Velório sem defunto foi o último livro publicado pelo poeta Mário Quintana. Naquela época (1990) ele tinha 84 anos e o título era claramente uma provocação e uma ironia desconcertantes. Lembro que foi assim que meus amigos e eu recebemos o livro[1].
No poema “Inquietude”, o poeta escreve, como quem não
quer nada: “Sinto-me assim, sem motivo algum, / Como alguém que estivesse
comendo uma empada de camarão sem camarões / Num velório sem defunto...”.
Impressionante o fato do poeta estar em idade avançada
e pensar na morte com humor, sem nenhum traço de amargura. “Nas despedidas / O
mais doloroso é que / – tanto o que fica como o que vai embora – / Põem-se os
dois a pensar: / Meu Deus! quando é que parte o raio deste trem!” (“As despedidas”)
Reli numa dessas tardes de pandemia (olhando pela
janela o céu ensolarado) na edição da Editora Objetiva (2015), com uma
apresentação instigante de Fabrício Carpinejar. Nessa introdução, Carpinejar se
refere aos poemas do livro como o “suspiro de um defunto, ainda vivo, lembrando
como morreu”. Sarcásticos como se fossem de um personagem machadiano, ele diz – mas um
sarcasmo leve, acrescento, mais para ironia do que qualquer outra coisa.
Como afirmou o crítico Luís Augusto Fischer numa
entrevista a Zero Hora, “há um quê de rebeldia” na obra do Quintana, mas
não “uma rebeldia pró-ativa”. O poeta não joga bomba nos seus inimigos, apenas faz
caretas, afirma o crítico. As alegrias e dores da vida (e aí entram as mágoas e
ressentimentos) viram canção e ironia na poética de Quintana, como se lê em “Reflexão
para o dia de finados”: “Morrer, enfim, é realizar o sonho / que todas as
crianças têm... / O motivo? Só elas sabem muito bem: / Fugir... fugir de casa!”
Mas nessa releitura, me chamou atenção os poemas
que são comentários a respeito de grandes assuntos da cultura ocidental (outro
tema constante nas reflexões irônicas do poeta), dos quais destaco um.
Em “O amor eterno”, Quintana reflete a respeito de um famoso
casal de amantes imortalizado na Divina Comédia: “Dante se enganou:
Paolo e Francesca / Continuaram bem juntinhos no Inferno, com pecado e tudo /
Juntinhos e felizes! / Mas quem sabe se não seria este mesmo o castigo divino?
/ Um amor que jamais pudesse terminar...”.
Se o leitor não lembra, no Canto V, Dante caminha num
dos círculos do Inferno (aquele dedicado aos homens e mulheres que foram
conturbados por “carnais intentos”), encontra Francesca de Rimini (que traiu o
marido com Paolo) e ela recorda o momento em que foi capturada pelo “vício da
luxúria”.
Cito a tradução de Dante Milano: “Nós [Francesca e
Paolo] líamos um dia, com delícia, / de como a Lanciloto amor venceu. / Estávamos
a sós e sem malícia. // Por vezes seu olhar buscando o meu / (...). // Quando
lemos que a boca desejada / fora beijada pelo ansioso amante, / este a quem
para sempre estou ligada // beijou-me a boca, tremulo, ofegante. / E o livro
(...) interrompendo, / não lemos mais daquele dia em diante.”[2]
Não sei se, em 1990, comentando com meus amigos a respeito do livro, os poemas que comentamos foram os citados acima. Apenas sei que Haroldo Ferreira e eu, numa noite qualquer (depois de um jantar com amigos poetas), descemos a Avenida Borges de Medeiros falando sobre o Quintana e sua recente publicação.
O poeta morava
na Cidade Baixa, andava pelo centro com uma sacola no braço, e seguidamente
cruzávamos por ele e o cumprimentávamos silenciosamente com um aceno de cabeça. Às vezes ele respondia com um sorriso, outras vezes, não.
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