Nos anos 1980, um dos meus assuntos recorrentes era
o Regime Militar brasileiro. Fui leitor de primeira hora de Brasil: Nunca
mais (Ed. Vozes, 1985) e senti verdadeiro embrulho no estômago ao longo da
leitura. A truculência da repressão fora bem pior do que imaginara. Encontrei a
crônica abaixo (publicada no jornal A Terceira Margem, em setembro de
1991) e acho que o texto dá conta tanto do sentimento com que vivi os anos 80
como o modo como o Regime Militar ainda se fazia presente.
Segue a crônica, feita com personagens imaginários,
criados a partir do que eu experimentava, isto é, um desalento em relações às
condições socioeconômicas do País (que a Nova República / Governo Sarney não conseguira modificar):
Até um mês atrás, Berenice acreditava em saúde pública. Mas a última campanha contra o sarampo deixou-a bastante descrente. “Eles gastam muito em propaganda, têm um pessoal que sabe pousar na TV, mas na hora H as vacinas estão vencidas”, ela desabafou para o marido.
Berenice tem uma filha de cinco anos e fez questão
de atender ao apelo da Secretaria de Saúde. Mas teve receio de contaminação por
agulhas e foi tranquilizada por uma enfermeira. Ela explicou que “pistolas”
injetavam por pressão e não utilizavam agulhas. O marido achou a explicação
razoável e eles resolveram confiar. Berenice perdeu uma tarde de serviço no
Banco e levou a menina ao Posto de Saúde.
Uma semana depois, o marido abre o jornal e lê para
ela que as vacinas estavam sob suspeita. Não haviam sido preparadas
adequadamente, os prazos de validade estavam vencidos, técnicos do Rio de
Janeiro vinham investigar. Berenice sentiu o chão faltar aos seus pés e abraçou
a filha como se fosse o fim. Passou metade da noite sentada ao lado da menina, ela
não desconfiou de nada e gostou de ver a mãe junto de si. Berenice comentou com
o marido que agora sabia o que era ser uma cidadã de segunda classe. E acrescentou:
“a maioria dos brasileiros está na mira da incompetência deles”.
E hoje eles recordam que há catorze anos, em agosto de 1977, enfrentavam a polícia de choque na Avenida João Pessoa, sonhando com um Brasil melhor. Eram estudantes universitários e lutavam contra a ditadura. Expunham-se diante dos cassetetes da polícia e fugiam quando eles se aproximavam. Numas dessas fugas, Berenice escorregou na calçada e quebrou a ponta de um dente. Um dente contra a ditadura. Berenice lembra até hoje. E não sabe se valeu à pena. Se alguma coisa vale à pena.
(A Terceira Margem – P. Alegre, nº. 7 – setembro / 1991. P. 8, com o título "Saúde Pública".)
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