Há lembranças que não passam de lampejos. Às vezes
apenas uma frase, um olhar, um comentário dito rapidamente. Por exemplo: chego
na escola no início da tarde (em Canoas) e uma professora está contando (na
sala dos professores) que foi ao hospital visitar uma aluna que apanhou da mãe.
A surra foi tão grande que a menina teve de ser levada ao pronto-socorro.
Lembro da professora falando e não recordo se ela
estava indignada com o fato ou não. Ela conta que, ao chegar ao saguão do hospital,
a mãe da menina estava lá, debulhada em lágrimas, dizendo que “não era isso que
queria fazer”.
Escuto o relato preparando meu material para as
aulas que teria de ministrar em seguida, a sirene da escola já vai tocar, tenho
quatro ou cinco períodos de aulas pela frente e minha atenção está dividida. Nunca
soube o nome da aluna, nunca identifiquei a guria entre as minhas dezenas de
alunos.[1]
Nem recordo o desdobramento do caso: se a menina foi atendida pelo SOE nem se a
mãe também teve algum aconselhamento ou coisa semelhante.
Não havia Estatuto da Criança e do Adolescente, não
havia Conselho Tutelar, e não lembro como casos como esse eram conduzidos. Da minha
parte, às vezes tomava conhecimento de casos extremos de violência doméstica (raros),
mas sempre de forma fragmentada. Minha função era falar a respeito das
Capitanias Hereditárias, do trabalho escravo, das revoltas nativistas, da
formação do Estado brasileiro e me limitava a isso.
– Professor ensina conteúdo, educação é tarefa dos
pais. Se os pais ainda acham que devem surrar os filhos, para melhor educá-los,
é problema deles.
Costumava ouvir esse tipo de comentário e não
discordava. Mas ficou a lembrança de que muita coisa ocorria com aquelas
crianças – que eu assistia entrarem sorridentes pelo portão da escola –, muita coisa
a respeito das quais eu vislumbrava e que talvez fosse melhor saber e agir a
respeito.
– Muitas delas apanham, como nós apanhamos, Vitor –
me dizia um colega que eu sempre achei que sabia das coisas, isto é, conhecia o modo como
viviam nossos alunos.
– Eu apanhei pouco – eu falava. – Minha mãe era
professora primária e estudou Emílio, de Rousseau. Ela não era adepta de práticas
pedagógicas violentas. Meu pai fora criado à base de surras, mas ouvia muito
minha mãe e se continha.
Assim eu respondia ao meu colega e ele ria. Falava que minha mãe devia
ser uma mulher interessante. Um dia comentei sobre a menina que fora parar no
hospital e ele divagou:
– Deve ter sabido que ela andava namorando por aí e
teve medo que a guria engravidasse. As mães ficam loucas com isso.
Obs.: Emílio
ou Da Educação foi um romance a respeito da educação de um
nobre e também de sua possível esposa, publicado por Jean-Jacques Rousseau, em
1762. Tornou-se a base de grandes teorias educacionais e, pelo que contava minha mãe,
ainda constava da bibliografia da Escola Complementar, em Pelotas, no início da
década de 1940.
[1] Eu
costumava ter entre 14 e 16 turmas (a maioria com dois períodos por semana),
cada uma com 25 alunos (mais ou menos), o que resultava numa média de 350
alunos e uma lista danada de nomes, rostos, perfis e histórias devidamente
embaralhados.
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