Eu estava comendo um sanduíche no balcão de um bar e avistei pela janela: um homem sentado no chão da calçada. Me levantei, cheguei mais perto do vidro e constatei: a pele branca encardida, as roupas imundas, alguns sacos ao redor. Um mendigo. Um quadro deplorável. Até o sanduíche que eu mastigava ficou difícil de engolir.
Paguei o lanche, segui meu caminho, mas antes disso
passei perto do homem e o observei mais uma vez.
Naquele tempo, além de lecionar numa escola
estadual, eu trabalhava para o Círculo do Livro e era isso que eu fazia naquele
final de tarde. Batia na porta das casas, apartamentos, às vezes de um escritório,
e entregava os livros encomendados. A
Montanha Mágica, de Thomas Mann, romances da Agatha Christie, Dom
Quixote, Maquiavel, Diderot. Tinha um cliente, advogado, que só adquiria
clássicos.
Quando cheguei em casa no início da noite, o
mendigo não me saia da cabeça. Esquentei no fogão uma comida que havia na
geladeira e minha mulher, que já estava deitada, quase dormindo, veio conversar
comigo, na cozinha. Eu comia e ela falava do enxoval do nosso filho, passava a
mão pela barriga e dizia que ele às vezes dava uns chutes muito fortes.
– Ele ou ela – ela falava. Não sabíamos. Ela fizera
um ultrassom, mas naquela época não era fácil ver o sexo da criança.
Pensei em falar do mendigo, mas os assuntos do bebê
eram tantos e foi melhor assim. Na semana seguinte, no mesmo bar, bebendo uma
xícara de café com leite, vi de novo o maltrapilho no chão da calçada. O mesmo
lugar.
O garçom notou que eu não tirava os olhos do homem
e falou:
– Era professor em Bagé. Homem culto, neto de
fazendeiro, com terra arrendada e tudo mais. Conhecia muitos livros, era respeitado,
tinha mulher bonita, filhos, mas se perdeu na bebida. Foi corneado e deu nisso.
Olhei para o mendigo e ele lia um livro sem capa. Naquele
dia, eu tinha na sacola O estrangeiro, de Camus, Os dez dias que abalaram
o mundo, de John Reed, Os sertões, entre outros. E o meu cliente
advogado me deu Anarquistas, graças adeus, da Zélia Gattai, que saíra recentemente e ele possuía mais de um exemplar.
“Será que eu acabaria assim?”, pensei, olhando o
mendigo. Será que eu me enredaria com a vida, a bebida, a mulher, e deixaria
tudo para trás?
Naquela época, eu dava vinte aulas por semana, tinha
dez turmas, 300 e poucos alunos, carregava sacolas de livros e era difícil
fechar o mês. Sempre faltava grana.
E foi assim durante um bom tempo. Eu passava
naquela esquina e lá estava o homem. Entrava no bar, fazia um lanche e observava
os seus traços finos do seu rosto, das mãos. Às vezes o olhar perdido, às vezes
os olhos presos num livro sebento, desconjuntado.
Um dia, porém, encontrei a esquina vazia e o garçom
me informou:
– Vieram buscar o homem e ele não quis ir de
jeito nenhum. Dois enfermeiros parrudos pegaram ele à força, enfiaram dentro de
uma ambulância e acho que foram direto pro hospício.
Minha filha já tinha nascido, era uma rica duma
guria e eu não sabia que um bebê podia ser tão bonito. Na sacola, eu trazia Drummond,
Vinicius, vários títulos da Agatha Christie e os clássicos do meu cliente
advogado.
Naquela noite, esse cliente me recebeu no seu
escritório, me serviu uma bebida e ficamos conversando. Ele conhecia um pouco
de Machado, mas só agora terminara O Alienista e estava lendo Memórias
póstumas...
– A vida não deixa a gente fazer o que quer – ele disse.
– A vida nos pega, nos usa e muitas vezes nos joga fora depois de um tempo. Depois
de um tempo de serventia – concluiu. Depois se virou para mim e comentou:
– O outro entregador não era como tu. Não lia. Mas conhecia
todo o catálogo do Círculo, sabia vender e, se tu deixavas, ele te
convencia dessa e daquela obra. Um avião.
– Eu sou professor – eu falei. E estranhamente
senti vergonha de dizer isso.
Quando cheguei em casa, minha mulher dormia com o
bebê ao lado, na nossa cama. Tinha acabado de amamentar a criança e eu peguei o pacotinho (era uma menina) e levei para o seu quarto. Coloquei a guria no berço, acendi o abajur e fiquei
lendo a Zélia Gattai que ganhara de presente. Estava no fim e terminei naquela
noite.
Não lembro porque, mas pensei no mendigo. A pele
encardida, as unhas pretas, os livros sem capa, sujos. Um homem que foi
professor, tinha terra arrendada, grana, mulher bacana e filhos. Mas perdeu
tudo. Coisa alguma o segurou no prumo.
Naquela tarde, no bar, havia uma pilha de livros sobre
o balcão. O Senhor Embaixador, do Érico, As sandálias do pescador,
do Morris West, e um Alceu Wamosy. Todos eles com capa.
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