso que acontecera comigo.
O leitor dirá que estou exagerando
e concordo. Naquele momento, caminhando no centro da cidade de Santa Maria, eu
era um personagem de filme vivendo um drama surreal. Perdera a minha
identidade, a minha razão de ser. Parei na calçada, procurei a parede mais
próxima e me encostei para observar o movimento da rua. Constatar a imensidão
do mundo e minha insignificância não é uma experiência nova. Já vivi isso de
forma mais intensa e hoje, ao menos, consigo não me apavorar. Espero passar e sigo
em frente.
Após a tempestade vem sempre a
bonança – ouvi desde pequeno -, o difícil é esperar. Reencontrarei meu caroço,
minha alma e o sentido das coisas – é só uma questão de tempo. O mundo voltará
a ter sentido e roda do mundo girará sem muita estranheza. Estou no centro de
Santa Maria e recordo que, quando lecionava no ensino fundamental e abordava o
mundo colonial, afirmava que a ordem política e social descaroçava os escravos, mas havia a possibilidade da resistência e até da
rebelião. A possibilidade de reencontrar o cerne da vida e humanizar-se. Reencontrar o sentido das coisas e sentir-se parte do mundo. A possibilidade, ao
menos. A esperança, enfim.
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