quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Tesouro roubado

 

Entre 1985 e 89, lecionei numa escola da Cidade Baixa, a Escola Estadual de 1º Grau Olintho de Oliveira. Tinha me mudado para o centro da cidade e a transferência de uma das minhas matrículas para uma escola perto de casa não era só uma comodidade, mas também uma economia em passagens de ônibus.

Dessa maneira, comecei a lecionar pela manhã na Escola Feijó (quase no limite com Alvorada) e, à noite, no Olintho de Oliveira, na Rua da República. Uma escolinha que funcionava num casarão antigo, mais um prédio de construção recente (de tijolos vermelhos) nos fundos do enorme pátio. O doutor Olintho (a quem a escola homenageava no nome), além de médico e professor de Medicina, fora um intelectual atuante na vida cultural de Porto Alegre no início do século XX, e isso eu sabia vagamente (devido às leituras da coluna do Aldo Obino no Correio do Povo e de conversas com minha sogra).[i]

O casarão do falecido médico estava em condições tão precárias que não abrigava nenhuma sala de aula (todas as salas de aula estavam no prédio anexo), apenas a direção, a secretaria, o SOE, a cozinha, o refeitório e a biblioteca funcionavam ali.

Uma vez chegaram uns livros do IEL (Instituto Estadual do Livro), enviados pela DE (Delegacia de Educação), e eu me interessei por uma reedição d’O tesouro do Arroio do Conde, de Aurélio Porto. Sentado na frente da mesa da bibliotecária (numa sala do térreo do velho casarão, numa noite chuvosa), comecei a folhear o livro, me inteirar do assunto – um folhetim publicado em 1931, editado pela Globo em 1933, reeditado pelo IEL em 1983, com prefácio elogioso de Barbosa Lessa (Secretário de Cultura do Governo Amaral de Souza) – e a responsável pela biblioteca me disse:

– Leva pra ler em casa, Vítor. Só tu pra se interessar por isso.

E completou:

– Se gostares, fica com o livro. Ninguém vai sentir falta.

Pois eu o trouxe para casa, levei um tempão para ler do início ao fim... e nunca mais devolvi. Até hoje tenho o livro como uma espécie de tesouro roubado desse mundo escolar que frequentei. Um folhetim romântico (de “sabor popular”, diz Barbosa Lessa), na qual uma moçoila de 15 anos, numa estância na região de Guaíba, no ano de 1777, desencadeia paixões em dois marmanjos. Um deles, um contrabandista semibárbaro (filho de Jerônimo de Ornellas); o outro, um tenente do Regimento dos Dragões, educado em Academia Militar e com atos de bravuras na defesa da Colônia de Sacramento. Dois marmanjões caídos de amores por uma guria.

Além dessa trama romântica, uma narrativa da formação da sociedade rio-grandense (a mistura dos bárbaros do campo com os conquistadores europeus, mediados pelo amor de uma donzela) e a tentativa de criação de uma lenda em torno disso. Um resultado sofrível, do meu ponto de vista, mas nem por isso menos interessante.

Com a imaginação povoada por essas fantasias gauchescas e românticas, eu atravessava o pátio entre o casarão e o prédio anexo e ia dar aulas de História para as turmas de 5ª a 8ª séries. Algumas vezes falava do passado sul-rio-grandense – as lutas de fronteiras, a presença dos indígenas, a figura do gaúcho, as primeiras estâncias –, mas nunca sobre O tesouro do Arroio do Conde. Essa estranha preciosidade eu sempre guardei só para mim.



[i] Aldo Obino (1913-2007) fez crítica de arte no Correio do Povo (de 1938 a 1984) e era uma referência para quem se interessava por arte (mesmo não concordando com sua perspectiva conservadora). Além disso, às vezes historiava a vida cultural porto-alegrense e recordo que num dos seus artigos citou o papel de Olintho de Oliveira (1865-1956) na criação da Academia Rio-Grandense de Letras (1901) e do Instituto de Belas Artes (1908). Minha sogra, dona Célia (nascida em 1912), era leitora voraz do Correio do Povo (das colunas de Obino inclusive) e conversámos muito a respeito da vida cultural da cidade. A partir das suas observações (muitas delas oriundas da sua vivência) fui aprofundando meu entendimento sobre o passado porto-alegrense e, numa das nossas conversas, entrou o doutor Olintho – que ganhou relevo para mim a partir do momento em que comecei a trabalhar na casa onde ele morou algum dia.

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