quarta-feira, 3 de abril de 2019

Peregrinação ao Templo de Ísis

         Visitei o famoso Templo de Philae, dedicado a deusa Ísis, e me senti um peregrino – um peregrino do velho Império Romano –, vá entender uma coisa dessas. Coisa de professor de História, na certa.

O Templo, ou conjunto de templos, pois são vários prédios, com a mão de diversos faraós (especialmente da dinastia ptolemaica, mais imperadores romanos), foi construído a partir do século III a.C. e se tornou um grande centro de peregrinação no Mundo Antigo. O culto a Ísis ultrapassou as fronteiras do Egito, se expandiu pelo mundo greco-romano e chegou a competir com o nascente cristianismo. A devoção só se extinguiu com a proibição do imperador Justiniano, no ano 513. Padres cristãos ocuparam o lugar, tentaram apagar a imagem da deusa, mas a coisa não deu certo.

No início do século XX, o templo estava semicoberto pelas águas de uma represa e, na década de 1960, com a criação do Lago Nasser (para uma nova e maior represa), a UNESCO coordenou um projeto de desmontagem da construção e seu restabelecimento em outro local. O Templo de Philae, construído na ilha de Philae, foi reassentado em novo local, numa ilha próxima, especialmente preparada para isso. Uma obra de engenharia impressionante. O mesmo aconteceu com outros templos e túmulos da região – inclusive o complexo templário de Abu Simbel, dedicados ao faraó Ramsés II e a sua esposa favorita, Nefertari.

O Templo de Philae, visão lateral, do lago, quando se chega de barco.
Quando avistei o templo, de dentro da lancha que conduzia meu grupo para a visita, me senti um velho romano em peregrinação... Devo ter lido sobre o culto de Ísis quando era estudante universitário, no Curso de História da UFRGS... Os romanos se encantavam com as religiões orientais, capazes de responder à inquietações (especialmente em relação à morte) que a religião oficial não dava mais conta. Acho que foi nessa época de estudante também que um amigo (hoje falecido) passou a utilizar a expressão “queimar incenso no altar de Ísis” para todas as vezes que saia para namorar. Queimar incenso, incensar Ísis, a mulher, honrar e venerar o feminino. Na Antiguidade as deusas eram sexualizadas (muito diferente do que veio acontecer com as figuras femininas da cristandade) e tal expressão não era um sacrilégio, pelo contrário, era uma possiblidade da devoção religiosa. As deusas eram mulheres que viviam a sua sexualidade, muito ao contrário das divindades cristãs.

Assim, ao entrar no espaço do Templo de Ísis, não apenas realizei uma viagem ao Mundo Antigo, mas uma volta a minha própria história. Um peregrino trilhando diversos tempos, tanto o do período da crise do Império Romano desencadeada no final do século II d.C. (Toynbee era uma referência para esse assunto), quanto o da década de 1970, vivido de forma tumultuada pelo jovem estudante que eu era. Estudante que aprendia e se surpreendia com as divindades femininas da Antiguidade – Ishtar, Ísis, Diana, Afrodite – e a tremenda mudança que aconteceu com a vitória e supremacia do cristianismo.

Ísis era filha de Nut (Céu) e de Geb (Terra), irmã de Osíris, Seth e Néftis. Ísis e Osíris se casaram e desceram ao mundo dos homens para civiliza-los. Osíris separou os homens dos animais, ensinou-lhes as técnicas agrícolas, deu-lhes leis e foi seu primeiro monarca. O irmão Seth ficou enciumado (ele também queria governar o Egito) e terminou matando Osíris e retalhando o seu corpo em diversos pedaços (14, segundo algumas versões). Ísis recolheu as diversas partes do marido morto e conseguiu reavivar a sua força vital. Morto, Osíris fecundou Ísis - em grande parte, graças as artes mágicas da esposa - e depois renasceu no Mundo dos Mortos.

Uma história e tanto, com diversas versões – inclusive a de que Ísis não encontrou o pênis do marido (que fora engolido por um peixe das águas do Nilo) e a fecundação se deu exclusivamente devido aos seus poderes mágicos da deusa. Poderes, magia e artes (propiciatórias de renascimento) que depois seriam ensinados aos iniciados nos mistérios da religião de Ísis.

Percorri as diversas salas de complexo templário lembrando as tantas leituras a respeito do mito, a religião que daí surgiu, assim como o movimento dos peregrinos que vinham adorar a deusa, queimar incenso no seu altar. Os faraós da dinastia ptolemaica deram especial destaque a esse culto e ele se expandiu pelo mundo greco-romano, com templos na Grécia, em Roma e até na distante Lusitânia. Uma devoção que atraiu a atenção do historiador Plutarco, no século I d.C., e o levou a escrever uma compilação mito osiriano. As religiões orientais penetravam com força na sociedade romana – a de Ísis, Mitra, a de Cristo também – e nós bem sabemos qual saiu vencedora. Com o predomínio cristão o Templo de Philae foi fechado – assim como o Templo de Éfeso, dedicado a Diana, outra importante deusa da Antiguidade – e nunca mais o mundo ocidental cultuou divindades femininas com atributos sexuais tão evidentes. Que longa luta em torno do feminino!

Peregrino ou não (cansado de uma longa caminhada pelos espaços do templo), encontrei a melhor evidência da grandeza da deusa Ísis numa das salas do fundo. Esculpido numa parede, vi o relevo da deusa com o filho sobre as pernas, uma imagem terna, a da Deusa Mãe e o Filho Divino (Hórus), que ela conseguiu do marido morto graças a sua determinação e arte. Uma representação certamente precursora das Madonas com o Menino que a Cristandade, séculos mais tarde, consagrou. Uma imagem reveladora das transformações - e também da continuidade - do culto às divindades femininas. Uma imagem a indicar o sonho e o desejo de muitos de nós. Uma mulher que acolhe, uma mulher que incendeia. A imagem ideal para um peregrino. Me senti realizado.

Deusa Ísis e o Filho Hórus.

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