terça-feira, 26 de outubro de 2021

O mendigo (memória dos anos 80)

           Eu estava comendo um sanduíche no balcão de um bar e avistei pela janela: um homem sentado no chão da calçada. Me levantei, cheguei mais perto do vidro e constatei: a pele branca encardida, as roupas imundas, alguns sacos ao redor. Um mendigo. Um quadro deplorável. Até o sanduíche que eu mastigava ficou difícil de engolir.

Paguei o lanche, segui meu caminho, mas antes disso passei perto do homem e o observei mais uma vez.

Naquele tempo, além de lecionar numa escola estadual, eu trabalhava para o Círculo do Livro e era isso que eu fazia naquele final de tarde. Batia na porta das casas, apartamentos, às vezes de um escritório, e entregava os livros encomendados.  A Montanha Mágica, de Thomas Mann, romances da Agatha Christie, Dom Quixote, Maquiavel, Diderot. Tinha um cliente, advogado, que só adquiria clássicos.

Quando cheguei em casa no início da noite, o mendigo não me saia da cabeça. Esquentei no fogão uma comida que havia na geladeira e minha mulher, que já estava deitada, quase dormindo, veio conversar comigo, na cozinha. Eu comia e ela falava do enxoval do nosso filho, passava a mão pela barriga e dizia que ele às vezes dava uns chutes muito fortes.

– Ele ou ela – ela falava. Não sabíamos. Ela fizera um ultrassom, mas naquela época não era fácil ver o sexo da criança.

Pensei em falar do mendigo, mas os assuntos do bebê eram tantos e foi melhor assim. Na semana seguinte, no mesmo bar, bebendo uma xícara de café com leite, vi de novo o maltrapilho no chão da calçada. O mesmo lugar.

O garçom notou que eu não tirava os olhos do homem e falou:

– Era professor em Bagé. Homem culto, neto de fazendeiro, com terra arrendada e tudo mais. Conhecia muitos livros, era respeitado, tinha mulher bonita, filhos, mas se perdeu na bebida. Foi corneado e deu nisso.

Olhei para o mendigo e ele lia um livro sem capa. Naquele dia, eu tinha na sacola O estrangeiro, de Camus, Os dez dias que abalaram o mundo, de John Reed, Os sertões, entre outros. E o meu cliente advogado me deu Anarquistas, graças adeus, da Zélia Gattai, que saíra recentemente e ele possuía mais de um exemplar.

“Será que eu acabaria assim?”, pensei, olhando o mendigo. Será que eu me enredaria com a vida, a bebida, a mulher, e deixaria tudo para trás?

Naquela época, eu dava vinte aulas por semana, tinha dez turmas, 300 e poucos alunos, carregava sacolas de livros e era difícil fechar o mês. Sempre faltava grana.

E foi assim durante um bom tempo. Eu passava naquela esquina e lá estava o homem. Entrava no bar, fazia um lanche e observava os seus traços finos do seu rosto, das mãos. Às vezes o olhar perdido, às vezes os olhos presos num livro sebento, desconjuntado.

Um dia, porém, encontrei a esquina vazia e o garçom me informou:

– Vieram buscar o homem e ele não quis ir de jeito nenhum. Dois enfermeiros parrudos pegaram ele à força, enfiaram dentro de uma ambulância e acho que foram direto pro hospício.

Minha filha já tinha nascido, era uma rica duma guria e eu não sabia que um bebê podia ser tão bonito. Na sacola, eu trazia Drummond, Vinicius, vários títulos da Agatha Christie e os clássicos do meu cliente advogado.

Naquela noite, esse cliente me recebeu no seu escritório, me serviu uma bebida e ficamos conversando. Ele conhecia um pouco de Machado, mas só agora terminara O Alienista e estava lendo Memórias póstumas...

– A vida não deixa a gente fazer o que quer – ele disse. – A vida nos pega, nos usa e muitas vezes nos joga fora depois de um tempo. Depois de um tempo de serventia – concluiu. Depois se virou para mim e comentou:

– O outro entregador não era como tu. Não lia. Mas conhecia todo o catálogo do Círculo, sabia vender e, se tu deixavas, ele te convencia dessa e daquela obra. Um avião.

– Eu sou professor – eu falei. E estranhamente senti vergonha de dizer isso.

Quando cheguei em casa, minha mulher dormia com o bebê ao lado, na nossa cama. Tinha acabado de amamentar a criança e eu peguei o pacotinho (era uma menina) e levei para o seu quarto. Coloquei a guria no berço, acendi o abajur e fiquei lendo a Zélia Gattai que ganhara de presente. Estava no fim e terminei naquela noite.

Não lembro porque, mas pensei no mendigo. A pele encardida, as unhas pretas, os livros sem capa, sujos. Um homem que foi professor, tinha terra arrendada, grana, mulher bacana e filhos. Mas perdeu tudo. Coisa alguma o segurou no prumo. 

Naquela tarde, no bar, havia uma pilha de livros sobre o balcão. O Senhor Embaixador, do Érico, As sandálias do pescador, do Morris West, e um Alceu Wamosy. Todos eles com capa.

         – Uma mulher do bairro deixou aqui – disse o garçom, apontando os livros. – Ela estava fazendo faxina em casa, se lembrou do mendigo e deixou os livros aqui para eu entregar pra ele. Eu falei que levaram o homem, mas ela não escutou. 

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