Muita pretensão escrever a respeito de Paulo Freire, o qual entendo como um pensador, muito mais do que um pedagogo voltado às questões práticas da educação. Mas fui leitor entusiástico de seu livro Pedagogia do oprimido e não posso deixar passar o seu centenário sem um comentário no blog. Nem que seja um simples registro a respeito do modo como sua obra me marcou.
Pedagogia do oprimido teve a sua primeira edição em espanhol, em 1968, e só
em 1974 ganhou publicação no Brasil.
Entre 1974 e 77, cursei graduação em História e, apesar
das professoras das disciplinas pedagógicas não se referirem ao autor, era este
o livro que nós, os estudantes, líamos. Os estudantes, claro, vinculados ao ME
(movimento estudantil) e propensos a endossar a tese freireana da educação como
ato político libertador. A professora de Didática vinha com Skinner, nós
torcíamos o nariz e líamos Paulo Freire sem comentar sobre isso em sala de
aula.
Mas, quando iniciei a lecionar, a partir de 1978, me
dei conta de que o buraco era mais embaixo. Resumidamente, conclui que, “desenvolver
o pensamento crítico dos alunos” não era tarefa fácil e baixei a bola. Foi um
movimento instintivo, provocado pela necessidade de me enquadrar no mundo
escolar, e não uma revisão do pressupostos freireanos.
De algum modo, entendi que Freire não escrevera para os
professores de escola, os professores do ensino regular, e que sua fala era endereçada
aos educadores de cursos não regulares. (A capa das primeiras edições no Brasil
bem indicava isso, por sinal.) Não deixei de compreender que a educação era um
ato político, que a libertação das opressões era o grande ideal, mas não sabia
como concretizar esse ideário nas minhas aulas, com alunos de 1º Grau (o equivalente,
hoje, ao Ensino Fundamental). Como articular as tarefas básicas do professor,
isto é, dar conta dos conteúdos do currículo oficial, e, ao mesmo tempo, desenvolver
a tal consciência crítica, respeitando as capacidades de entendimento e
sensibilidade da gurizada?
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Capa das primeiras edições de Pedagogia do oprimido. |
Uma empreitada e tanto. Para dar conta disso, gastei
muita saliva com os alunos e com meus colegas. Quanto debate sobre os conteúdos
educacionais relevantes para os estudantes, quanta discussão a respeito da realidade
econômica, social e política (como entendê-la, como se posicionar diante dela) e
por aí vai. Conversas intermináveis que espero terem sido proveitosas para os outros como foram para mim. Da minha parte, aprendi muito. Lecionando em
Alvorada e Canoas para uma meninada de classes populares, ouvi a respeito do
mundo em que viviam, o modo como viam as coisas e as suas aspirações.
Tive diálogos emblemáticos, que podem ser resumidos assim:
– O que eu ganho aprendendo sobre Napoleão Bonaparte? –
me perguntou um rapaz de ensino noturno, na 8ª série, em Canoas.
– Napoleão é fundamental no processo de consolidação
do projeto burguês, do Estado liberal e da economia capitalista – eu respondi.
– E o que o mundo burguês e capitalista tem a ver
comigo? – o aluno rebateu, rindo.
O aluno em questão morava na Vila Mathias Velho, numa área
ainda não atendida por esgoto e os traficantes lhe ofereciam serviço no qual
ele ganharia o equivalente a um salário mínimo por semana. O sistema capitalista
consolidado (mesmo numa cidade industrial como Canoas) não lhe oferecia grandes
perspectivas, ele me dizia
E eu, professor de ensino regular, enquadrado
no sistema educacional oficial, fiquei sem saber o que dizer. Engasguei e
voltei a falar sobre Napoleão e a nova ordem criada a partir da Revolução
Francesa.
– Esta é uma realidade histórica que precisamos
conhecer – devo ter dito –, se um dia quisermos mudar a realidade em que
vivemos.
Um diálogo que bem reflete a minha vivência como professor, minhas pretensões e debilidades. A conversa com os alunos nem sempre levava ao que
eu pretendia – um interesse cada vez maior em decifrar o mundo, entender a
formação histórica da sociedade em que vivíamos –, mas era um desafio
estimulante.
Nesses primeiros anos de magistério (entre 1978 e 1984),
caíram por terra muitas das minhas perspectivas enquanto educador, mas
permaneceu algo que ganhei na leitura empolgada de Pedagogia do oprimido:
a disposição humanista em dialogar com os alunos e colaborar quanto ao entendimento do
mundo. Mais do que a intenção revolucionária (presente na Pedagogia...,
ressignificada por Freire nos anos 90), ficou a dimensão humanista do
pensamento freireano e a sua aposta na educação dialógica.
Não sei que rumo tomou o meu aluno questionador a
respeito da validade de aprender sobre Revolução Francesa e Napoleão, porém imagino
que, seja qual for o caminho, ele não esqueceu as aulas de História. Que essas
aulas tenham sido significativas no seu processo de decifração e compreensão do
mundo. Afinal, foi Paulo Freire quem orientou o professor que as ministrava.
Foi o humanismo freireano que inspirou aquelas conversas, numa escola estadual
de Canoas.
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